Akotirenes e Dandaras

Carnaval do bloco afro Ilú Obá de Min celebra a grandeza das mulheres quilombolas

Andrei Reina
Revista Bravo!
10 min readFeb 8, 2018

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Foto: Roberto Assem

Sob o pórtico, elas pontuam ataques de grave nas alfaias. Diante da Igreja de Santo Antônio, repicam os djembês. O chacoalhar das contas dos xequerês se avoluma na esquina da Rua da Quitanda com a São Bento. Ressoam agogôs, anunciando a chegada delas. A Praça do Patriarca está ocupada pelas mulheres do Ilú Obá de Min. Logo se forma um só pelotão, sob os comandos das coordenadoras dos naipes e a regência geral de Beth Beli. Observado por centenas de pessoas e registrado por dezenas de fotógrafos (profissionais e amadores), é um dos ensaios do bloco — realizados desde outubro passado aos finais de semana, ora na praça, ora no Vale do Anhangabaú — para o carnaval.

Neste ano, o Ilú leva às ruas o enredo Akotirenes — O Yibi das Mulheres Quilombolas (yibi, em iorubá, significa grandeza). “Falar das mulheres quilombolas é falar da terra roubada violentamente, é falar de resistência e principalmente falar das conquistas feitas pelas mãos de mulheres negras e indígenas”, diz Beth Beli.

Como já é tradição, o primeiro cortejo do bloco abre amanhã (9) o carnaval de São Paulo, com concentração na Praça da República a partir das 19h. No domingo (11) o desfile será nos arredores da nova sede do bloco no Bom Retiro, com concentração a partir das 14h em frente ao Boteco da Dona Tati.

Foto: Roberto Assem

Formado apenas por mulheres, o Ilú Obá de Min — mãos femininas que tocam tambor para Xangô, em iorubá — decidiu homenagear o protagonismo feminino dos quilombos. “Muitas vezes quando falamos de quilombos logo pensamos na figura masculina, mas temos que lembrar da participação efetiva das mulheres negras e indígenas como lideranças femininas que até hoje seguram e alimentam todas as comunidades quilombolas e as que fizeram e fazem história até hoje, como Akotirene, a primeira líder de Palmares, e Dandara, guerreira que lutou ao lado de Zumbi”, lembra Beli.

Outras figuras históricas entoadas pelo Ilú incluem Luísa Mahin, articuladora de levantes de escravos na Bahia do século 19, e Tereza de Benguela, líder quilombola que viveu no século 18 onde hoje é o estado de Mato Grosso e em homenagem à qual se instituiu por lei o 25 de julho como o Dia Nacional da Mulher Negra.

“O Ilú Obá reconta e enaltece essas mulheres negras, que na verdade não estão nos livros, nem nas escolas e nem nas mídias brasileiras. Por que isso acontece?”, questiona Beli, que em seguida responde. “Porque não interessa aos brancos detentores dos poderes nesse país ressaltar a real história do povo negro como alicerçadora do Brasil”.

História que, insiste o Ilú, não está no passado. Não só milhares de comunidades quilombolas resistem em todas as regiões do país — são quase 3 mil apenas entre as certificadas pela Fundação Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura — como, nas grandes cidades, instituições e coletivos artísticos se inspiram na formação social para se organizar. “Quilombo não é lugar de refúgio, é um lugar de organização do povo negro com base nas organizações africanas. Juntos pensamos melhor, agimos estrategicamente e resistimos com mais potência”, defende Beli, para quem o Ilú é “um dos milhares de quilombos urbanos dentro de São Paulo”.

Foto: Roberto Assem

Juçara Marçal, integrante do bloco desde sua formação, argumenta no mesmo sentido. “Os quilombos — além daqueles propriamente ditos, comunidades formadas por mulheres e homens escravizados que se refugiavam das perseguições dos donos de engenho — podem ser vistos hoje nos centros urbanos, nas periferias, nas favelas, nos sertões, formados também por mulheres e homens escravizados de alguma maneira”, diz.

Para a cantora, que compôs uma das canções que o Ilú leva às ruas amanhã, a importância de celebrar a liderança feminina dos quilombos extrapola o carnaval. “Falar da mulher negra, da luta da mulher negra, de seu poder fundamental na estrutura de um quilombo (de uma comunidade, de uma sociedade!) é simplesmente falar para que as pessoas atentem para o que já é”, diz. “As mulheres são peças chave na lida pela organização dessas comunidades”.

Akotirenes e Dandaras do presente também são celebradas nas canções do Ilú para este carnaval— Juçara Marçal explica que estas são compostas exclusivamente por integrantes do bloco, que as inscrevem em processo seletivo interno. “Axé Dandara/ Liderou quilombos/ Repartiu as terras/ Ela foi rainha/ Tereza de Benguela”, canta-se nos versos de Toda Terra é Meu Lugar, para depois nomear lideranças quilombolas de agora: “Hoje está na força/ De Domingas, Tia Tança, Dona Dalva e Tiana/ Heroínas negras/ Guerreiras belas/ Akotirenes/ Um salve a todas elas”.

