Entre a técnica e o conteúdo

Fotógrafo Silvino Mendonça constrói sua trajetória artística centrado no universo das publicações independentes

Felipe Abreu
Revista Bravo!
5 min readAug 9, 2018

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Puffin e Raposa, de Silvino Mendonça.

Não sai da minha cabeça a fotografia de uma raposa branca, empalhada, em cima de uma geladeira de sucos em algum boteco perdido pelo mundo. Com os dentes de fora, o falecido animal tem seu corpo virado para o vazio e o flash de Silvino Mendonça cola sua sombra à parede do bendito estabelecimento. Ao contrário da técnica duvidosa do empalhador, as imagens do fotógrafo e editor brasiliense têm uma precisão marcante. Passeando entre registros ruidosos de seu cotidiano e uma visão divertidamente ácida da nossa relação com a informação e a tecnologia, Silvino produz livros e exposições que merecem profunda atenção.

A fotografia chegou até ele graças a uma câmera antiga de sua mãe. “É história clássica de quase todo fotógrafo: comecei a fotografar por curiosidade durante a adolescência com uma câmera manual de 35mm da Zenit que pertencia à minha mãe. Aprendi uma coisa ou outra sobre obturador e diafragma na internet e gastei muitos filmes até alcançar um resultado razoavelmente satisfatório.” Se sua entrada na fotografia se deu de maneira tradicional, a descoberta das publicações independentes aconteceu de forma mais contemporânea: “Quando eu tinha uns 17 ou 18 anos, fui apresentado aos zines por meio do Flickr. Alguns fotógrafos que eu seguia estavam publicando seus trabalhos nesse formato, então resolvi experimentar também. Juntei algumas impressões fotográficas dez por quinze e fiz algumas cópias em xerox preto e branco na papelaria mais próxima. O zine não tinha título, nem texto, só imagens.” Estão apresentados os dois principais focos de atenção da criação artística de Silvino Mendonça: a fotografia e as publicações independentes. São pelo menos sete anos realizando projetos fotográficos de maneira constante e os lançando através de sua editora, a Savant.

Imagem de "Áspero", de Silvino Mendonça.

Há nesta trajetória uma divisão estética e de abordagem clara entre dois eixos de produção. O primeiro, se concentra na fotografia analógica e se dá uma liberdade de registro que passa pelo cotidiano do artista e seus deslocamentos. O segundo, mais conceitual, faz uso da fotografia digital e da apropriação de imagens para discutir a relação do homem com a tecnologia e com suas posses. Da primeira linha citada, vale destacar Áspero, projeto que surge graças a um convite da Livros Fanstasma, de São Paulo, e que é exposto em Brasília na sequência e acaba por ter uma segunda versão, com uma seleção de imagens inéditas, publicada pela própria Savant.

O trabalho, como comenta Silvino, “é resultado de um exercício cotidiano de observação do espaço público. Procuro registrar de alguma forma o esforço coletivo de comunicação que se dá silenciosamente por meio dos rastros e dos vestígios que encontro nas ruas por onde caminho. Minha tentativa é a de desenhar uma espécie de cidade mutante, que se modifica diariamente a partir de pequenos incidentes.” É justamente a potência do acaso e da construção de um espaço urbano através de seus mínimos detalhes que dão força a Áspero.

Imagem de "Áspero", de Silvino Mendonça.

Se sua produção ligada à fotografia analógica é favorecida por encontros inesperados e pela liberdade de desencavar imagens escondidas em seu cotidiano, a segunda linha de criação desenvolvida por Silvino aparece graças ao encontro e exploração de questões conceituais pré-definidas.

Em Vestígios Digitais, o fotógrafo se centra na relação entre homem, tecnologia e privacidade, construindo uma tipologia de selfies deixadas em celulares e tablets de lojas de informática em Brasília. O livro, além de profundamente divertido, é um registro marcante da nebulosa relação entre jovens, tecnologia e autoimagem, além de apontar claramente que caminhamos para um tempo pós vida privada. Neste projeto Silvino cria um “compilado cru do objeto pesquisado. Qualquer autorretrato encontrado em mostruário de smartphones e tablets era válido. É uma série em que eu interfiro muito pouco após conceber a ideia, não há muita seleção durante o ato fotográfico. Nenhuma foto é mais importante do que outra. A intenção é justamente que o trabalho reflita a incidência daquelas manifestações no meu cotidiano. Eu não estava muito interessado em narrativas, a ordem das imagens pouco importava.”

"Vestígios Digitais", de Silvino Mendonça. Ed. Savant.

Em Presente de Deus, projeto que conta com a mesma abordagem de Vestígios Digitais, Silvino registra adesivos de cunho religioso em carros estacionados. Novamente será o conteúdo, não a técnica fotográfica, que levará o projeto adiante. É interessante notar a reação de quem entra em contato com o livro, pelas palavras do próprio autor: “É curioso. Muita gente ri quando folheia o livro, mas fazer humor nunca foi o meu objetivo central. Eu estava mais interessado em criar uma espécie de catálogo que registrasse esse fenômeno dos adesivos religiosos do que fazer piada. As risadas não me incomodam de forma alguma, acho compreensível. Essa relação materialista e espiritual que envolve a posse do carro pode ser tão engraçada quanto deprimente ou assustadora.”

É nesta variedade de reações que estes dois livros encontram seu principal potencial: ao se eximir de construir imagens expressivas, Silvino delega parte considerável da construção de sentido ao espectador, que traz consigo sua visão de classe, de política e até seu senso de humor para este jogo de criação coletiva.

Presente de Deus, de Silvino Mendonça. Ed. Savant.

Volto à raposa que me assombra para concluir este texto. Raposa que — além de repousar eternamente sobre uma prateleira de gelados sucos de laranja — é acompanhada de um Puffin, a versão islandesa de um pinguim, que tenta alçar voo, tarefa absolutamente inglória para qualquer exemplar da espécie, tanto vivo quanto empalhado, e um glorioso duende de escala bastante diminuta. As imagens de Silvino tem uma força muito peculiar, que nos incita a construir fantasias e novos sentidos sobre elas. Seja no nível absurdamente surreal deste improvável trio ou no riso que nos escapa com selfies e presentes divinos. O trabalho do brasiliense carrega a força de revelar os instintos de seus espectadores, tarefa nem um pouco fácil e raramente realizada com tamanha maestria.

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