A bíblia LGBTQ

“Devassos no Paraíso”, de João Silvério Trevisan, ganha nova edição como um verdadeiro símbolo de resistência dos Direitos Humanos

Igor Zahir
Revista Bravo!
4 min readSep 10, 2018

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João Silvério Trevisan (Foto: Pedro Stephan)

João Silvério Trevisan teve dificuldades para lançar uma reedição de Devassos no Paraíso, apesar do sucesso que as três anteriores tiveram. Diante do maior estudo sobre homossexualidade no Brasil, os argumentos partiam das definições em rótulos como “livro militante” e “pornografia dépassé”. Felizmente, o autor não desistiu e, agora, sua obra ganha uma edição revista, atualizada e ampliada, com densas 744 páginas.

Logo na primeira parte, mostra um pouco das históricas teorias científicas, desde o “gene gay” até as explicações químicas e biológicas ofertadas pela ciência a partir de 1990. Mesmo assim, vale salientar — como o autor fez questão de pontuar — que não tem objetivo de discutir as causas da homossexualidade, mas tê-la como fato consumado para abranger as situações decorrentes.

Destaque para os capítulos que se debruçam sobre a cultura homossexual no Brasil, país descrito por Trevisan como enrustido por natureza, e ao mesmo tempo, que passa para os estrangeiros a impressão de ter a sexualidade tão à flor da pele. O autor defende com unhas e dentes suas teorias — sustentadas com impecável embasamento histórico e referências que passam por nomes como Abelardo Romero, Sir Roger Casement e Pierre Verger — de que essa devassidão brasileira ajudou a formar os falsos estereótipos de que somos um povo muito moderno e liberal, mas, no fundo, dominado pelo moralismo nem sempre assumido.

A poeta americana Elizabeth Bishop, aclamada por sua relevante obra e conhecida em terras tupiniquins pela turbulenta história de amor com a arquiteta paisagista Lota de Macedo Soares, é foco de um capítulo inteiro sobre lesbianismo e os contrastes com as experiências homossexuais conhecidas de homens estrangeiros no Brasil. “Mesmo quando existencialmente viscerais, os relatos masculinos resumiam-se, com algumas exceções, em choques, dilaceramentos e até violência. Neles, a relação amorosa quase sempre submergia ao impacto sexual de conotações culpadas”, diz o autor.

A influência (e perseguição) religiosa é discutida em um bloco inteiro de capítulos, tanto sobre a Inquisição quanto pelo cristianismo na época da escravidão, passando pelos contrastes entre um deus hedonista e um deus punitivo. Já no bloco seguinte, com o pulo para o século 20, descobrimos o chocante histórico da homofobia no país, quando as elites intelectual e política (inclusive os partidos de esquerda) viraram as costas para as pautas LGBT; o modelo de família tradicional foi construído pela moral e pelos bons costumes; e a classe médica, sobretudo os psiquiatras, definiram o termo homossexualismo para associar o comportamento LGBT como uma patologia a ser combatida.

O “boom gay”, como define Trevisan, veio na década de 70, quando o “amor homossexual começou a furar a barreira da censura ditatorial e dos setores mais reacionários” e foi parar em capas de revistas como IstoÉ e na campanha publicitária dos perfumes Rastro — vídeo de tanto sucesso que tornou possível constatar, através de pesquisas, que o marketing em cima da homossexualidade impulsionava as vendas.

A figura do homossexual no teatro também evoluiu a partir daquela década, deixando de lado os clichês exibidos nas peças de Plínio Marcos e Nelson Rodrigues, para mostrar toda sua normalidade e, por mais perturbador que fosse, sua humanidade. Foi nos palcos que a AIDS foi abordada quando estourou nos anos 80.

De Jean Genet a José Celso Martinez. De Caio Fernando Abreu a James Baldwin. De Glauber Rocha a Sandra Werneck e Hector Babenco. O autor faz uma verdadeira enciclopédia de como a homossexualidade foi retratada no cinema, teatro e literatura, ano após ano. Na música, o objeto de estudo é a geração transgressora de Renato Russo, Cazuza e Cássia Eller, e de como suas experiências atrevidas, radicais e, por vezes, autodestrutivas, marcaram uma era.

Vale ressaltar que esta edição de Devassos no Paraíso, além de revista e atualizada, ganhou novos (e necessários) blocos, com temas que vão da bancada evangélica e seus representantes — Bolsonaro, Malafaia, Edir Macedo — com o retrocesso que trouxeram, e continuam trazendo, para a pauta LGBTQ. No que diz respeito à política, ele aborda as alianças que a própria esquerda faz e que ferem os direitos civis de gays, lésbicas, travestis e transexuais. Os ataques e censuras à exposição Queermuseu e à lendária filósofa americana Judith Butler também entram na dissertação, assim como a onda de ódio que matou Marielle Franco e a evolução das novas identidades de gênero em nomes intelectuais que conquistam seu espaço, como a acadêmica Amara Moira e a psicanalista Letícia Lanz.

Em 1978, João Silvério Trevisan foi um dos fundadores do O Lampião, o primeiro veículo de mídia LGBTQ do Brasil. Em 1986, lançou a primeira edição deste livro, que viria a se tornar um clássico e levou mais de 30 anos para chegar à edição que a Objetiva reedita agora. Não que tenha sido tarde!

Este livro nunca foi tão fundamental e veio na hora certa, quando os Direitos Humanos estão ainda mais ameaçados e a perspectiva para o futuro neste ano eleitoral não é animadora. Como disse no começo, felizmente, Trevisan resiste e o que podemos constatar é que, se Calibã e a Bruxa, da italiana Silvia Federici, é imprescindível para quem quer entender o histórico feminista, Devassos no Paraíso se torna, para a população LGBTQ, uma verdadeira bíblia. Sem ofensas aos conservadores de plantão.

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Devassos no Paraíso, de João Silvério Trevisan. Editora Objetiva, 744 págs., R$ 74,90.

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Igor Zahir
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Art advisor. Comentarista da rádio CBN. Crítico cultural. Colunista da Bravo!.