A ópera pede clemência

Nova produção de “La Clemenza di Tito”, ópera final de Mozart, estreia sob direção de Caetano Vilela e regência de Felix Krieger no Theatro São Pedro, que segue ameaçado de fechar as portas

Andrei Reina
Revista Bravo!
8 min readApr 25, 2019

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Cena de “La Clemenza di Tito” (Foto: Heloísa Bortz)

Caetano Vilela e Felix Krieger formam uma dupla inusitada. Os diretores cênico e musical da nova montagem de La Clemenza di Tito, ópera de Wolfgang Amadeus Mozart, faziam os últimos ajustes antes do ensaio quando entrei no Theatro São Pedro, em São Paulo, na última quinta-feira (18), para acompanhar os trabalhos.

Vestido com um agasalho de moletom preto e boina, o encenador brasileiro conversava com a equipe técnica distribuída pela plateia enquanto coçava a barba por fazer e franzia as sobrancelhas até que se fundissem. No fosso da orquestra, as mãos do regente alemão se dividiam entre repartir o cabelo ao meio, retirando-o do rosto, e orientar os músicos nos detalhes da abertura da ópera. Dobrada nas mangas, a camisa azul claro permitia ver o discreto relógio de pulso com o qual controlava o horário.

As características físicas complementares do diretor meio punk e do maestro engomado parecem refletir a produção que estreia nessa sexta-feira (26) e segue em cartaz até 5 de maio. Arrojados, o cenário e a iluminação concebidos por Vilela contrastam com o tom elevado do libreto, que enaltece a benevolência do imperador da Roma Antiga, e com a solenidade da música, encomendada para a coroação de Leopoldo II como Rei da Boêmia em 1791.

De fato, La Clemenza di Tito apresenta uma face menos conhecida da produção operística de Mozart, marcada por obras cômicas (Don Giovanni) e fantásticas (A Flauta Mágica). Trata-se de uma opera seria, gênero que viveu seu auge na primeira metade do século 18 e já saíra de moda quando Mozart aceitou o trabalho, realizado com o libretista Caterino Mazzolà, responsável por adaptar o original de Pietro Metastasio.

A ação da ópera se passa em 79 d.C., uma década após “o ano dos quatro imperadores”, que terminou com a conquista do poder romano por Vespasiano, pai de Tito, sobre Vitélio. O primeiro ato abre com uma conversa entre a órfã Vitellia, ávida por se casar com Tito, e Sesto, que a ama. “Incitada por uma confusa mistura de desejo de vingança pela morte do pai, ambição política e amor”, na síntese do musicólogo John A. Rice, Vitellia tenta convencer Sesto a assassinar Tito após ser preterida por ele, que pede outra mulher em casamento.

A centralidade da intriga torna ambos os personagens os verdadeiros protagonistas da ópera, o que explica que as árias de maior efeito dramático sejam entoadas por eles — Parto, parto, de Sesto, e Non più di fiori, de Vitellia. “Eu acho que são três super solistas e eu colocaria a Vitellia no primeiro plano, o Sesto no segundo e o Tito até num terceiro”, diz Vilela. “Esses dois personagens são os condutores do espetáculo. As árias, os recitativos, os duetos — toda essa trama de ação e reação vêm deles, que têm uma importância fundamental em todas as cenas.”

“O Tito acaba virando um personagem que só reage de acordo com as ações desses outros dois”, prossegue o diretor. “É um personagem monocromático, que toma as decisões menos na razão e mais no coração e todas as decisões dele são a partir desse ponto de vista, enquanto Vitellia e Sesto são contraditórios. Eles são mais ricos, nesse sentido.”

“É a primeira vez que eu faço a Vitellia e a primeira vez que faço uma vilã”, conta Gabriella Pace, enquanto acomoda as pernas sobre o banco no saguão do teatro, onde conversamos durante a sua pausa. Ruiva, a soprano mantém a voz impostada e os olhos fixos no interlocutor mesmo fora de cena. Segundo a cantora, Vitellia “é a personagem que mais se modifica ao longo da ópera”, o que se traduz em maior complexidade vocal. “Ela vai desde um grave lá embaixo até um super agudo — tudo isso em poucos minutos. No começo eu sentia uma grande dificuldade nos graves, que pouco a pouco foram entrando no corpo, tomando forma.”

