A saga mineira de "Arábia"

Affonso Uchôa e João Dumans falam sobre as inspirações do filme — claramente político — que chega aos cinemas

Paula Carvalho
Revista Bravo!
16 min readApr 4, 2018

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Foto: Divulgação

Continuação indireta de A Vizinhança do Tigre, Arábia chega aos cinemas nesta quinta-feira (5) após longo trajeto por festivais em 2017 (foram mais de 50 internacionais, além da aclamação no Festival de Brasília (o filme levou 5 prêmios: Melhor Filme, Melhor Ator, Melhor Trilha Sonora, Melhor Montagem e prêmio Abraccine). Affonso Uchôa desta vez dirige em parceria com João Dumans, que já foi roteirista do primeiro longa.

A mineirice é evidente na dupla: Uchôa é de Contagem (cenário de Vizinhança); Dumans é de Ouro Preto; Arábia é uma saga de Cristiano (vivido por Aristides de Sousa, o Juninho) pelo estado. Contado em retrospecto, a partir de um diário encontrado por um menino da vila operária de Ouro Preto, a vida de Cristiano perpassa o Norte de Minas, cidades como Itabira (do poeta Carlos Drummond de Andrade) e Ipatinga, até chegar à cidade colonial que o emprega como metalúrgico.

Antes, Cristiano é catador de mexericas, pedreiro, operário de uma fábrica de tecidos. A história de sua vida, em retrospecto, é uma reminiscência de formação de consciência, como pontua Uchôa.“Para o trabalhador e trabalhadora médios, sujeitos que não têm conexão com nenhum desses instrumentos [movimentos sociais ou religiosos], não tem sindicato, não tem Pastoral da Terra, não tem igreja. Não tem nada. O que acontece é que a relação do Brasil com esses sujeitos foi de completo aparte mesmo, e de negação da consciência. E a substituição da consciência pelo consumo. E para a gente a história do Cristiano é uma história de exceção. De um sujeito que a partir de um certo momento, quando nada parece bastar, começa a se perguntar”, conta.

A Bravo! conversou com os diretores sobre as motivações do filme — especialmente sobre o contexto brasileiro e sobre como o longa se insere na tradição do cinema político do país a partir de um outro momento: o dos trabalhadores isolados, numa conjuntura neoliberal que aprofunda ainda mais a desconexão entre trabalho e vida. Leia abaixo o papo.

A realidade que vocês mostram no filme é pouco usual, especialmente no retrato de Ouro Preto, normalmente tratada como uma cidade turística. Como chegaram nesse ponto de vista?

João Dumans. No plano inicial do filme, o garoto que está vindo de bicicleta vem do centro histórico em direção à vila operária. Ouro Preto, ao contrário de uma cidade como Tiradentes, tem muitas formas de sociabilidade. Tem a cidade turística, tem a parte das repúblicas, que convive muito com a parte histórica em torno da universidade, que é muito grande, e tem essa parte que fica ali na fábrica, na vila operária que a gente filma, que tá bem próxima — a 5 minutos do centro. É a realidade dos trabalhadores e trabalhadoras que ainda continuam dependentes das grandes empresas mineradoras siderúrgicas e metalúrgicas, e que é também a realidade do entorno de Belo Horizonte (como Contagem, cidade do primeiro filme de Uchôa). O que motivou a gente é justamente esse contraste entre o que é a cidade da forma como ela é conhecida — que significados a gente associa a Ouro Preto — e uma realidade que ainda se observa cotidianamente que tem a ver com o trabalho, nessas empresas, e um certo tipo de opressão e violência que está por trás desse sistema. Tanto é que a região em que aconteceu o crime da Samarco é muito próxima, a uma hora da fábrica que a gente filmou. Para nós interessava mais essa Ouro Preto dos trabalhadores do que a Ouro Preto colonial.

E tem essa não-representação desse lado da cidade, que é muito pouco conhecida.

JD. E tem muito mais: tem a questão da desigualdade racial ainda muito forte. Um grande amigo que trabalha lá, o Douglas, tem insistido muito também nessa ideia de como a imagem de Ouro Preto, do barroco, atende a uma construção histórica feita num certo contexto modernista no Brasil. E de como, culturalmente, ainda tem muita coisa que ainda está relegada ao esquecimento, mesmo em Ouro Preto. Então é uma cidade que, apesar de ser Patrimônio Mundial e tudo mais, tem muitas faces. Parte delas são fruto desse processo de transformar a nossa história em monumento, em patrimônio. Por um lado isso tem uma importância muito grande de preservação, mas por outro é uma construção meio ilusória da realidade da cidade e das pessoas que vivem no entorno. Isso é uma das grandes questões que a gente quer trabalhar.

