A voz ativa dos negros marcados para morrer

O que existe de "Cabra Marcado Para Morrer", de Eduardo Coutinho, no clipe que revisita "Voz Ativa", dos Racionais MC's

Acauam Oliveira
Revista Bravo!
8 min readSep 24, 2020

--

PAUSA DE MIL COMPASSOS | coluna semanal

por Acauam Oliveira

Foi Carolina Leite, professora de Geografia Econômica na UFPE e amiga de longa data, que deu a letra: "bicho, tu já viu o clipe novo do Dexter, regravando Voz Ativa?" Não tinha visto. "Pois então veja. É de arrepiar. E acho que dá muito pra traçar um paralelo com o Cabra Marcado para Morrer".

Assisti. Era mesmo de arrepiar. E de fato, guardada as devidas proporções, lembrava uma espécie de Cabra Marcado para Morrer contemporâneo, com aproximações e distanciamentos de grande interesse.

O clipe é uma regravação feita por Dexter do clássico Voz Ativa, dos Racionais MC’s, gravado pela primeira vez em 1992. Pra quem não conhece, Dexter é uma dessas figuras fundamentais dentro do hip hop nacional, parceiro de longa data dos Racionais MC’s e fundador, ao lado de Afro-X, do ontológico grupo 509-E. Ao lado de tantos outros nomes, Dexter, ex-detento, encarna o próprio aspecto emancipatório do rap em sua face mais radical: a subversão da condição histórica do homem negro no país, que deixa de servir como combustível para a máquina de moer gente que se convencionou chamar de Brasil ao transformar seu próprio corpo em objeto de orgulho e suas palavras em arma. Dexter, outrora carne, tornou-se a própria navalha.

Mas quais sentidos podemos depreender da regravação desse clássico de 1992 agora, quase trinta anos depois? Bem, é sobretudo nesse ponto que se torna interessante a aproximação sugerida pela Carol entre Voz Ativa e o documentário clássico de Eduardo Coutinho.

Grande parte da força de Cabra Marcado para Morrer consiste em sua capacidade de inscrever na própria matéria fílmica (com sensibilidade ímpar) o momento de interrupção de uma possibilidade de emancipação popular real, que marca o fim tanto de uma alternativa histórica quanto de um projeto estético progressista. O projeto inicial do filme, anterior ao golpe militar de 1964, era narrar de forma ficcional o assassinato da liderança camponesa negra João Pedro Teixeira, utilizando-se dos próprios integrantes do movimento popular como atores, incluindo a companheira de João e liderança popular Elisabeth Teixeira. O projeto, entretanto, foi interrompido pelos militares com a criminalização política e consequente perseguição dos camponeses e da equipe de filmagem que, ameaçados de morte, trataram de fugir.

Ao retomar o projeto anos depois, já no contexto de abertura, Coutinho tem a brilhante ideia de recuperar o material antigo e reencontrar parte do elenco remanescente do projeto inicial, tomando a trajetória de Elisabeth como eixo de articulação histórica/narrativa, cujo resultado é um dos mais brilhantes documentários da história do cinema nacional. Ao atar as duas temporalidades (pré-golpe e pós-abertura), o filme constrói uma reflexão crítica sobre sua própria impossibilidade, atesta in loco os efeitos devastadores do avanço do latifúndio sobre a vida dos mais pobres, além de resgatar a agência e dignidade radical daqueles que resistem e sobrevivem ao projeto de aniquilamento ditatorial. Afinal, Elisabeth Teixeira segue viva ainda hoje, e sua existência e lucidez são o oposto da política de morte que o país oficial tem a oferecer enquanto projeto.