O elenco do trio protagonista é completado por Luisa Francesconi, mezzo-soprano que tem se especializado em personagens masculinos e agora empresta voz a Sesto, e pelo jovem tenor Caio Duran como Tito.

A soprano Gabriella Pace (Foto: Heloísa Bortz)

Ancorado pela história

De volta de uma viagem à Itália, onde iluminou uma ópera de Gaetano Donizetti no Teatro Massimo de Palermo e tirou férias em Roma, Caetano Vilela trouxe ao palco a intervenção contemporânea que observou nas construções históricas (como o Coliseu, cenário de parte do segundo ato), sustentadas por estruturas metálicas visíveis.

“Tudo o que eu via de monumento estava escorado por esses andaimes”, diz o diretor, apontando para a armação colocada nas laterais e no fundo do palco, onde os tijolos originais do teatro estão à mostra. Além de “criar um espaço ancorado pela história”, explica Vilela, a opção pelos andaimes verticaliza a encenação, que ganha seis pisos para a movimentação dos solistas e do coro.

A escolha por não colar a encenação no contexto histórico da ópera se reflete no figurino, assinado por Fause Haten. “Não é uma tentativa de reler a época, é ver o shape, a forma dela, e ‘contemporaneizar’ essa estética”, comenta Vilela. Do mesmo modo, transportar a história para a atualidade, tão carente de figuras como aquela projetada no imperador clemente, também foi evitada. “Contextualizar isso para os dias hoje poderia ser um pouco vulgar”, reflete o diretor. “Sabendo a história e pela legenda, o público já vai identificar situações de governantes que não têm esse ato de generosidade.”

Música mágica

Os músicos afinam os instrumentos e as luzes se apagam. Começa o ensaio. A orquestra da casa apresenta confiança na abertura, interpretada sob a regência segura de Felix Krieger. Como o figurino não estava disponível, solistas e coro subiram ao palco “à paisana”, o que trazia a música para o primeiro plano. A equipe aplaudiu quando Luisa Francesconi terminou a ária em que Sesto, dividido entre a lealdade a Tito e o amor a Vitellia, decide-se pelo segundo. Desafiador para a encenação, o momento do incêndio no Capitólio foi resolvido com astúcia, revelando a inteligência de Vilela como iluminador.

Findo o primeiro ato, é feito o diagnóstico de que, em alguns trechos, a dinâmica e o fraseado precisam de retoques, assim como a movimentação de cena. Antes, porém, um intervalo. É quando Krieger sobe do fosso à plateia, onde conversamos sobre a qualidade musical de La Clemenza di Tito, surpreendente para uma ópera composta em menos de três meses e estreada apenas 24 dias antes de A Flauta Mágica — ambas as óperas finais de Mozart, que morreria dali a três meses, em dezembro de 1791.

Krieger observa que Tito não foi inteiramente escrita pelo compositor austríaco. “Tudo o que você ouviu com a orquestra, aquilo tudo é Mozart”, explica. Os recitativos acompanhados pelo pianoforte, continua o maestro, foram escritos por Franz Xaver Süssmayr, pupilo do compositor. “Quem conhece as outras óperas de Mozart nota que a qualidade do recitativo é muito inferior ao que o próprio Mozart escreveu.”

O regente marca com sotaque germânico as vogais das palavras em inglês enquanto classifica a ópera como “uma obra-prima subestimada”, que “tem um lugar importante no conjunto dos trabalhos de Mozart”. Para Krieger, as obras finais do compositor pertencem às mais importantes que ele deixou, como o Concerto para Clarinete e a própria Flauta, com a qual Tito compartilharia uma “filosofia da justiça”.

“Há peças nessa ópera que pertencem ao melhor Mozart já escrito”, enfatiza, “especialmente a ária de Sesto com o clarinete [Parto, parto], a ária de Vitellia com o clarinete basset [Non più di fiori] e a segunda ária de Sesto [Deh per questo istante solo]. É uma música absolutamente mágica.”