Vi vocês comentando que o filme é como se fosse um romance de "formação de consciência" pela trajetória Cristiano. E tem muito a ver com a ligação com o operariado do ABC [presente em cena do filme], aquilo vai mudando a cabeça dele. Em lugares como Salvador, por exemplo, talvez essa formação de consciência tenha mais a ver com o movimento negro, movimentos raciais.

Affonso Uchôa. Para mim é muito claro que a associação do Arábia à forma do romance de formação não é um encaixe perfeito. Porque não é um tipo de formação que se espera desses “coming of ages”. Não são necessariamente as experiências vividas as primeiras vezes que formam a personalidade, e sim as que vem de memórias. Algo que, quando se olha para trás, constrói a personalidade. Mas essa construção de personalidade tem uma íntima relação com a construção de uma consciência. Então é o romance de formação de uma consciência, acima de tudo. E o que acontece é que o Cristiano e essa formação de consciência são uma exceção no Brasil recente. Ele vem dessa classe desamparada, que é o que restou aos trabalhadores e trabalhadoras do Brasil hoje. Estão desamparadas de qualquer instrumento da sociedade que possa abrigá-los. No caso dos trabalhadores rurais, tem os Sem Terra, a Pastoral da Terra, a união com a Igreja Católica: ali se conduziu para uma certa consciência de uma fatia dos trabalhadores rurais. Alguma coisa ainda resta hoje. Já lugares mais urbanos como Salvador e outras regiões, que têm movimentos mais identitários, há um processo desses movimentos em que se conduz a uma certa consciência. Agora, para o trabalhador e trabalhadora médio, o sujeito que não tem conexão com nenhum desses instrumentos, não tem sindicato, não tem Pastoral da Terra, não tem igreja. Não tem nada. O que acontece é que a relação do Brasil com esses sujeitos foi de completo aparte mesmo, e de negação da consciência. E a substituição da consciência pelo consumo. E para a gente a história do Cristiano é uma história de exceção. De um sujeito que a partir de um certo momento, quando nada parece bastar, começa a se perguntar.

JD. Uma coisa que acho muito assustadora no Brasil — e que coloca a classe média intelectualizada numa espécie de beco sem saída. Há uma certa percepção de uma desconexão entre coisas que são percebidas na vida real dos trabalhadores — a injustiça, a desigualdade — e o voto. Isso está desconectado, na cabeça das pessoas, da construção de uma política digamos institucionalizada, representativa. Isso é uma coisa maluca, é um problema que se coloca para todos nós. E a gente sabe que a elite vota em políticos conservadores, mas é difícil essa equação em que populações que tão sendo violentadas ou excluídas por políticas econômicas que muito claramente atendem a certos interesses de elite estejam votando em políticos que representam isso. Então acho que o processo do filme também, do Cristiano, tem a ver com a formação dessa consciência assim: como eu ligo os dados da minha percepção real em relação ao mundo e como isso se reflete no pensamento, que tipo de ideia eu posso construir a partir de coisas que percebo cotidianamente, das injustiças que percebo? A construção de uma consciência é ligar essas duas coisas. É entender que tipo de mecanismo, que tipo de decisões, escolhas e políticas estão fazendo com que a sua vida seja conduzida para um determinado lado ou não. Isso, para nós, era importante — que fosse ele que narrasse e construísse esse processo.

Há uma ligação forte do filme com a ideia do precariado que surgiu pós-globalização. Vocês fazem referências a filmes políticos dos anos 1980, como Eles não Usam Black‑tie, de Leon Hirszman. Mas o Cristiano já está em outro momento desse processo, um momento em que o trabalhador está sozinho.