Além disso, o filme termina por funcionar como documento vivo da impossibilidade de realização do caminho emancipatório que foi abortado pelo golpe no contexto de abertura democrática. O sonho de realização da utopia, que uniu momentaneamente os setores mais interessantes da intelectualidade progressista com organizações populares, rendendo avanços históricos e culturais fundamentais, foi interrompido pelo próprio processo de desenvolvimento de nossa modernização. Ou seja, a obra oferece uma visão crítica a respeito dos malefícios que a ditadura causou não apenas a família de Elisabeth, dispersa por todo o Brasil em condições de precariedade, mas a toda população mais pobre do país. Além de apontar para a radicalidade de uma perspectiva cultural orientada à esquerda, e seus limites concretos quando realizados apenas em termos culturais.

Nesse sentido, Cabra Marcado para Morrer encarna algo da própria temporalidade histórica do projeto civilizatório brasileiro, que se organiza a partir de um jogo permanente entre aniquilação e resistência, em que tudo aquilo que nos acontece de melhor é quase sempre contrário ao que o país tem a oferecer como projeto. E ao encarnar formalmente uma temporalidade histórica específica, torna-se um clássico atemporal.

Cena do filme Cabra Marcado para Morrer

É a partir desse horizonte que faz sentido a comparação entre o filme e o novo clipe de Dexter, pois nesse caso também estamos diante da formalização de uma experiência histórica que parte da incorporação estética de sua própria temporalidade como matéria de reflexão. O retorno após 28 anos dessa canção que denuncia a perpetuação do pesadelo periférico também é marcado por essa dupla inscrição de violência e resistência, cujo foco, entretanto, não é mais a ditadura militar e suas tecnologias de controle e extermínio, e sim o gene que marca o DNA do país desde seu nascimento: o racismo estrutural.

Desde o início a música reforça a mensagem de que de 1992 para cá pouco mudou. Seguimos nas mesmas estatísticas, a polícia militar aperfeiçoou seus mecanismos de violência sistemática e a branquitude criou novas formas de absolver-se de seus crimes, cometidos de forma cada vez mais desabusada. A comunidade negra segue na base da pirâmide, e a PM segue com o joelho em seu pescoço. O recado é claro e o papo é reto: nada mudou.

Por outro lado, a própria presença de artistas como Djonga e Coruja BC1 indica que as coisas não são exatamente as mesmas. O rap, afinal, deixou o seu legado, e em 2020 é perfeitamente possível afirmar que essa voz ativa não só existe como já criou uma escola própria que altera as coordenadas com que parte significativa da juventude negra periférica compreende a si e ao mundo. Exemplo disso, além da presença da nova geração de rappers, é o momento do clipe em que Djonga canta que ‘precisamos de um líder de crédito popular’, enquanto surgem, ao lado de imagens de militantes históricos estadunidenses como Malcon X e Luther King, nomes profundamente nossos como Silvio Almeida, Sueli Carneiro, Conceição Evaristo, Preto Zezé e Sérgio Vaz. Vivos e atuantes.

Nesse sentido, a dimensão de ruptura de um projeto emancipatório que sentimos no filme de Coutinho (a união da intelectualidade esclarecida com os camponeses, desfeita pela ditadura) não é da mesma ordem do que acompanhamos no clipe: a despeito da adversidade das condições, a periferia formou um conjunto de intelectuais orgânicos com profundo senso de continuidade histórica. Parte deles, inclusive (Dexter, Brown, Kl Jay) presentes em tela, o que contrasta radicalmente com a ruptura dos herdeiros de Elisabeth com suas próprias raízes (até o momento do filme nenhum dos filhos possuía uma imagem do pai, por exemplo). É esse sentido de continuidade presente no clipe que não aconteceu a partir do encontro da família de Elisabeth e João com a intelectualidade de esquerda, cuja articulação foi desestruturada pela ditadura e pelo avanço da lógica do capital.

