A bossa nova é foda?

Compositor do mítico Língua de Trapo, Carlos Castelo faz seu primeiro disco solo, Bossa'n'Humor, satirizando nosso bem musical mais exportado

Guilherme Werneck
Revista Bravo!
9 min readNov 5, 2021

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Desde que voltamos com a Bravo! Carlos Castelo é nosso colunista, sempre escrevendo sobre livros. Hoje, inclusive, ele faz a fundamental Poelatria, coluna que tem trazido grandes poetas para este espaço. Mas antes de ser jornalista e publicitário, Castelo é um grande humorista, e, dá pra dizer, um pouco renascentista, já que espalha essa veia irônica em crônicas, poemas, aforismos e música, seu primeiro veículo. Castelo é uma espécie de integrante menos visível do fabuloso Língua de Trapo, um dos melhores grupos a fazer uma mistura bem-sucedida de música e humor nos anos 80.

Mais de 40 anos depois de compor clássicos do Língua, Castelo faz o seu primeiro disco solo, Bossa'n'Humor, em parceria com um companheiro de banda, o cantor e musicista Pituco. Iniciado em 2005, esse disco que foi composto entre São Paulo e Tóquio, onde Pituco mora, é uma deliciosa coleção de canções que satirizam o nosso bem musical mais exportável: a bossa nova.

Mas à batida perfeita, nada de barquinho que vai e vem, de amor, sorriso e flor. No bim-bom de João Gilberto, Castelo coloca suas letras que são pequenas crônicas que satirizam nosso cotidiano, num duplo com essa vocação classe média branca que sempre esteve na orla da bossa.

E, como não podia deixar de ser, batemos um papo sobre esse novo projeto.

Como foi fazer o primeiro disco solo depois de 40 anos de carreira?

Foi na verdade uma insatisfação minha e também do Pituco . Porque o humor traz uma visão diferente, mas que é muito do nosso tempo. Os fãs querem ouvir sempre a mesma coisa. Isso acontece com muitos grupos que exploram esse lado, não só o Língua de Trapo, que acabou virando um negócio cult. Eu tinha essa insatisfação. Não sei se por conta do meu lado literário, de cronista, que lida com material novo quase toda hora, todo dia. Eu não tenho muito prazer de ouvir a mesma música, quero um assunto novo, de um tempo novo que está pintando, e aí surgiu a ideia de fazer um disco meio temático, uma sátira à bossa nova. Eu fiquei com isso na cabeça. O Pituco mora em Tóquio há muitos anos, mais de 20, e um dos caminhos dele lá pra sobreviver é fazer aquelas gigs de bossa nova.

Que é um a loucura em Tóquio, inclusive.

É, os caras têm coisas lá que nem tem aqui em matéria de disco. E ele começou a estudar a bossa nova, a tocar naquele festival Aoyama que tem lá todo ano, vai sempre a Joyce o Tutty Moreno, a Rosa Passos. E eu falei: "você tem esse conhecimento musical enorme da bossa nova, vamos dar uma desconstruída nisso". É uma vaca sagrada, ninguém pode brincar com bossa nova, então a gente como humorista tem esse papel, de destruir para fazer rir e repensar.

No Língua de Trapo vocês já faziam isso de pegar gêneros dos mais diferentes e satirizavam em cima. Eu lembro de O que É Isso, Companheiro?, que era uma moda de viola, Xingu Disco, que sacaneava a Lady Zu e a disco, o samba enredo tirando sarro do Plínio Correia de Oliveira. Agora condensar num estilo só é novo, inclusive com a capa que é uma sátira ao João Gilberto. Mais do que a bossa nova, é o João Gilberto que vocês estão sacaneando?

Não dá muito para não ser o João Gilberto a figura central porque bossa nova é sinônimo de Joãozinho. Mesmo tendo Tom Jobim, Vinícius [de Moraes], para nós o centro é o João porque ele meio que inventou esse negócio. O Vinícius é aquele poeta e tal, o Tom com aquele gosto finíssimo de arranjos, de melodias, e harmonias, mas o retrato mesmo é aquele jeito de cantar, aquela malemolência do João. E a capa vem daquele dia que ele falou que vaia de bêbado não vale, com a foto do João Wainer. E a gente fez uma paródia dessa foto também pra capa do disco.

