A ancestralidade se faz em vida

Diane Lima
Revista Bravo!
Published in
5 min readJan 17, 2018

Uma homenagem ao legado de Maurinete Lima e Mestre King.

Maurinete Lima. Foto: Renato Nascimento.

Na cultura bantu há um elo que liga a vida e a morte. Nesse movimento cósmico que atravessa os tempos, nada é capaz de separar os laços da comunidade e da família, sentimento de pertencimento coletivo que forja o princípio dinâmico vital do próprio povo:

"pertenço logo sou"

"eu sou por que vós sois, e porque vós sois, eu sou".

Essa existência móvel, transcendental e contínua, é simbolizada pelo espiral da concha de Kodya, que com o seu cíclico movimento nos fala sobre o renascimento que traz a ritualística de toda morte.

Uma vez numa conversa com o músico Tiganá Santana, ouvi que para os bacongos, "a anterioridade não é um pretérito que se encerra em algo que passou e se acabou, a anterioridade é algo que se faz presente", passagem que nos ajuda a refletir sobre a importância da preservação da memória como aquela que assegura tanto a estabilidade e a solidariedade de um grupo no tempo, quanto a sua coesão no espaço. Diferente da visão ocidental positivista e de como o culto ao novo neoliberal nos doutrina a olhar o passado pelas lentes da obsolescência, nessa cosmologia o que vem antes ocupa um lugar divino:

"o processo de ancestralização se dá em vida, se torna um ancestral quem fez história".

Numa semana em que duas personalidades tão queridas e importantes para a cultura brasileira, trocaram a alvorada pelo pôr-do-sol em direção à grande Kalunga, deixamos a nossa homenagem a poeta, socióloga e ativista Maurinete Lima e ao coreográfo e bailarino Mestre King, nomes que fazendo história, tornaram-se essa semana nossos ancestrais.

Só agora que comecei a escrever a minha aldeia,
a minha aldeia vive perto de mim,
a minha aldeia está dentro de mim.
Fecho os olhos,
tampo os ouvidos
e escuto a minha aldeia.
A minha aldeia
não sai de mim,
ela é
a minha cicatriz tatuada.

Maurinete Lima na abertura do 7º encontro Estéticas das Periferia em 2017. Foto por Sérgio Silva/reprodução. Fonte: https://ponte.org

Com 74 anos e seu primeiro livro de poesias recém lançado, o Sinhá Rosa, Dona Mauri, como era carinhosamente chamada, foi uma das fundadoras da Frente 03 de Fevereiro, um grupo de pesquisa e ação direta que desde 2004 vem fomentando a discussão sobre o racismo no Brasil. Junto a Frente, a recifense que nos encantava com a sua doçura, acolhimento e cabelos cor púrpura não cansou de abrir bandeiras e discussões que ora questionavam "Onde Estão os Negros?" ora se imortalizavam em gritos de resistência como "Zumbi Somos Nós".

De palavra afiada e presença frequente nos slams de poesia, era bonito ver a Dn. Mauri agindo em família. Energia de criação de casa que se aquilombava nas ruas e arrebatava as pessoas nos diversos projetos compartilhados entre os seus filhos, Eugênio, Mariana e Daniel Lima. Vencedora de dois prêmios na FLUPP em 2016, um deles o Carolina de Jesus, são as palavras da editora Élida Lima que melhor resumem a potência da sua obra:

"É assim que Maurinete é a mais contemporânea de nós e há mais tempo. A poeta acessa um inacessível do presente. A poeta habita outros ritmos, profundidades, superfícies, infâncias e passagens. Habita dobras. Hoje cria e nos entrega suas obras forjadas pelas dobras. Sinhá Rosa inaugura uma espécie de seara ancestral da poesia, essa treva que emerge para cegar e fazer ver. O livro de poesia com a mais atualizada perspectiva histórica no Brasil. Atualizada: anticolonial e futurista. Maurinete explica: a poesia tem dado mais conta que a sociologia.

O kuntu, força valorativa que deriva do ntu, a força-ser do universo bantu, é o que explica a capacidade da arte de afetar as pessoas, despertar emoções e reflexões. Energia que está no axé da palavra mas também no que se cria com a dança que sopra os ventos.

Foto: Arquivo Jornal Correio/reprodução.

Com mais de 50 anos de carreira, Raimundo Bispo dos Santos, que da capoeira herda a alcunha Mestre King, ficou conhecido não somente por ser o primeiro homem da América Latina a fazer vestibular de dança pela Universidade Federal da Bahia, como também por ser o percursor da chamada dança afro-brasileira.

Baiano de Santa Inês, o pesquisador e coreógrafo tornou-se célebre ao ressignificar, na lógica do espaço cênico, gestualidades, ritmos e mitos das religiões de matrizes africanas, emparelhando os tempos e atualizando no presente um conhecimento ancestral. Em seu trabalho, o corpo adquire formas ora sagradas ora festivas tal como relata em um dos seus depoimentos:

“Eu observava os movimentos e pensava em levar isso para dentro das minhas aulas. Aos poucos fui copiando o que via e trazendo para fora dos terreiros. O que sem dúvida, foi uma ousadia, pois muitas danças eram fechadas do ambiente do candomblé e minha atitude recebeu várias críticas naquele momento, mas também muita receptividade. Muitas vezes, a dança e a música colocavam os alunos em transe e eu tinha que dizer…pera lá”.

Segundo a crítica, o que Mestre King fez foi construir "sínteses entre os movimentos simbólicos dos rituais afro-brasileiros e os da dança clássica, unir os princípios da dança moderna americana à movimentação da capoeira; os repertórios dos espetáculos folclóricos e outras linguagens, como a dança contemporânea, o jazz dance, as danças regionais e as demais corporalidades étnico-culturais".

Mestre King. Foto: reprodução.

Homenageado recentemente no filme Raimundos: Mestre King e as Figuras Masculinas da Dança na Bahia, que tem direção de Bruno de Jesus, o educador foi o responsável pela iniciação profissional de bailarinos como Augusto Omolú, Elísio Pitta e José Carlos Arandiba, o Zebrinha (1954) marcando a importância das figuras masculinas na dança baiana.

Dos movimentos que se escrevem aos gestos que se recitam, dos cruzamentos que inauguram à produção de conhecimento que nos referencia, o que a experiência de arte e de vida desses criadores deixa como legado a nós seus descendentes, é a possibilidade de, como ancestrais, perpetuar suas crenças, sonhos, tecnologias, memórias e saberes.

Sigamos os movimentos das suas palavras e o balanço das suas letras.

É tempo de continuar fazendo história.

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