Pois é salvando que Beth Beli encerra a entrevista, concedida por e-mail: “Salves as Akotirenes de hoje e as de sempre!”

‘O quilombo não está no passado’

Foto: Roberto Assem

Carnaval é tempo de festa, mas como tem ficado cada vez mais claro nas ruas de São Paulo, é também política, resistência e aprendizado. Para saber mais sobre as mulheres cantadas pelo Ilú Obá de Min, a Bravo! conversou com duas historiadoras sobre o protagonismo feminino nos quilombos e as razões da persistência dessa formação social nos dias de hoje.

Antes de apresentá-las, um parêntese: o Supremo Tribunal Federal julga hoje uma ação do Partido Democratas (DEM) contra o Decreto 4.887/2003, que regulamenta o processo de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras de quilombolas. Uma petição online de diversas organizações e movimentos tenta pressionar o STF para que não ceda ao retrocesso. Como canta o Ilú neste ano, “o quilombo não está no passado”. [Atualização, 9/2: por maioria de votos, o STF julgou improcedente a ação do DEM, garantindo “a titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas”.]

Agora sim, as pesquisadoras:

  • Ynaê Lopes dos Santos, professora-adjunta do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da FGV. É doutora em História Social pela USP e autora do livro História da África e do Brasil Afrodescendente.
  • Mariléa Almeida, mestre e professora de história. Defende este ano doutorado em História Cultural na Unicamp com o tema “A experiência de mulheres quilombolas: raça e gênero na criação de corpos étnicos”.

A história dos quilombos está ligada à resistência às formas de opressão coloniais. Qual sentido de ação o quilombo ganha no século 21?

Ynaê Lopes dos Santos: Os quilombos possuem muitos e múltiplos sentidos nos dias atuais. Organizações criadas desde o período colonial como resposta à sociedade estruturada pela escravidão, os quilombos foram uma das principais formas de resistência de africanos e crioulos escravizados. Alguns quilombos criados durante a vigência do escravismo existem até hoje. Nesse caso é fundamental ressaltar que essas comunidades são portadoras de histórias que durante muitos anos foram silenciadas por aqueles responsáveis pela construção da “história oficial”, o que no Brasil significa falar de uma narrativa histórica que deixou — propositadamente — homens e mulheres negros à margem dos processos históricos.

Dessa feita, os quilombos que ainda existem podem ser compreendidos como lembranças vivas não só de comunidades compostas por homens e mulheres que são protagonistas e também herdeiros de outros atores sociais da história brasileira. Todavia, tais comunidade também devem ser entendidas como alertas para que fiquemos atentos aos conflitos sociais e políticos que marcaram (e ainda marcam) a história e a sociedade brasileiras e que ajudaram no enraizamento do racismo no Brasil, na formulação de políticas de acesso à terra profundamente desiguais e na dificuldade que (infelizmente) temos em pleno século 21 em estender os conceitos (e o exercício) de cidadania à toda população brasileira.

E a que podemos atribuir a permanência dos quilombos nos dias de hoje?

YLS: A principal razão para a permanência dos quilombos nos dias atuais se deve à resistência dos habitantes dessas comunidades em preservar seu lugar de origem lutando pelo reconhecimento da sua condição de cidadão quilombolas (no que isso tem de particular, mas também naquilo que está garantido pela Constituição de 1988). Tal luta também passa pela preservação da memória desses quilombos e quilombolas, luta essa que ressalta como tais memórias estiveram articuladas à história brasileira (entendida na sua forma mais ampla), mesmo que tais relações tenham sido silenciadas durante muito tempo. Em alguns casos, a resistência quilombola também se faz por meio da construção de movimentos sociais formados pelos próprios quilombolas, mas também por outros atores da sociedade civil.

Vale dizer que essa resistência — seja individual, seja coletiva — teve e tem importantes aliados, como professores da universidade pública, profissionais de outros órgãos públicos e alguns governos específicos que compreendem a sociedade brasileira de maneira mais complexa e entendem ser fundamental que a existência material e simbólica dos quilombos aconteça. O reconhecimento de terras quilombolas que aconteceu no último governo democraticamente eleito é um exemplo importante da junção de movimento social, poder público e sociedade civil na luta pela permanência e reconhecimento de direitos dos quilombos que existem no Brasil.

Como as questões de raça e gênero se entrelaçam na construção da identidade das mulheres quilombolas?

Mariléa Almeida: As relações de raça e de gênero operam em conjunto na construção da identidade quilombola, cujas narrativas durante muito tempo silenciaram sobre a participação das quilombolas na luta pela terra, favorecendo que a identidade quilombola fosse construída com base nos padrões dominantes de masculinidade — o que também vai ressoar sobre o que se fala sobre a mulheres quilombolas. Ao mesmo tempo, vale a pena lembrar que tradicionalmente os quilombos do passado escravista foram narrados em termos de homogeneidade étnica. Rasurando essa abordagem, na década de 1990 algumas pesquisas divulgadas no livro Liberdade por Um Fio, organizado pelos historiadores Flávio dos Santos Gomes e João José Reis, indicavam a multiplicidade étnica dentro dos quilombos durante o período escravista.