AU. É engraçado você mencionar isso porque inclusive é uma pergunta que a gente se fazia: será que a gente tá falando de um trabalhador que não existe mais? Será que não estamos falando de um passado? Mas a gente depois começou a sacar que não estava querendo colar em um tempo específico — Brasil 2016 ou 2017. A trajetória do Cristiano é sincrônica a um processo que não se resume em três, cinco, dez anos. É mais uma figuração de um processo que a gente vive desde o pós-anos 1970, quando tem uma inclinação neoliberal na economia global e isso tem um impacto direto na realidade. E esse impacto, a gente vai sacando mais hoje, também é sobre nossa subjetividade. Nossa relação com o mundo e com nós mesmos, com a maneira que a gente pensa, sente. E o principal efeito disso é que a gente tem uma espécie de naturalização da ideia de que as vidas têm de ser sujeitas ao mercado e à mercadoria. E isso pode ser asfixiante. Tem gente que não acha um problema o discurso do “se sujeite, se entregue, seja empreendedor, seja alguém que está de fato sendo contaminado por essa febre da competição, e no fim você vai atingir o mérito”. Tem gente que acha isso bom. Na visão de mundo que a gente tentou trazer pro filme, a ideia é que esse processo é nocivo. E que o impacto também sobre a personalidade das pessoas, o jeito de as pessoas estarem no mundo, é negativo. O Cristiano pra gente é um pouco isso. E esse precariado que a gente pode associar ao Cristiano é só a contrapartida institucional do trabalho nesse mundo. O que é trabalhar, como é ser trabalhador nesse mundo? É ser um ser desgarrado, ser um sujeito cada vez mais individualizado, cada vez mais sem nenhuma noção do que é o coletivo, sem uma instância na sociedade em que consiga construir algo conjuntamente. É cada um por si. A gente vive num Brasil agora em que uma nova legislação oficializa essa situação de extremo isolamento dos trabalhadores, que são os tais acordos individuais que se sobrepõem a negociações coletivas. A gente sabe onde essa merda vai dar. Mas, claro que a gente pode associar isso à trajetória do Cristiano. O Cristiano é só mais um nesse processo.

JD. Tem uma coisa nesse mundo neoliberal: a gente se acostumou a pensar muito em termos de estatística. Então as políticas públicas são tomadas a partir de diagnósticos estatísticos. Por exemplo: eu trabalho com terceirização mas pensando na taxa de diminuição de desemprego, e quanto isso reflete nos números. Mas isso que o Affonso falou em relação à subjetividade acho que nós, enquanto artistas e pessoas que querem olhar para essa realidade, temos a obrigação de colocar nessa equação uma outra dimensão, que é a subjetiva. Porque ela não pode ser capturada pelos números — ela vai se refletir a longo prazo, em outros números, como violência e tal. Mas não pode ser capturada. Todo mundo trabalha pra caramba. O mínimo que pode acontecer é que esse trabalho tenha algum tipo de propósito, que signifique, que você entenda a natureza e o propósito daquilo que você está fazendo. E isso implica em ter uma relação com seu lugar de trabalho, com seus colegas, ter um mínimo de orgulho do lugar que você trabalha, entender como aquele trabalho pequeno que você está fazendo vai se refletir no produto final, qual o seu papel. Acho que essa estrutura do sentido único do dinheiro foi boa no Brasil num certo momento porque permitiu uma certa equiparação, algum tipo de democracia, e no consumo se via que a vida estava melhorando. Mas a merda toda da forma como a coisa está estruturada é que isso não basta para que as pessoas consigam ser felizes ou enxergar algum sentido naquilo que estão fazendo. E aí acho que é um dos efeitos mais nefastos da terceirização e dessa suposta flexibilização é de criar essa desconexão mesmo. E isso está refletido um pouco no filme quando o personagem se pergunta: por que que eu estou fazendo isso mesmo? Por que estou fazendo esse tipo de trabalho? E isso não é uma coisa exclusiva de trabalhadores de metalúrgicas ou de siderúrgicas, eu acho que é uma questão que nós todos nos colocamos, mas que talvez pra nós seja mais fácil encontrar esse propósito. Existe um outro tipo de trabalho em que essa resposta não é tão simples e passa por conexões entre pessoas, entre lugares, hábitos.

AU. Isso me lembra muito — é algo que nos inspirou — a cena do Peões, do [Eduardo] Coutinho. É belíssimo quando pai e filho metalúrgicos contam que o pai falava, quando ele era pequeno, que ele tinha feito o caminhão que ele estava vendo. Esse orgulho e essa relação de algum reconhecimento entre o seu trabalho e o produto do seu trabalho o estado atual do capitalismo dissolve. Acaba com isso. O que acontece é irmão gêmeo de outro estado do capitalismo que é a virtualização constante das coisas. A dissolução da experiência. As coisas não são mais reais, vão virando cada vez mais fugidias, meras impressões, tudo é imagem. Você não tem mais uma relação concreta com absolutamente nada — inclusive com o seu próprio trabalho. E a contrapartida direta é a dissolução da sua própria identidade. Do poder de reconhecimento no mundo. E puxando uma outra citação que se relaciona com isso: o final do filme foi inspirado de certa maneira num poema do [Cesare] Pavese, o Disciplina. Tem um verso no final que diz que a cidade nos deixa levantar a cabeça e olhar a vista, mas sabendo que após isso voltaremos, baixaremos. A fábrica só deixa levantar a cabeça por um breve momento, porque sabe que o que está ali embaixo, para onde sua cabeça está olhando bovinamente, é o que faz o seu corpo e sua cabeça estarem ali. E o que acontece se a cabeça não voltar? Se a fábrica vacilar e deixar que a cabeça não volte pra onde a mão está trabalhando, talvez o sujeito se questione sobre tudo isso e perceba que não consegue nem mostrar pra outras pessoas que fez isso. Não consigo nem dizer que tenho orgulho disso que eu fiz. Não consigo nem saber o quê e para quê estou sabendo. Acho que é esse o principal problema do precariado: não se reconhecer como trabalhador e trabalhadora.