É nesse ponto que podemos dizer que o clipe contempla uma perspectiva histórica que não está dada pelo filme: a de que os sujeitos periféricos construam e sustentem suas próprias formas de emancipação, sem a participação de intelectuais de classe média na condição de protagonistas. Talvez por isso o sentimento que emerge no clipe, ao contrário do filme, seja mais de continuidade que de ruptura, pois nesse caso a retomada é feita pelos próprios sobreviventes, que não apenas seguiram vivos como se tornaram grandes referências intelectuais para sua comunidade. O rap por assim dizer ‘dispensou’ os intelectuais progressistas de classe média para criar sua própria estrutura de pensamento, falando em nome próprio sem chancelas de nenhuma ordem. Talvez por isso o tom do filme de Coutinho seja mais de memória e resgate, enquanto o clipe, a despeito da consciência aguda da crise de valores, soe mais como uma tomada de fôlego antes do retorno às trincheiras. Parte da força estética do documentário está em sua forma narrativa única, que entrelaça inúmeras camadas narrativas (documentário, meta-documentário, ficção, meta-ficção) para incorporar o sentido histórico como fantasmagoria. O gesto político por excelência do filme é a sua forma, que une as pontas soltas dos sonhos emancipatórios estraçalhados pela ditadura. Em Voz Ativa, o político está, em primeiro lugar, nos sujeitos que seguem em processo de atualização da luta antirracista.

"Mas, sobretudo, o que faz lembrar o Cabra marcado para Morrer é que se tratam de sobreviventes", diz Carol, uma vez mais coberta de razão. Vozes que sobreviveram a opressão e ao esquecimento. A Voz Ativa de 2020 não é a mesma de 1992 porque nesse intervalo o rap criou um caminho para que sujeitos como Dexter, KL Jay e Brown sigam vivos para nos ensinar e servir de inspiração, interrompendo o ciclo genocida do Estado. Como Elisabeth Teixeira, os pretos mais perigosos do Brasil sobreviveram. Nesse sentido, a forma do clipe também encarna a dialética própria da sociedade brasileira, entre aniquilação e resistência.

Entretanto, assim como entre 1962 e 1981 o projeto de emancipação popular não se completou, 2020 reatualiza a seu modo o racismo predatório de 1992, destruindo vidas e desarticulando comunidades. A vitória do rap como tomada de consciência não está, portanto, na celebração acrítica de sua existência, mas na capacidade de reatualização de seu compromisso histórico com a coletividade negra periférica contra um modelo de sociedade que conduz a todos, mas sobretudos aos pretos, rumo ao apocalipse. Existe celebração — afinal, seguir vivo é uma vitória contra o sistema — mas a alegria nesse caso é também dotada de agressividade. É a alegria-capoeira, em que o que se celebra é a própria capacidade de lutar.

Somente um gênero que mudou e fez mudar tanto ao incorporar todo um conjunto poderoso de conhecimentos produzidos ao longo de anos de fortalecimento da luta negra no Brasil pode afirmar com tanta propriedade que, de 1992 para cá, nada mudou. Ou seja, é precisamente a perspectiva histórica da voz ativa que se forma em 1992 e segue viva em 2020 que torna possível reconhecer o que permanece de 1992 no presente. E é desse lugar também que emerge a derradeira sabedoria: manter o proceder, lição do grande mestre. Afinal, quem não conter… já sabe.

Ao final do filme, já em sua despedida, Elisabeth profere as seguintes palavras, que seguem profundamente atuais.

"A luta não para. A mesma necessidade de 1964 está plantada. A mesma necessidade está na fisionomia do operário, do estudante e do homem do campo. A luta é que não pode parar, enquanto tiver essa democraciazinha aí… uma democracia sem liberdade, democracia com salário de miséria e de fome, democracia com o filho do camponês e do operário sem condições de estudar".

A mesma consciência aguda da desarticulação da luta e da necessidade de reposicionamento frente a barbárie do presente une as vozes de Dexter, Racionais, Djonga e Coruja BC1 ao discurso de Elisabeth Teixeira, fazendo de suas palavras um clamor de resistência. Voz Ativa.

--

--

Acauam Oliveira
Revista Bravo!

Enquanto existir Deus no céu, urubu não come folha.