A hora e a vez de Agnès Varda
Uma crítica e uma pesquisadora indicam os filmes fundamentais da diretora da Nouvelle Vague, homenageada na Mostra
Aos 89 anos, Agnès Varda está a todo vapor. Em novembro, a cineasta belga radicada na França recebe um Oscar honorário, concedido a artistas pelo conjunto da obra, em cerimônia realizada em Hollywood. Em São Paulo, até 1º de novembro, é homenageada na Mostra de Cinema com uma retrospectiva e com a estreia nacional de Visages, Villages. O filme mais recente da diretora, feito em parceria com o jovem grafiteiro JR, venceu em maio o prêmio de melhor documentário no Festival de Cannes.
Há alguns anos a menção ao nome de Agnès Varda não causava furor. Seus filmes eram discutidos entre poucos, que os recomendavam como tesouros perdidos. O espanto com a fotografia de La Pointe Courte, as cores deslumbrantes de As Duas Faces da Felicidade e a contundência de Os Renegados faziam suspeitar de que alguma outra coisa, que não a qualidade de seu cinema, a impedia de receber a mesma atenção de seus pares masculinos de Nouvelle Vague.
Foi ainda nos primeiros anos do movimento que a cineasta apresentou suas credenciais, com Cléo das 5 às 7, indicado à Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1962. Seu primeiro longa-metragem de maior repercussão— antes, dirigiu La Pointe Courte em 1955 — trazia uma característica que marcaria sua produção posterior: o protagonismo feminino. São mulheres as protagonistas de Jane B. por Agnès V., retrato da cantora e atriz Jane Birkin, e Os Renegados, vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza em 1985.
Isto sem falar nas constantes aparições da própria diretora em seus filmes, como no documentário Os Catadores e Eu, em que Varda interage com trabalhadores do campo no interior francês. Desde seus primeiros trabalhos, questões sociais ganham contornos políticos e humanistas sem nunca perder de vista a inventividade formal — aspectos que situaram a cineasta à Rive Gauche, à margem esquerda da Nouvelle Vague, ao lado de Alain Resnais e Chris Marker.
Hoje, sua disposição segue a mesma. “Eu não busco êxitos comerciais, nem dinheiro com meu cinema, o que quero criar como artista são vínculos e sentimentos de fraternidade e ternura entre as pessoas”, disse ao jornal El País em setembro deste ano, durante o Festival de San Sebástian, que também a homenageou. Foi, aliás, a outro jornal espanhol que Varda brincou sobre a sequência infindável de prêmios honorários, aos quais se somam os de Locarno, em 2014, e de Cannes, em 2015. “Receber prêmios tem algo de ridículo, porque sigo sem ter dinheiro para fazer meus filmes”.
O que assistir de Agnès Varda
Para saber por onde começar a explorar o cinema de Agnès Varda, a Bravo! pediu a duas pesquisadoras e entusiastas que indicassem os filmes fundamentais da diretora. Veja quem são elas e, logo abaixo, os títulos sugeridos:
- Amy Taubin, crítica de cinema, escreve nas revistas Artforum, Film Comment, Sight & Sound e 4Columns. Integra o comitê de seleção do Festival de Cinema de Nova York e leciona na School of Visual Arts da mesma cidade. Escreveu ensaios sobre Agnès Varda para a Criterion, que edita os DVDs americanos da diretora.
- Laura Carvalho é pesquisadora sobre cor e diretora de arte, com atuação em cinema, performance audiovisual e teatro. Em seu mestrado, defendido em 2013 na USP, analisou o uso da cor nos cinemas de Agnès Varda e Jean-Luc Godard.
Cléo das 5 às 7 / Cléo de 5 à 7 (1962)
Amy Taubin: Ainda que não seja sua estreia, o primeiro grande filme de Varda é radical tanto na forma como no conteúdo. A narrativa ficcional é contada quase que inteiramente em tempo real. Como em muitos filmes dos contemporâneos masculinos de Varda na Nouvelle Vague francesa, a personagem central é uma linda mulher, mas aqui ela está numa situação que seria um anátema para cineastas como Godard, Truffaut ou mesmo o marido de Varda, Jacques Demi. Cleo enfrenta a possibilidade de estar com câncer — de que sua beleza seja devastada e até mesmo que possa morrer.