Uma coisa que mudou muito dos anos 80 para cá é o humor. Hoje nós temos uma outra percepção do que se pode ou não se pode falar em humor, muito pela via do politicamente correto. Por outro lado, o humor tem de ser subversivo. Como você lida com essa mudança? Tem coisas do Língua de Trapo que hoje você não conseguiria cantar, né?

Sem dúvida. Eu acho que dificultou demais para o humorista, ele tem uma massa de manobra muito pequena porque hoje tudo é vigiado, é criticado. A gente tinha feito muitas outras músicas para esse disco e nós mesmo fizemos uma autocensura , porque algumas músicas iriam trazer um ruído para o disco que não seria bom. Porque iam ficar aqueles haters que iam pegar uma palavra de um verso e só iam falar daquilo e ninguém ia ouvir o disco. Isso não quer dizer que o disco seja bonzinho ou que ele não faça críticas tanto à bossa nova quanto ao lugar onde nasceu a bossa nova que é o Rio de Janeiro. Tem uma música que se chama Por que Túmulo do Samba?, que é uma resposta ao Vinícius [de Moraes], que dizia que São Paulo era o túmulo do samba, e a letra explica porque é que aqui não dá pra fazer samba. Não vou dar spoiler mas ouçam a música porque a gente quis responder essa pergunta.

Agora uma coisa que eu não consegui tirar da minha cabeça ouvindo o disco é a clássica Cagar É Bom, do Língua de Trapo. Essa música era sua?

É do Laerte Sarrumor. Eu fiz uma única bossa nova que tem no último disco do Língua, que se chama Rick Wakeman Nunca Mais, que era a história de uma cara viciado em rock progressivo na juventude e depois ele vira um executivo careta que tem crises quando escuta o Rick Wakeman.

O Guilherme Arantes precisava ouvir isso. [risos]

E ele é considerado um bossa novista né?

É da terceira geração, considerando que a cada geração você tem uma degeneração, dá pra explicar alguma coisa. [risos] Agora falando sério, o disco é cheio de participações. Tem você e o Pituco no centro, mas você convidou o André Abujamra, que também é outro cara que lida com humor, tem o Paulo Caruso que tem toda uma história com a música, mas também está perto do humor com as charges, a única pessoa séria de verdade é a Vânia Bastos, porque até o Carlos Careqa tem uma irreverência. Como você juntou essa turma?

O Paulo Caruso, começando por ele, eu conheço desde antes do Língua de Trapo. Eu devo a ele a minha entrada no jornalismo. Foi ele quem me apresentou uma série de jornalistas, e uma das primeiras entrevistas que eu fiz foi com ele. Ele tinha aquele trabalho musical com o Chico, irmão dele, faziam shows, tocavam no Salão de Humor de Piracicaba, e quando o Língua começou eles começaram a chamar alguns integrantes para se somar à banda deles, Avenida Brasil, que tinha o pessoal do Casseta [Popular], o [Luís Fernando] Veríssimo no sax, e eu entrei nessa banda com o Laerte e o Lizoel [Costa], que era guitarrista do Língua. E a amizade foi se estreitando por conta da música, coisa de ir na casa um o outro, e eu quis fazer uma música para ele cantar junto comigo. O Carlos Careqa sempre ia em shows do Língua de Trapo, e tem uma música que chama Como É Bom Ser Punk, que é minha, e os punks ficaram revoltados, mas que ele adorava, e ele fechava o show fazendo uma interpretação incrível dessa música. E no disco eu chamei ele para fazer uma música que chama Psicosamba, que é uma bossa nova psicanalítica, brincando com vários psicanalistas famosos. Ele fez um negócio que ficou perfeito. Ele tem uma loucura de palco que é muito interessante e a gente usou isso na música. Fizemos várias vozes, uma coisa meio esquizofrênica, ficou linda. E a Vânia foi de propósito, porque ela canta uma bossa nova que chama Hã?. A letra fala de uma mulher que está se queixando para o marido que não ouve o que ela fala. Foi uma brincadeira até com a forma da bossa nova, porque ela canta sussurrando que nem o João, mas na verdade ela está falando no ouvido do cara par ver se ele escuta.

