A língua universal do beat
Kalaf Epalanga fala sobre o seu livro "Também os Brancos Sabem Dançar", uma aula de música angolana e suas irradiações
Um romance narrado por três vozes completamente diversas, mesclando realidade e ficção, retraça a história do kuduro e da música de gueto em Lisboa. Kalaf Epalanga, seu autor, é também cantor-poeta da Buraka Som Sistema, banda portuguesa que provavelmente mais tornou popular o kuduro, gênero nascido em Angola e depois presente até em abertura de novela no Brasil. Epalanga é também a primeira voz de Também os Brancos Sabem Dançar, quando narra o episódio em que foi preso na fronteira entre a Suécia e a Noruega por estar sem documentos. Os policiais, desconfiados e em meio à eterna crise migratória europeia, não acreditam que ele é mesmo um cantor angolano-português e vai cantar num festival em Oslo. Ele não tem visto legal. Além da voz em primeira pessoa, os outros dois narradores se ligam à história: uma é a suposta mulher com quem se casa, de fachada, para conseguir o visto português, anos depois; o outro, o mais bonzinho dos policiais que o prenderam, fã de música eletrônica e de hip-hop.
Com esses três pontos de vista, Epalanga vai das raízes angolanas à viagem transatlântica da música africana (um dos personagens da segunda parte do livro é o músico baiano Quito Ribeiro) e ao encontro do house nascido em Detroit com o público nórdico — depois, a popularização da música eletrônica a ponto de chegar aos pífios computadores das periferias de Luana, onde ajudaram a criar o kuduro. Terceiro livro de Kalaf, Também os Brancos Sabem Dançar é uma aula sobre a globalização da música de gueto —ainda que, segundo o autor, o kuduro "não esteja a fazer sucesso pelo mundo" — e sobre o poder de conexão da música (“O beat, a língua franca que todo o ser com sangue nas veias consegue sentir, entender e comunicar sem usar um único verbo”).
Conversamos com Epalanga por e-mail sobre algumas das questões do livro — que mostra, ainda, uma Lisboa negra e de música pulsante (bem distante, diga-se, dos famosos fados) — e faz um apanhado importante da música angolana, de Ruy Mingas e Cavaco Silva a Tony Amado, que para nós é tão distante. Ele diz que o Buraka está em pausa e não deve gravar tão cedo — os outros membros da banda, Riot, Branko e Conductor, além das eventuais colaborações de Petty e Fred Ferreira — estão em outros projetos. Mas a parceria com Branko na Enchufada — label que os dois fundaram em 2006 — vai firme e forte (neste ano, lançaram inclusive um single com Rincon Sapiência). Leia a entrevista abaixo.
Lendo o Também Os Brancos Sabem Dançar, fiquei com a impressão de que há, pelos três personagens que narram o livro, uma mensagem que perpassa toda a história que é a de que a música é um elemento que ajuda a integrar, a fazer ver o outro, a se colocar no lugar, a superar diferenças. Em tempos tão difíceis para nossa comunicação pelo mundo — seja com as redes sociais, criando bolhas de ódio, ou com a guinada à direita com discursos radicais em diversos países — crê que a música ainda tenha esse papel? A música pode ajudar a nos entendermos melhor?
Estou convencido que sim. É a mais universal das expressões artísticas. Eu fui testemunha disso, durante os anos que estive na estrada com a minha banda, Buraka Som Sistema. A música, a força do tambor, sempre foi denominador comum em todos os países que visitamos. Coloquei na voz de um dos narradores do livro a seguinte passagem: “O beat, a língua franca que todo o ser com sangue nas veias consegue sentir, entender e comunicar sem usar um único verbo”.
Uma coisa que achei muito curiosa na história que você levanta da música angolana — e mesmo no espalhamento dela em Portugal — é que sempre há uma proximidade grande entre grandes nomes da alta burocracia e os cantores. Isso chegou a virar uma contradição na música de Angola, assim como virou no rap (isto é: as grandes estrelas do mundo do hip-hop se tornaram o que são rimando sobre as mazelas de Compton, Atlanta, etc, sendo que hoje não pertencem mais a este mundo)? Se questiona a autenticidade e uma certa “contradição de classe” da música em Angola?
O aburguesamento da classe artística é quase inevitável. Poucos são os que se conseguem manter íntegros, sem se deixar corromper pelo dinheiro e poder. Penso que essa é a condição humana. Os artistas que não são santos, embora sejam vistos como tais pelos seus seguidores, não estão imunes a isso. Em Angola, existe a tendência de se dar demasiado poder aos músicos, talvez pela forma que a nossa luta pela independência se deu. A música foi um instrumento para combater o colonialismo. Foi através dela que muitos ideais revolucionários foram sendo veiculados. Os políticos conhecem a força mobilizadora que os músicos conseguem ter na nossa sociedade. Tentar ter a maioria, ou os mais proeminentes como aliados penso que faz parte da estratégia política de controlar a opinião pública. Mas ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, o rap em Angola de uma forma geral, conseguiu manter o seu cariz revolucionário e contestatório.
Como Angola e os produtores locais vêem o sucesso do Kuduro pelo mundo?
