Série escrita e dirigida por Juliana Vicente ressignifica o afrontamento

Diane Lima escreve para a Bravo! sobre a nova série do Canal Futura, "Afronta", em que artistas e produtores culturais negros falam sobre suas vivências

Diane Lima
Revista Bravo!
4 min readNov 24, 2017

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Mahal Pita para Afronta. Foto: Diogo Lisboa.

Enfrentar, borrar, enegrecer. Afrontar.

Que está ligado com manchar a imagem: sujeira e borrão que contamina a superfície alva e clara, mas que também pode ser lido como um estigma, a desonra e a infâmia.

Enunciar. Uma afronta pela quebra do contrato de invisibilidade e do ciclo de opressão para fazer-se sujeito.

Edward Hildebrandt. Punishments. 1846–1849.

Anunciar. Retirar as máscaras e falar abertamente, despindo-se dos dispositivos representativos da política sádica do colonialismo, instrumentos criados também para manter o controle sobre a boca, o órgão por excelência da enunciação.

Junto com o não falar, o não ver e o não ouvir, julgar uma ação como um afrontamento, faz parte de um discurso tautológico usado como recurso de negação da branquitude, para manter a violência cometida pelos séculos do roubo do tempo, em segredo.

Em silêncio.

Este medo e desconforto de ter que ouvir as verdades do outro encontra no primeiro capítulo do livro Plantation Memories de Grada Kilomba, The Mask (A máscara), uma explicação. Segundo a autora,

O medo do branco em ouvir o que poderia ser possivelmente revelado pelo sujeito negro, pode ser articulado pela noção de Sigmund Freud de repressão, uma vez que a 'essência da repressão', ele diz, reside simplesmente em afastar alguma coisa e mantê-la a distância da consciência. Este é um processo em que pensamentos e verdades desagradáveis são processadas inconscientemente, fora da consciência, devido a extrema ansiedade, culpa ou vergonha que eles causam. Entretanto, enquanto enterrado na consciência como um segredo, ele permanece latente e capaz de ser revelado em qualquer momento".

Se trazemos para o contexto brasileiro, Maria Aparecida Silva Bento traça a relação da paranóia da branquitude, em criar outros dispositivos de controle para manutenção dos privilégios, como um elemento central na gênese das políticas institucionais de repressão do país desde os regimes de escravidão:

[…] esse medo assola o Brasil no período próximo à Abolição da
Escravatura. Uma enorme massa de negros libertos invade as
ruas do país, e tanto eles como a elite sabiam que a condição
miserável dessa massa de negros era fruto da apropriação indébita
(para sermos elegantes), da violência física e simbólica
durante séculos (….). É possível imaginar
o pânico e o temor da elite que investe, então, nas políticas de
imigração européia, na exclusão total dessa massa do processo
de industrialização que nascia e no confinamento psiquiátrico e
carcerário dos negros. (BENTO, 2002, p. 36).

E é sobre tais revelações que Afronta se materializa, ganha voz e se multiplica na série escrita e dirigida por Juliana Vicente e produzida pela Preta Portê Filmes em uma das mais importantes iniciativas realizadas neste ano pelo Canal Futura. Ao ocupar o lugar de fala, tomar a palavra e propor a sua ressignificação, o Afrontamento transforma-se em símbolo de resistência: enfrentamento na busca por dizer o que foi silenciado e recriar o que foi ficcionado tendo em vista a conscientização coletiva e o reconhecimento do trauma colonial e dos seus efeitos.

Grace Passô, atriz e dramaturga para Afronta. Foto: Diogo Lisboa.

Dividida em duas temporadas, cada uma com 13 capítulos, o programa, que tem concepção de Juliana Vicente e Diana Costa, cria uma cartografia precisa sobre como se expressam, se organizam e se delimitam as problemáticas e referências que compõem os processos de criação, e a produção cultural afro-brasileira do contemporâneo, inscrevendo historicamente em registro audiovisual, o retrato de um tempo.

Lançada no Dia da Consciência Negra, tanto no Canal Futura como na TV Preta, os episódios trazem as histórias de artistas, pesquisadores, escritoras, cineastas, designers e influenciadoras como a atriz e dramaturga Grace Passô, o produtor musical Mahal Pita, o rapper Rincon Sapiência e a criadora Loo Nascimento.

Junto com eles foram entrevistados ainda para esta temporada, a bailarina Ingrid Silva, os cineastas Gabriel Martins e André Novais, os organizadores da festa Batekoo, Jack Nascimento e Miranda, as irmãs Tasha & Tracie Okereke, a maquiadora Daniele DaMata, a escritora e artista visual Mariana de Matos, a mídia-ativista Thamyra Thâmara e o artista multimídia Benjamim Abras.

Trazendo memórias e contos da infância, transformando dor em potência, fazendo da condição lugar de originalidade, os episódios que também proporcionam um lugar de leveza e afeto, mostram como essa geração vem rompendo os estereótipos raciais criando novas narrativas e um descontínuo no tempo.

Com trilha de Renato Gama e Ronaldo Gama, produção executiva de Thais Morresi e edição de Washington Deoli, Afronta abre um diálogo para reflexão com quem quer sair da negação sobre a contribuição negra no Brasil numa série para ser encarada de frente.

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