Laura Carvalho: A mulher que é sempre vista e elogiada — a Cleópatra — se paralisa diante do medo de não saber mais ser agente do seu próprio olhar. Um testamento feminista da Nouvelle Vague, a mulher descobre como ver a cidade, os eventos, a vida a partir do momento em que anda só por Paris. Um dos mais potentes filmes de Varda e, não à toa, um de seus melhores.
As Duas Faces da Felicidade / Le Bonheur (1965)
Laura Carvalho: Varda se inspira nas celebrações campesinas pintadas pelos impressionistas, em que pessoas comuns aproveitavam os finais de semana junto à natureza, e retoma obras do célebre trio Manet, Monet e Renoir para mostrar que felicidade não é alegre, há sempre alguém infeliz nos registros de família, como é o caso da figura da mãe. As Duas Faces da Felicidade revela que a harmonia familiar nesse ambiente primaveril se mantém, na verdade, para o privilégio do pai. E sem preterir pela mãe ou pela amante, ela dedica a cada personagem feminina uma paleta de cores específica, mas sem indicar julgamento. Distante de dar à amante a clássica responsabilidade pelo desmantelamento do núcleo familiar estável, ela a colore com sua cor favorita, o lilás. Porque na verdade essa desestruturação veio pela figura cândida do pai, que substituiu uma mulher e colocou outra no lugar. Um argumento sórdido e que recebeu das mãos dessa cineasta um tratamento visual em que a história da arte e a cor são necessárias para fazer um filme feminista.
Ulisses / Ulysse (1982)
Laura Carvalho: Um homem nu, uma praia, uma cabra morta, uma fotografia. Varda faz uma genealogia de uma simples imagem e revela o passado, o presente e a potência do olhar.
As Tais Cariátides / Les Dites Cariatides ( 1984)
Laura Carvalho: Como filmar o ordinário, o comum? Esse belo curto filme se dedica a registrar a arquitetura, o não monumental, a cidade, aquilo que há de mais anódino (aliás, esse parece ser um tema recorrente da cineasta). Nessa peça curta ficam patentes os caminhos que delinearam sua filmografia posterior: revelar a si própria para filmar a cidade, os trabalhadores, a paisagem e aquilo que está além da cineasta.
Os Renegados / Sans Toit Ni Loi (1985)
Amy Taubin: Novamente uma mulher está no centro da narrativa. Aqui ela afirma sua liberdade para rejeitar todo aspecto do contrato social e, como resultado, logo acaba morta numa vala. Se um homem se comportasse da mesma maneira, poderia ter uma longa vida. A diferença nas expectativas e regras que a sociedade coloca às mulheres e aos homens não é, entretanto, a questão central do filme. Em vez disso, Varda expõe a moralidade e a ideologia de uma grande variedade de homens e mulheres franceses de todas as idades — trabalhadores, agricultores, pessoas que largaram a escola ou a faculdade, criminosos, intelectuais, profissionais — pelo modo como reagem a esta jovem mulher que passa por suas vidas. Os Renegados é basicamente um filme de ficção, mas tem a estrutura de um documentário investigativo, e como muitos filmes de Varda utiliza atores profissionais e amadores, os últimos interpretando papeis próximos de quem são.
Laura Carvalho: A trajetória errante de Mona filmada através de belos travellings nos é apresentada de maneira episódica a partir de depoimentos de pessoas que cruzaram com a jovem. Varda nos apresenta uma França pouco comum, hibernal, ora fraterna e também hostil. Mona não é uma recém-adulta rebelde, ela apenas é uma mulher que busca seu espaço e, por isso mesmo, punida por afirmar sua liberdade.
Os Catadores e Eu / Les Glaneurs et la Glaneuse (2000)
Amy Taubin: Ao longo de sua carreira, Varda trabalhou com formas ficcionais e não-ficcionais, muitas vezes combinando as duas. Neste filme, ela utiliza as pequenas câmeras comerciais de vídeo recém-chegadas no mercado para ter o acesso mais imediato e pessoal aos seus assuntos, que incluía ela mesma. Varda, a cineasta como catadora, entrevista e registra as atividades de seus colegas catadores na cidade e no interior. Este documentário despretensioso nos permite entender o que a torna uma grande cineasta: seu humanismo, seu feminismo, seu sutil desdobramento da linguagem e da forma de imagens em movimento.