Para mim essa música lembrou aquela fase do Tom Zé do Estudando o Samba, com canções como Toc, , Ui!, tudo muito minimalista…

Isso. Eu gosto muito dessa linguagem minimalista em tudo, até esse trabalho que tenho fora da música como aforista, em que eu faço frases, ou nos haikais, eu curto muito essas formas breves. Vai ver que tem uma influência também.

E o Abujamra?

Eu nunca tinha feito nada com ele, mas eu sou fã, acho ele incrível. Tudo que ele faz é muito sacado e muito engraçado. E eu fiz essa música que ele canta em inglês, zoando a bossa nova, e eu gravei a minha parte e deixei ele à vontade para ele improvisar em cima como quisesse, e ficou muito engraçado. Ele canta numa língua que nem existe, ficou demais. Foi uma colaboração muito boa.

E é interessante esse lado de ser um disco de bossa nova com sabor de Tóquio, né?

Começou em 2005 comigo e o Pituco compondo, os arranjos foram feitos lá no Japão.

E vocês gravaram juntos ou separados?

Separados. A ideia inicial é que o Pituco, que é um puta cantor, botasse a voz em tudo. Eu não ia nem cantar, mas nós não sabíamos que colocar voz em estúdio no Japão é um negócio caríssimo. Estranho isso, mas o fato é que a parte instrumental é barata, mas para voz tem poucos estúdios e é caríssimo. Então não deu para ele botar a voz lá e ele não podia voltar para o Brasil. Daí eu resolvi cantar, e meti as caras. Porque no Língua de Trapo eu cantei só duas vezes, Bode Dylan e Ratatá no Zum-zum-zum, além de ter feito aquela voz rápida imitando o Cauby Peixoto [Conceição], no primeiro disco.

Eu não vi o Língua ao vivo, mas você ia para o palco ou era mais compositor só?

Eu fui pro palco em quase todos os shows deles na faculdade de jornalismo, depois em alguns shows no Lira Paulistana marcantes.

E tocava alguma coisa?

Não, só cantava. Quando ia mostrar as músicas eu fazia aquele violãozinho de compositor, mas nos shows eu só cantava mesmo. Depois, quando começou a ir para Sesc Pompeia, par o Rio, eu optei por ficar no jornalismo, era mais o meu ganha-pão. Eu gostava de ser jornalista e dali pra frente eu fiquei só compondo e fazendo esquetes.

E dava para viver só como compositor naquela época, né?

Dava sim, em alguns anos eu recebi uma bolada boa de direitos autorais, quando eles foram para o Festival dos Festivais, da Globo, deu para ganhar alguma coisa. Hoje é risível o que se ganha.

A música era Os Metaleiros Também Amam, né?

Era, e impressionate é que ele tocaram a música aqui em São Paulo na primeira etapa e já ganharam convite para tocar no nordeste, só porque apareceu na Globo uma vez, e aí começou a vender muito disco. O próprio disco do festival vendeu muito. O Zé Rodrix me chamou para fazer uma música para a novela Cambalacho, pro personagem do Gianfrancesco Guarnieri, que chamava Geronimo, e foi gravada pelo Germano Mathias e deu uma grana legal também.

Outro mundo, que acabou. Agora é indie, só pra se divertir porque dinheiro mesmo…

A gente fez esse disco sem nada de incentivo, por isso que demorou tanto tempo, aí veio a pandemia e atrasou mais ainda. Mas é um disco que é como se fosse um livro, a gente não está com desejo de ser hit, era o desejo de registrar essas músicas e ver o que acontece, porque está muito estranho esse mercado e ninguém sabe o que vai acontecer. Mas a sorte é que nós começamos em 2005 e ele ainda faz sentido hoje. As músicas estão lá como se tivessem sido feitas hoje.

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