Existem opiniões contraditórias. Há quem diga que se está a vender o Kuduro e outros que sentem ser algo positivo. Eu, particularmente, não sinto que o Kuduro esteja a fazer sucesso pelo mundo. Ainda é muito pouco o número de artistas com carreiras internacionais e presença nos principais mercados de música. O Kuduro ainda não conseguiu produzir estrelas a escala dos nigerianos Wizkid, Mr Eazi e Davido. Ainda temos um caminho longo para percorrer.
Pensando no título do livro e nas discussões que ele levanta, senti que o tom é muito mais de uma união do que de um corte racializado entre portugueses versus angolanos; brancos versus negros. Li em entrevistas que você vê muito em Lisboa situações em que europeus brancos se sentem afetivamente ligados a Angola ou a outros países africanos que os pais moraram, enfim. Não há um discurso no sentido de dizer que Portugal se apropria da música angolana — é algo muito mais nuançado, passa por relações afetivas, familiares, de memória. Achei isso bem interessante e bonito. Por outro lado, não pude deixar de lembrar de discussões como a de uma reportagem que mostra que o ensino de história de Portugal ainda ensina um tipo de visão bem ultrapassada sobre colonização e a figura do colonizador. Vi também o caso recente com o escritor Mamadou Ba. Como você vê essa contraposição? Acha que racismo ainda é um tema-tabu em Portugal?
Tentei, com o meu livro, focar em aspectos que estão presentes na forma como a música é consumida pelas pessoas. Não foi minha intenção fazer do livro um manifesto anti-racista. Foquei-me em aspectos sociais relacionados com a imigração africana na Europa, usando a música para abordar o tema. O racismo existe também em Portugal. Como escritor sei que posso trazer o assunto para discussão das mais variadas formas. Acrescentando ao trabalho magnífico que outros escritores e investigadores estão a fazer sobre a matéria como o caso da jornalista Joana Gorjão Henriques como o seu obrigatório Racismo em Português — O lado esquecido do colonialismo e Racismo no País dos Brancos Costumes ou, ainda mais recentemente, o romance Um Preto Muito Português de Telma Tvon. Sinto que é minha obrigação estar em diálogo com as obras que estão a ser publicadas sobre a matéria em Portugal e no mundo. Da mesma forma que estou em diálogo com o que se escreve no espaço africano de expressão portuguesa. O que os afro-americanos como Ta-Nehisi Coates andam a escrever. Sem esquecer, claro, os livros que são publicados no Brasil e que abordam a tema do negro na sociedade brasileira. A título de exemplo, dois dos livros que me serviram de inspiração para escrever o meu romance foram o Desde que o Samba é Samba, de Paulo Lins, e o Carnaval no Fogo, de Ruy Castro.
Vejo muitas proximidades da nossa música — especialmente a da Bahia — com a de Angola, é uma coisa óbvia (você deve conhecer, por exemplo, Roberto Mendes, o samba do recôncavo baiano, e outros nomes mais recentes como Luedji Luna). Por outro lado, não conhecemos muito o que vem de lá. Ruy Mingas, por exemplo, é pouquíssimo ouvido aqui. Sabe por que a música de Angola não chegou ao Brasil? Sente que faz falta um intercâmbio maior entre Angola e Brasil, contemporaneamente?
É absurda a ignorância que existe entre Brasil e Angola. É claro que a música e cultura das novelas brasileiras circula mas sabemos muito pouco sobre a experiência negra na américa latina. Sinto que a solidariedade entre África e a sua diáspora é necessária a vários níveis e precisamos criar pressão, junto da sociedade civil e da classe política sobre a importância na criação dessas pontes.
E o Buraka Som Sistema, voltará a fazer shows e/ou gravar? Como está a sua relação com a Enchufada agora, anda produzindo novos sons?
Não vamos dar shows e não vamos gravar nada tão cedo. Neste momento, todos os membros do grupo estão focados nos seus projectos pessoais e é maravilho que assim o seja pois quando for altura de regressarmos à atividade, teremos mais ideias para partilhar. Em relação a Enchufada. Eu sou fã da música que se produz naquele lugar e a cumplicidade que tenho com o Branko é real. Continuamos a fazer música juntos e não vejo que isso vai abrandar tão cedo.
Você acha que há sentido falar em “música negra”? Pensando na história de várias delas — o samba, o jazz, o rock, o hip-hop — você vê uma proximidade da história delas com o kuduro, no sentido de que houve uma “apropriação branca” do gênero?
Faz sentido falar de música negra, sem nunca deixar de fora as pessoas brancas que a ajudaram a torná-la popular. Ainda ontem estive assistindo no Netflix, a história da grupo The Incredible Bongo Band e a forma como a canção Apache, o tema mais sampleado da história do rap nasceu. Existem músicos brancos a fazer bom funk e bom jazz. É importante reconhecer que estes gêneros tiveram a sua origem nas comunidades negras americanas. Em relação ao kuduro, ninguém nega a sua origem na periferia de Luanda, o mesmo acontece com a kizomba. No final do dia, o importante é fazer boa música e cada um de nós estar consciente das circunstâncias que impedem músicos angolanos de divulgar a sua música e tentar fazer o que estiver ao nosso alcance para para corrigir toda e qualquer injustiça.