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JD. E, só complementando, tem a ver com essa coisa do individualismo. Esse espírito de identificação e de propósito é a única coisa que gera consciência coletiva. Sei que os trabalhadores metalúrgicos vão se organizar num sindicato porque têm problemas de propósito, dificuldades comuns. Quando crio essa desidentificação com o lugar de trabalho ou com os colegas, estimulo um tipo de comportamento… É a nossa dificuldade hoje no Brasil, a gente foi cultivado numa atmosfera de individualismo em que a trajetória de cada um é o que importa.

Fora essa questão global do individualismo, não tem no Brasil uma questão mais específica do crescimento muito grande da igreja evangélica e dessa mentalidade weberiana [em que trabalho e mérito são mais valorizados]? É uma coisa que talvez seja legal de pensar para falar do Arábia porque Minas é conhecidamente super católica, tradicionalmente, e agora talvez esteja sob essa influência.

JD. É uma coisa ambígua, nesse sentido. No ponto de vista da filosofia e da retórica, a igreja evangélica estimula o individualismo. Mas ela é a única instância coletiva popular hoje presente na periferia. Então você percebe que existe uma necessidade, uma carência de identificação coletiva, que ela supre também. Só que ao mesmo tempo numa retórica totalmente individualista. Quem sou eu ? Jamais seria capaz de defender a igreja católica, ainda mais vindo de uma cidade como Ouro Preto. Mas tenho a impressão de que a filosofia que está por trás — não o rito — é um caminho mais fácil para que você questione o individualismo. A filosofia que está por trás da religião católica. Tanto que no Brasil muitas vezes essas coisas se associaram, igreja, esquerda etc.

AU. Existe algo na concepção do catolicismo que parte de uma certa abnegação, de um certo louvor à pobreza, que traz para isso. Isso abre a porta pra uma discussão de esquerda de igualdade. Isso não acontece no evangelismo. A ideia é que a pobreza tem de ser superada, uma coisa de investimento e ganho. A gente passa pra outro lugar. Ao mesmo tempo o voto de pobreza do catolicismo é pura e simples hipocrisia.

JD. A coisa é tão regressiva que é o caso de entender quais são as instâncias de identificação coletiva para as pessoas que estão aí, os jovens…

AU. O que é mais triste do evangelismo é que não é como nos Estados Unidos. Lá é isso também, a presença evangélica é gigantesca, mas a ameaça não é tão grande lá como é cá. O Trump não é um maluco evangélico. O que acontece lá é que tem grana. Você tem uma periferia inteira do Brasil cada vez mais seduzida por um canto da sereia de jogar todas as esperanças em busca de migalha. Porque não é para ficar rico, como os americanos. Não é um discurso de reeducação financeira para você ganhar mais grana. Aqui é para você ganhar o mínimo. Isso que é o mais triste, você não vê nenhuma compensação financeira.

Como construíram o roteiro? Foi criado com trabalhadores do campo e operários como os ambientes de trabalho de Cristiano?

