A linguagem como sonho

Almir de Freitas
Revista Bravo!
Published in
7 min readJan 18, 2017
Luiz Fernando Carvalho no set (Foto: Raquel Couto)

Com obras como Pedra do Reino, Capitu e Lavoura Arcaica no currículo, Luiz Fernando Carvalho se transformou em um especialista na “passagem” de obras literárias para o cinema e a TV — em que pese o fato de ele dizer “pouco acreditar” nas adaptações. Responsável por levar o romance de Milton Hatoum para a TV na minissérie Dois Irmãos, no ar até a sexta-feira desta semana na Rede Globo, o diretor, na verdade, ressalta um método de trabalho. “Só ultrapassamos a mera construção técnica se formos capazes de gerar uma linguagem, espécie de sonho, com tamanha força de contaminar a narrativa como uma peste”, ele explica em entrevista à Bravo! “Entrar no texto de Dois Irmãos exigiu remexer memórias, tempo, espaços”, ele diz. Um processo que passa até pela escolha do formato widescreen.

Na entrevista que se segue, Luiz Fernando Carvalho fala de suas motivações como criador, da relação com Milton Hatoum durante o trabalho, da preparação dos atores. E, ainda, sobre seu diálogo com uma “brasilidade mítica”, que até hoje ele só encontrou em obras que se passam longe dos grandes centros urbanos. “Confesso que me vejo em busca de um texto urbano e atual faz tempo, mas que por sua vez também consiga se desfazer de um naturalismo relambido”.

Você já fez adaptações de obras literárias difíceis, para a TV e para o cinema. É sempre um desafio?

Minha motivação como criador, independentemente do suporte, é a passagem de um estado a outro estado. A cada instante, preparar os intérpretes, a equipe, eu mesmo, todos, como um pajé reúne suas folhas para depois extrair delas um conjunto de sensações. Essa é a alquimia que me interessa. Só passamos de um estado a outro se este conjunto de sensações existir. Só ultrapassamos a mera construção técnica se formos capazes de gerar uma linguagem, espécie de sonho, com tamanha força de contaminar a narrativa como uma peste.

E em Dois Irmãos, qual foi o maior desafio?

Ao me aproximar da literatura do Milton, foi necessário criar um estado de vidência, de transformação, de imaginação. Não conhecia Manaus. Tinha pouco contato com a região Norte do país. Mas a imaginação exige de todos nós um movimento: oferendar-se. Ir com a coragem de pertencer às entrelinhas da coisa, à tela ainda em branco. O fruto de toda essa necessidade é a linguagem. Além de fundar a narrativa, a linguagem é também o instrumento que, com seu rigor, desorganiza um outro rigor, o das verdades pensadas como absolutas, dos clichês etc… No meu modo de sentir, linguagem é a mesma coisa que necessidade. Por outro lado, o destino humano é a luta contra o tempo. E o tempo é um dos personagens invisíveis que conduz o romance. Imaginar o tempo foi um enorme desafio. Como refletir sobre a passagem do tempo e a finitude das coisas na TV?

Eliane Giardini como Zana, na terceira fase da história

Entrar no texto de Dois Irmãos exigiu remexer memórias, tempo, espaços. Não se trata de uma adaptação simples. Pouco acredito em adaptações. Adaptação é o mesmo que redução, mais ainda quando se busca um diálogo com uma alta literatura. Neste ponto, a Maria Camargo, roteirista, que também é escritora, compreendeu o processo muito bem, criando um recorte sensível da dramaturgia do romance, dialogando com a tragédia familiar e a reflexão que o romance apresenta. Este foi um grande desafio, se relacionar com instâncias como tempo e memória, partindo da literatura sem ser totalmente reverente a ela e, por outro lado, sem cair nas armadilhas das adaptações convencionais.

Você conversou muito com o Milton Hatoum?

Conheço o Milton desde a montagem do Lavoura Arcaica, quando passei uns tempos morando em São Paulo na casa do Raduan. Milton foi a primeira pessoa que assistiu aos copiões do Lavoura. Relato de um Certo Oriente, seu primeiro livro, foi um dos que estudamos na preparação do Lavoura. Então sempre conversamos muito sobre as coordenadas de Dois Irmãos. Mas aqui no galpão onde desenvolvo meus trabalhos, organizo dois tipos de treinamento: o teórico e o prático. No teórico, promovemos encontros e reflexões com antropólogos, sociólogos, pensadores e, entre eles, o próprio Milton. Reúno todo o elenco e equipe. Ficamos repassando as coordenadas do romance. É uma estrutura que lida com temas familiares e, ao mesmo tempo, traça um painel histórico, antropológico e político que se reflete na mesa daquela família de imigrantes libaneses. Este diálogo entre os odores dos quartos e os do Brasil me guiou muito.

