Agora Somos Todxs Negrxs?

Diane Lima
Revista Bravo!
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4 min readAug 18, 2017

Inspirada na revolução haitiana, exposição curada por Daniel Lima provoca uma discussão sobre práticas de resistência, memória e apropriação.

Curada por Daniel Lima a exposição abre dia 31 de agosto no Galpão Videobrasil, São Paulo.

No século XVIII, um levante de consequências avassaladoras tomou conta do Haiti. Lutando pelo fim da exploração colonial nas Américas, a independência da república da ilha de São Domingos se consolidou como a única feita por cativos e libertos, tornando o país o primeiro a ser governado por pessoas de ascendência africana. A intenção de fundar-se como uma nação negra materializou-se na façanha que foi a proclamação do artigo 14 da Constituição Haitiana de 1805, que dizia: “Todos os cidadãos, de agora em diante, serão conhecidos pela denominação genérica de negros”.

De tamanha ousadia nascia o haitianismo, expressão criada para dar nome ao pânico gerado pela possibilidade de que uma insurreição daquela dimensão se repetisse em outros lugares da América escravista. Estigmatizado como inimigo de todos os regimes coloniais restou ao "somos todxs negrxs" do Haiti um apagamento profundo, tática de ocultamento do colonialismo para controle social e contenção de qualquer outra tentativa de ruptura, libertação e descontínuo na história.

Inspirado-se nessa força revolucionária e visando uma atualização da crescente captura sobre a temática negra na contemporaneidade, o artista, pesquisador e curador Daniel Lima abre a discussão na exposição “Agora Somos Todxs Negrxs?”, que será inaugurada dia 31 de agosto no Galpão Videobrasil em São Paulo. Na mostra, participam os artistas Ana Lira, Ayrson Heráclito, Dalton Paula, Eustáquio Neves, Frente 3 de Fevereiro, Jaime Lauriano, Jota Mombaça, Luiz de Abreu, Musa Michelle Mattiuzzi, Moisés Patrício, Paulo Nazareth, Rosana Paulino, Sidney Amaral e Zózimo Bulbul.

O curador Daniel Lima fala sobre a exposição "Agora somos todxs negrxs?".

Tomando a frase com um olhar crítico, o curador lança mão da interrogação para debater as suas ambiguidades. Em tempos onde os povos quilombolas e indígenas do Brasil lutam no congresso nacional pela não aprovação do marco temporal — um argumento genocida da bancada ruralista para delimitar a demarcação de terras desses povos — trazer à tona uma memória de resistência negra que carrega seu traço indígena (Ayiti significa “terra de altas montanhas” assim chamada pelos taínos) como dispositivo conceitual de uma exposição, torna-se uma oportunidade única de afirmação e mobilização através do potencial de comunicação que tem o próprio sistema da arte.

Nesse sentido, assumir que agora "somos todxs negrxs, quilombolas e indígenas" seria incitar um estado de reflexão e de aliança em que todos passam a ser partícipes e responsáveis pelas políticas de reparação. Como parte de uma política afirmativa, disponibilizar toda ordem de recursos, reconhecer privilégios, nos colocar ativos e a serviço de fazer justiça frente ao histórico de violência sofrida por índios e negros no Brasil.

O julgamento da ação que regulamentaria a demarcação de terras das comunidades quilombolas que estava marcada para esta quarta, dia 16.08 foi adiado.

Coexistindo ao lado dessa chamada para tomada de uma consciência universal decolonial, a condição negra sustenta o paradoxo de viver, como diz Achille Mbembe, “vários tempos e várias histórias ao mesmo tempo”, fazendo com que a afirmação se torne também interrogação. Diante das diversas atualizações das práticas coloniais ao longo da história, sabemos que toda forma de assimilação da negritude é sempre carregada de escusas intenções: espoliar, explorar, apagar ou transformar seu corpo e espírito em objeto, moeda e mercadoria.

E é atentando-se a essa corrente apropriação da causa negra por diversas instituições, grupos artísticos e ondas virtuais que monetizam e usuram a produção simbólica afrodescendente, que o questionamento se refaz: será mesmo que somos todxs negrxs?

O artista Ayrson Heráclito responde: Agora somos todxs negrxs?

Em muitas dessas investidas e experiências artísticas contemporâneas em que se clama um direito aos símbolos "afrografados" no Brasil em nome de uma democracia racial jaz um mito: um mito oportunista e excludente onde se fala sobre, ao invés de falar com. Um jogo de aparências onde a visibilidade da cultura se faz na invisibilidade das presenças.

Tal mimetismo, captura e esvaziamento de sentido está em todo lugar: no apelo ao exótico com vistas ao lucro ou na tentativa de protagonismo para tratar das "tendências emergenciais" sem que altere-se em nada as pátinas das estruturas racistas de poder.

Desse ponto de vista, a reflexão que a exposição propõe não poderia vir em momento mais apropriado. Dá voz às nossas inquietações ao vermos, por exemplo, as religiões de matrizes africanas sendo objetos de inspiração sem que sequer se cite a intolerância religiosa de que são alvo e a batalha que o povo de santo trava contra as medidas que impõem regras para realização das atividades nos terreiros. Dança-se com os Orixás sem olhar o sangue que une as águas do Atlântico às do Caribe, sem enunciar seu histórico de guerra.

O artista Luiz de Abreu responde: Agora somos todxs negrxs?

Assim, tal como se dão as manifestações negras é que "Agora somos todxs negrxs?" chega como importante veículo de resistência, carregando com ela um traço fundante da estética negra nas Américas: ser encruzilhada. Com essa dupla fala, joga com as ambiguidades dos sistemas de poder e assume o X, atualizando a sua característica não-binária, assimétrica e sem forma definida. Polêmica, ocupa o espaço de visibilidade dado a arte para tomar a curadoria como uma totalidade de discurso em que um conjunto de obras são dispostas com a intenção de atingir, afetar e fazer levante.

“Agora somos todxs negrxs?”. Um debate urgente para discutir e prestigiar.

Abertura: 31 de agosto, às 19h
Visitação: até 16 de dezembro de 2017

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