Há um protagonismo feminino na história e na atualidade dos quilombos? O Ilú tem ressaltado figuras como Akotirene e Dandara.

YLP: A presença feminina tem destaque em praticamente todos os aspectos da história brasileira, sobretudo no que diz respeito aos grupos que estiveram silenciados em nome da construção fantasiosa de uma história brasileira desprovida de lutas e conflitos. No que diz respeito às comunidades quilombolas, compostas em sua maioria pela população negra, a presença e atuação das mulheres tem caráter axial. São essas mulheres, negras em sua maioria, responsáveis por garantir a existência material das comunidades que compõem essas famílias (por meio de suas múltiplas jornadas de trabalho), mas por exercerem de forma alargada o papel de mães, irmãs, tias e avós, tornando-se assim esteios dessas famílias e da comunidade como um todo. De certa forma, essa posição é uma herança deixada pela sociedade brasileira, herdeira da escravidão e fundada na propagação do racismo, na qual cabe às mulheres negras lutar pela existência de seus filhos e filhas nas ações cotidianas — o que por si só deve ser encarado como um ato de resistência, tendo em vista as múltiplas discriminações às quais as mulheres negras estão expostas todos os dias. Além dos exemplos de ícones citados, podemos sublinhar o caso de Tereza Benguela, que no período colonial tornou-se uma das principais lideranças quilombolas na região que hoje é o Mato Grosso.

E pelo fato de terem que lutar contra a violência que marca suas vidas (seja a violência psicológica, ou o assassinato de filhos e maridos), tais mulheres muitas vezes subvertem a ordem imposta pela sociedade machista e patriarcal e se tornam importantes lideranças políticas para fora de suas comunidades, sendo responsáveis pela articulação de inúmeras ações em prol do quilombo.

MA: Sim, certamente, mas gostaria de ressaltar que as condições históricas contemporâneas favorecem a visibilidade desse protagonismo. Nesse contexto, as mulheres que estão na luta quilombola vão fazer usos da tradição como forma de construir pontes entre as experiências femininas do presente e do passado. Daí, quilombolas que no passado escravista lutaram, como Dandara e Acotirene, são valorizadas como ícones da residência negra. Para citar um exemplo do atual protagonismo das quilombolas, desde 2016, o Coletivo de Mulheres da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) tem organizado oficinas dentro dos quilombos situados em diversos estados do Brasil. A finalidade das atividades diz respeito sobre as múltiplas formas de violências que seus corpos e territórios estão submetidos, inclusive de gênero. Como nas letras do Ilú Obá de Min, nesses cursos as quilombolas do passado são transformadas pelas lideranças do presente em novos símbolos da luta pela terra.

Em um artigo, você [Mariléa Almeida] argumenta que a emergência dos quilombolas como sujeitos de direito está relacionada com um contexto de valorização global e nacional da diferença étnica, que remonta aos anos 1980. Iniciativas como documentários, pesquisas e o próprio carnaval do Ilú Obá de Min sinalizam que estamos em outro estágio dessa valorização, agora informada também pelo gênero?

MA: Sim, sem dúvida. Esses acontecimentos expressam transformações históricas significativas. Até o século 21, o discurso predominante sobre a resistência quilombola valorizava as práticas masculinas em termos de virilidade, de violência e de força. Entretanto, nos últimos anos, estamos presenciando mudanças nas narrativas sobre o tema, cujos conteúdos não poderiam ser visualizados sem os conceitos oferecidos pelos feminismos que, ao problematizarem a cultura da masculinidade, colocaram em xeque formas até então naturalizadas de tratar as experiências quilombolas, ampliando as possibilidades do que pode ser dito, inclusive, sobre as práticas masculinas.

Em 1988, com a criação do sujeito de direito remanescente de quilombo, na Constituição Federal, muitos trabalhos enfatizaram a dimensão étnico-racial na construção da diferença quilombola. Contudo, em minha pesquisa sobre as comunidades quilombolas contemporâneas do estado do Rio de Janeiro na década de 1990 pude visualizar certa feminização da concepção de quilombo, já que práticas culturais atribuídas ao campo do feminino foram sendo selecionadas na criação das novas identidades. A partir daquele contexto, a resistência quilombola ganha novos significados por meio da valorização das práticas de cuidado, da transmissão dos saberes e, sobretudo, das relações afetivas que se estabeleciam com o território reivindicado.

Cortejos do Ilú Obá de Min

Sexta-feira (9/2): concentração a partir das 19h na Praça da República, no Centro. O bloco está previsto para sair às 20h no sentido da Avenida São Luís.

Domingo (11/2): concentração a partir das 14h na esquina da Rua Barão de Piracicaba com a Alameda Eduardo Prado, no Bom Retiro. Ponto de referência: Boteco da Dona Tati (Alameda Eduardo Prado, 129).

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