AD. Nosso roteiro foi construído durante muito tempo e no limite, principalmente pela voz off, a gente só o terminou na ilha de edição, na montagem. E não teve necessariamente um trabalho de pesquisa de campo. O que a gente fez foi colher de forma muito diversa informações de fontes as mais variadas possíveis. Nesse caldo vêm livros e obras fundamentais — São Bernardo, do Graciliano Ramos, Malagueta, Perus e Bacanaço de João Antonio, todos aqueles contos, Jorge, um brasileiro do Oswaldo França Júnior, John dos Passos. Foram coisas que inspiraram cenas, tem momentos inteiros do filme baseados nesses livros. De filmes: Ermanno Olmi, Peter Bogdanovich, o próprio Leon Hirszman, tem relação com o Eles Não Usam Black-Tie, que é um filme que a gente adora. E também coisas da própria vida: nossa experiência com o Juninho, que é o ator principal, que já vinha desde o Vizinhança do Tigre e que passa para um outro nível nesse filme. Nossa relação com ele vem de duas maneiras: a gente pediu para ele escrever um caderno durante o processo do filme em que contasse alguns casos da vida dele. A gente não usou nada em termos de situação, mas foi muito interessante para gente descobrir um pouco da sensibilidade dele e pensar que tipo de coisas podiam passar pela cabeça de um sujeito como o Cristiano, que tem muito a ver com o Juninho. E que tipo de palavras ele podia usar. Enfim, ajudou a descobrir uma certa voz desse personagem. E a outra coisa que o Juninho ajuda no roteiro é como inspiração — a sua vida, a pessoa, pelo corpo. E percepções nossas sobre o que é ele, essa coragem, esse nunca abatimento. O cara tem uma vida super conturbada e ao mesmo tempo não se permite ser pessimista nem melancólico. Apesar de o filme ter um final mais triste, durante boa parte da trajetória ele vai se fodendo mas não vai se abatendo. Vai seguindo adiante. Essa coragem vem da nossa percepção do Juninho e de sacar que tem uma galera como esse cara no Brasil. Tem vários Cristianos e vários Juninhos por aí. A gente pega essas coisas, de fontes as mais variadas, e mescla na nossa narrativa.

JD. O mais próximo — não é muito bem uma pesquisa — são processos que a gente viveu, mesmo. Por isso que a gente não gosta de chamar de pesquisa. São coisas que estão passando pela sua vida real, cotidiana. Uma vez que a gente termina Vizinhança e Juninho, Neguinho e Menor se tornam meus amigos — já eram do Affonso — você passa a compartilhar certos problemas e certas questões como você compartilha com outros amigos ou família. Eles passam a fazer parte da sua vida. As idas para a prisão, a falta de emprego, a desilusão com trabalho e tudo isso. São coisas que você está vivendo e vão te inspirando a tratar porque fazem parte do seu mundo. O mais próximo que a gente pode ter feito de uma pesquisa foi quando fomos para a vila operária mesmo, que a gente ainda não sabia que ia filmar, e a fábrica dos anos 1950. A vila foi construída em torno da fábrica — tem a vila operária, a dos engenheiros e a dos encarregados. É uma divisão muito de classe mesmo. E para nós foi muito importante porque a gente conversou com as pessoas e tentamos entender a relação das pessoas com a fábrica. Nesse momento apareceu uma contradição que é fundamental, e ela está como pano de fundo do filme: ao mesmo tempo há violência e há dificuldade de conviver com a poluição e o ruído. Parte das pessoas detestavam a fábrica, porque era um motivo de incômodo e prejudicava a saúde, e outras tinham uma devoção absoluta pela fábrica. Era realmente em torno dela que tinham construído a vida delas, a fábrica era a mãe e o pai dessas pessoas, era a fábrica que dava seguridade social, atendimento médico, que mandava presente no natal e tal. E as pessoas se sentiam amparadas. Então acho que essa ambiguidade é da própria natureza do trabalho também, isso marcou muito a gente. A gente sabia que essas contradições em relação à opressão e o caráter destrutivo do trabalho mecanizado e industrial que está presente ali o tempo todo. Ao mesmo tempo, existe esse caráter dignificante, de dar propósito a essas vidas e fazer com que elas se identifiquem com alguma coisa. Isso é uma realidade da fábrica, que está presente até hoje, inclusive como conflito dentro da própria comunidade, quando são disputadas questões. A fábrica atualmente está fechada, para a felicidade de muita gente e para o desespero de outras pessoas que tinham lá o sentido da sua vida. Isso também é uma coisa que perpassa todo o filme, essa alegria e força proporcionada pelo trabalho e ao mesmo tempo essa coisa meio destrutiva.

O que está acontecendo também na Samarco.

JD. Totalmente. Quando essa fábrica fechou, muitas pessoas foram para a Samarco. E a Samarco era também considerada uma fábrica boa de trabalhar, as pessoas tinham direitos e tal. E essa contradição existe até hoje, porque a comunidade de Bento [Rodrigues] obviamente não quer que a fábrica volte, quer ter a cidade de volta, e enquanto isso há uma massa gigantesca de desempregados que querem que a fábrica volte e que estão sem emprego. Isso está presente até hoje. O pior nesse caso é que enquanto essas pessoas sofrem, os responsáveis por esse crime e os diretores dessas empresas estão aí, soltos, vivendo suas vidas normalmente.

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Paula Carvalho
Revista Bravo!

jornalista, doutoranda em sociologia na usp. quase tudo em torno de som 🎛 pra mandar mensagem: paula.cncarvalho@gmail.com