O futuro do São Pedro

Antes de acompanhar o ensaio de La Clemenza di Tito com a sua partitura, o músico e gestor artístico do Theatro São Pedro, Ricardo Appezzato, desabafa que o susto levado em março, quando foi anunciado um corte de 23% no orçamento da cultura do Estado de São Paulo, ainda não passou. Entre as más notícias guardadas no anúncio— feito em março e, após protestos, cancelado — estava o fechamento do Theatro São Pedro. Caso o corte fosse levado adiante, diz Appezzato, restaria apenas entregar as chaves.

O tenor Caio Duran (Foto: Heloísa Bortz)

Inaugurado em 1917, o Theatro São Pedro já foi especializado em produções teatrais e chegou a ser uma sala de cinema, mas desde o final dos anos 1990 se estabeleceu como uma casa de ópera alternativa ao Theatro Municipal. Menor que o edifício na Praça Ramos de Azevedo, o São Pedro tem capacidade para 636 espectadores e até 60 músicos no fosso da orquestra. Essa dimensão favorece a montagem de títulos dos períodos barroco e clássico, além de obras dos séculos 20 e 21. Apresentadas no ano passado, Alcina (1735), de Georg Friedrich Händel, e Sonho de Uma Noite de Verão (1960), de Benjamin Britten, são exemplos.

“Aqui tem uma teatralidade incrível, que vem da própria estrutura do teatro, desse contato mais próximo com o público”, diz Gabriella Pace, que no ano passado protagonizou a estreia brasileira de Kátia Kabanová, ópera composta por Leoš Janáček em 1921, no São Pedro. “Mesmo sentado no segundo balcão, o público vê tua expressão, ele está com você, porque tem essa coisa mais acolhedora. Não que o Municipal não tenha, mas lá tem uma grandiosidade, a interpretação é mais ampla, talvez. Aqui ela te permite fazer coisas mais introspectivas. O repertório com o qual o Theatro São Pedro se compromete é um repertório extremamente intimista, de uma certa forma.”

Segundo Paulo Zuben, diretor artístico-pedagógico da Santa Marcelina Cultura, organização social que administra o teatro, a programação de 2018 atingiu perto de 30 mil espectadores, entre óperas, concertos sinfônicos, de câmara, didáticos e ensaios abertos. “Interromper as atividades do teatro seria uma perda artística e cultural muito grande e todas essas milhares de pessoas beneficiadas seriam prejudicadas”, afirma.

Zuben também chama a atenção para o braço pedagógico do teatro. “Nosso compromisso também é com a formação de jovens, aproveitando para ampliar o programa já oferecido pela EMESP Tom Jobim — outro equipamento cultural do Estado sob nossa gestão — de fomento à participação de bolsistas em grupos artísticos, como é o caso da Academia de Ópera do Theatro São Pedro e a Orquestra Jovem do Theatro São Pedro, esta criada recentemente.”

Apesar do recuo do governo de João Doria em relação ao corte, a temporada de 2019 só deve ser anunciada após uma reunião entre o teatro e a Secretaria de Cultura e Economia Criativa. Esse tipo de imprevisibilidade é dramático para casas de ópera e orquestras, cujas temporadas são pensadas com grande antecedência para casar a agenda dos músicos e negociar preços. A situação também coloca um impasse aos que buscam apoio na iniciativa privada: por que uma empresa patrocinaria uma temporada que pode não existir?

Saída a pé

Localizado a duas quadras do metrô Marechal Deodoro e rodeado de bares abertos até tarde, o Theatro São Pedro proporciona uma integração com a cidade rara para frequentadores de salas de concerto, acostumados a entrar e sair da Sala São Paulo fechados em seus carros. Sair do edifício na Rua Barra Funda e ir a pé até a Avenida Angélica comer um espetinho ou ao Largo de Santa Cecília ouvir um samba é remédio certo para uma relação menos alienada com a música de concerto. Foi o que fiz na quinta passada, quando entre um gole de cerveja e outro refleti sobre as marcas que nosso tempo e lugar imprimem na tradição.

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