Varda em foco
Para entender melhor as contribuições dadas por Agnès Varda ao cinema, a Bravo! conversou com a pesquisadora e diretora de arte Laura Carvalho. Em sua dissertação de mestrado, defendida na Escola de Comunicações e Artes da USP com o título Sob o domínio da cor, Laura analisou os filmes As Duas Faces da Felicidade, de Varda, e O Demônio das Onze Horas (Pierrot le Fou), de Jean-Luc Godard. Sua ênfase estava no uso que os dois diretores da Nouvelle Vague fizeram da cor. Leia a seguir o que ela disse.
Quais as principais contribuições de Agnès Varda para o cinema?
Varda nos ensina que o cinema é livre e que é necessário o cineasta se reinventar, testar novos caminhos, formas e temas. Sua inquietude e curiosidade levaram-na a passar livremente do longa-metragem ao curta, da ficção para o documentário, do cinema para a performance: uma reinvenção estética sem fim, que aceita desafios e que permite o erro.
A questão central para ela talvez não seja a clássica pergunta o que filmar, porque ela não filma o épico, ela prefere o anódino — tudo é passível de ser registrado. A pergunta central e que gera essa inquietação seria mais em como filmar.
Longe do exercício narcísico, ela filma sua velhice, seu corpo para revelar a cidade, outras relações sociais, o mundo, o desconhecido. E a História da Arte está sempre lá. Varda nos lembra que, antes de tudo, a arte revive, é preciso voltar a ela como um exercício para aprendermos a olhar. É necessário [o pintor Jean-François] Millet para ver os agricultores de hoje, retomar os retratos do Renascimento para compreender uma comunidade de pescadores — um caminho de doçura e não de pura erudição.
Sua pesquisa tem foco no uso das cores pelos cineastas. Quais inovações Agnès Varda empreendeu nesta área?
Varda soube usar a cor distante de seu caráter mimético, puramente narrativo e submetido à primazia dos personagens; ela é uma grande moderna, sem dúvida. A cineasta vai no sentido oposto ao estabelecido por muitos de seus contemporâneos, [pois] ela prefere a cor como registro irônico.
Desde seus curtas turísticos — Ô Saisons, ô Chateaux (1957) e Du Côté de la Côte (1958) — que são seus primeiros filmes em cor, Varda se apropria dos registros turísticos padronizados (como não filmar a Côte d’Azur ou os castelos do Loire senão em cores?) e desmantela o discurso tradicional da paisagem natural ou dos lugares turísticos como espaços destituídos de tensões.
As Duas Faces da Felicidade traz um caminho pouco comum para a cor. Varda se inspira nas celebrações campesinas pintadas pelos impressionistas, em que pessoas comuns aproveitavam os finais de semana junto à natureza. A cineasta retoma obras do célebre trio Manet, Monet e Renoir para nos mostrar que felicidade não é alegre, há sempre alguém infeliz nos registros de família, como é o caso da figura da mãe. Ou seja, essa paleta colorida, a qual associamos à felicidade, é antes de tudo um recurso irônico.
As Duas Faces revela que a harmonia familiar nesse ambiente primaveril se mantém, na verdade, para o privilégio do pai. E sem preterir pela mãe (Thérèse) ou pela amante (Émilie) — ambas são fisicamente semelhantes — ela dedica a cada personagem feminina uma paleta de cores específica, mas sem indicar qualquer julgamento. Distante de dar à amante a clássica responsabilidade pelo desmantelamento do núcleo familiar estável, ela colore a figura de Émilie com sua cor favorita, o lilás. Porque na verdade essa desestruturação veio pela figura cândida do pai, personagem monocromático do filme, que substituiu uma mulher e colocou outra no lugar. Um argumento sórdido e que recebeu das mãos dessa cineasta um tratamento visual em que a história da arte e a cor são necessárias para fazer um filme feminista.