Vista em conjunto, sua obra aponta para cenários distantes dos grandes centros urbanos, voltada para o sertão, o interior, as profundezas do Brasil. Foi uma escolha sua desde sempre?

Confesso que me vejo em busca de um texto urbano e atual faz tempo, mas que por sua vez também consiga se desfazer de um naturalismo relambido. Meu caminho, pouco a pouco, sem que eu mesmo percebesse, buscou um diálogo com o viés mítico. Quando dei por mim, já havia trabalhado a partir de textos que produziram, cada qual a seu modo, este rico travejamento mítico: Hoje é Dia de Maria, Pedra do Reino, Lavoura Arcaica, Dois Irmãos. Todos se passam longe dos centros urbanos. Foi uma coincidência por um lado. Digo por um lado, pois continuo interessado nos vetores míticos do país, numa espécie de escavação, em uma perspectiva histórica e ao mesmo tempo lúdica. Sei que na televisão isto é muito difícil e delicado, mas, sinceramente, esta é a tentativa: tocar nas contradições arquetípicas do país, nas coordenadas sociais e humanas que nos trouxeram até aqui. Lembro-me daquela reflexão viscontiana: “Ao nos colocarmos diante da beleza, nos deparamos com a Morte”.

Antonio Fagundes e Irandhir Santos como Halim e Nael

Sinto estas forças contraditórias quanto mais pesquiso a tal brasilidade. Elas estão presentes também em Dois Irmãos. Não há refúgio. A brasilidade é uma potência indizível, não tem apenas uma face ou nome. Somos uma cultura multifacetada. Onde quer que se esteja, qualquer região, perceberemos sempre o espírito barroco dos contrários, nos elevando e nos soterrando. Somos um país profundo, e seguir investigando criativamente este subsolo me interessa.

Uma de suas marcas é a intensa preparação de atores. Como foi com o elenco de Dois Irmãos?

A minissérie é uma resposta ao livro, uma reação, mas que jamais nega a sua fonte — ao contrário, avizinha-se dela — porém, o mais invisível possível. Para isto é preciso um método para os atores, que difere a cada escritor e que fará parte da própria obra sobre a qual se está trabalhando. O material essencial dos escritores são as palavras. Dos atores, a imaginação. Em Dois Irmãos, as palavras nos dão a impressão irresistível de estarem sendo vividas no ato da própria escrita, dando a este acontecimento a faísca de um embate entre alta passionalidade e alta reflexão. Dentre as várias possibilidades que se abriam para encontrar um método de trabalho com os atores, nenhuma outra se revelou mais indicada que a presença do pensamento de Antonin Artaud: “Onde outros propõe obras, eu não pretendo outra coisa a não ser demonstrar meu espírito”.

Por que o formato widescreen?

Assim como o romance atravessa vários períodos históricos, parti dessa premissa para, em paralelo, contar também a história da construção das imagens. A partir dos anos 50, com a invenção da televisão, o cinema criou o widescreen como forma de seduzir o público para ir aos cinemas. Neste período, que vai fortemente até os anos 70, o widescreen foi o formato mais usado como representação da vida nos filmes. E este é o período em que mais transcorre a história de Dois Irmãos. Então, decidi que a narrativa visual deveria ser representada pelo formato icônico do período.

O paralelo com a história da construção das imagens não se deu apenas através do formato. Lentes e refletores que acompanham cada período da história foram recuperados; ou seja, reformamos refletores da década de 40 até 80. O vocabulário da fotografia é todo conceituado a partir de técnicas, procedimentos e equipamentos usuais das décadas onde se passa a história: lâmpadas de filamento, (quase nunca usadas hoje em dia), até a chegada do neon, do hmi (refletor de cinema dos anos 80) e as lâmpadas de LED, nas ultimas sequências da minissérie. Então, o que se vê nas entrelinhas dos acontecimentos da história é também uma história da representação das imagens, da “evolução” dessas visualidades. A câmera era uma HD 4K de última geração, porém sempre aliada à lentes dos anos 60 e 70, que foram reformadas, necessitando de adaptadores para serem acopladas ao HD. Essa ótica traz toda a textura da época. Não recorri a recursos de pós-produção, como efeitos especiais, para emular determinada atmosfera. Toda a imagem foi criada no set a partir da ótica e da luz. Não há praticamente efeito de computação na história. O que há é o resultado óptico de uma época.

--

--