A troca como obra de arte

Entre residências, viagens e contatos, Gio Soifer encontra no gesto e no efêmero a sua expressão artística

Felipe Abreu
Revista Bravo!
5 min readJun 18, 2018

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Imagens de Anticorpos / Gio Soifer.

Uma lista de campos de atuação e interesses, que passam pela “itinerância”, o “contexto” e “o encontro”, “o corpo e a conversa”. Lá no final da página do seu site, apresentada apenas para os que fizerem uso da barra de rolagem, está a frase: “também faço fotos.”

É assim que a artista curitibana Gio Soifer se apresenta, brincando com sua relação antiga com a fotografia, às vezes inspiração, às vezes fantasma. A movimentação geográfica constante é parte marcante deste processo de criação e, não por coincidência, o início de sua prática artística se dá fora de sua terra natal: “Foi em uma dessas errâncias, quando fui morar em Israel, que comecei a fotografar — caminhar e fotografar, coisas que vieram juntas, o deslocamento e a criação de imagens. Ter uma câmera na mão era a desculpa perfeita para as minhas derivas.” Gio entendia a fotografia como uma forma de iniciar conversas, de se aproximar de estranhos. Este processo evoluiu e se radicalizou com o abandono da câmera e com o desejo de trabalhar diretamente a conversa, algo que acompanhará boa parte da trajetória da artista.

Um segundo momento de contato com a fotografia e com a expansão de seus limites se dá na escola Blank Paper, em Madrid. Cursando o master da instituição, Gio transforma um problema de saúde em motor criativo. “Tive um problema de pedra no rim. Fiz um exame e o resultado mostrava um monte de blocos de cor, e isso serviu como input para começar a estudar questões cromáticas, desenhar, pintar. Esse processo gerou o meu trabalho Anticorpos, que junta escultura, pintura, fotografia e que fala essencialmente do meu corpo como um território.”

Mais do que se centrar em uma prática artística específica, Gio apresenta um interesse mais profundo pela vivência, pela troca e pelo registro de um processo de criação. São várias experiências artísticas que estão centradas no diálogo e em um entendimento da arte como vivência e contato, muito mais do que como materialização. Para ela não faz mais sentido criar novas imagens, mas sim propor o encontro com pessoas, aproximando artista e público. Dentro desta lógica criativa me parece marcante o projeto Hoy Declaro Un Cuerpo Vivo desenvolvido durante um período de residência artística de dois meses no sul da Espanha:

“Estava voltando para casa, e no meio do caminho cruzei com um carro funerário que anunciava, com uma voz grave, a morte de alguém. Essa voz sem corpo, com um anúncio tão sério, logo me fez pensar na voz da morte. Inspirada por este encontro passei a pedir para as mulheres que encontrava que descrevessem seus corpos em voz alta. Com este material criei um Frankenstein, uma união de corpos baseada em trechos dos variados depoimentos. Volto, então, para o carro funerário, contrato o anunciador para que, em vez de anunciar uma morte, anunciasse este corpo coletivo: Hoy Declaro un Cuerpo Vivo, Tengo Corázon… Nesse momento a fotografia se vai, apesar de ser um trabalho fotográfico, de certa forma, já que, ao escutar este anúncio você constrói a imagem deste corpo coletivo em sua mente.”

Nesse caminho de afastamento da imagem fixa e de uma criação mais coletiva e efêmera, Gio funda, junto de Erica Storer, Estelle Flores, Jéssica Luz e PAC Calory, o coletivo Brutas, um estudo constante de performance, vivência e criação coletiva. Há nas obras do grupo um interesse constante pelo contato, pela interferência e complementação da produção individual, propiciando projetos que flutuam entre a performance, seu registro visual e uma vivência artística muito ligada ao corpo feminino e seus gestos. “O processo é o que mais me interesse quando estou com as Brutas. A partir do momento que atuamos e trabalhamos juntas, mais do que os assuntos que a gente aborda nos trabalhos, me marca mais esta utopia de criar um mundo coletivo.”

Como materializar uma conversa? / Brutas Coletivo

Todo esse processo de errância, essa construção coletiva e uma radicalização do gesto criativo, leva à criação da Encosta Residência, o projeto mais recente da artista, em desenvolvimento na Ilha do Mel, no Paraná. Depois da primeira edição, realizada em 2017, a residência deve fazer chamadas anuais, entendendo que a vivência durante este período será, em si, um gesto artístico.

“É muito potente estar na Ilha. O território tem uma força em si e não tem nenhum carro, permitindo uma experiência muito mais direta, de uma escala mais presente, em que os encontros inevitavelmente acontecem. Além disso, o formato da casa em que acontece a residência é muito legal, com a cozinha no centro. Isso gera uma convivência e uma troca muito fortes, tanto que um dos trabalhos a sair da primeira residência foi um jantar, uma massa italiana feita por uma das residentes para a comunidade da Ilha.”

Gio Soifer ainda guarda resquícios de seu início de trajetória com a imagem fotográfica, mas há um desejo constante de se aproximar, de propor vivências e um contato direto com que se aproxima de sua obra. Além disso, ela se vê sempre em movimento, buscando novas residências, sempre ouvindo o que seus arredores têm a dizer:

“Gosto de pensar em uma prática da itinerância na qual o corpo é deslocado e se desloca. Entrar em movimento é um processo de constante escuta, é o corpo vivo que provoca e escuta, escuta e provoca. O contexto no qual o corpo acontece é o que me interessa nos trabalhos. Por isso penso cada vez mais nos projetos como proposições. Propor de acordo com meu estar, com meu corpo e com o espaço, com quem recebe e com o público, que podemos chamar de destinatário. Essa relação me agrada, ser uma artista de forma mais horizontal, com uma troca real. Quero sair transformada destes processos.”

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