Anti-ópera

Primeira ópera de Flo Menezes, “Ritos de Perpassagem” estreia no Theatro São Pedro, em São Paulo, com críticas aos fundamentos do gênero lírico e celebração da filosofia de Pitágoras

Andrei Reina
Revista Bravo!
9 min readSep 25, 2019

--

Foto: Heloisa Bortz

Em 2016, por ocasião de uma remontagem de La Bohème, o Theatro Municipal de São Paulo convidou o compositor Flo Menezes para dar uma palestra sobre Giacomo Puccini. Cerca de uma hora depois de analisar os principais traços e posteriores desdobramentos da estética pucciniana, Menezes finalizou com uma provocação. “Por que não me encomendam uma ópera? Por que, em vez disso, apenas me convidam aqui, na casa da ópera de São Paulo, para falar de Puccini? Eis a prova mais cabal de que a ópera está morta. Encomendem-me uma ópera. Eu saberei explodi-la!”

Três anos depois, a bomba de Flo Menezes finalmente será detonada nesta sexta-feira (27), quando a sua Ritos de Perpassagem estreia no Theatro São Pedro, que o convidou para conceber uma ópera inédita. Variado, o material explosivo do trabalho abrange vozes (um narrador, sete solistas e coro com 16 cantores), orquestra com 31 músicos, grupo de oito percussionistas e eletrônica em 16 canais. Rastros de pólvora serão audíveis desde a chegada do público ao teatro, que estará cercado de intervenções sonoras.

Além da orquestra do teatro, as apresentações contam com o reforço de conjuntos especializados em música contemporânea, como os alemães do Neue Vocalsolisten, o PIAP (Grupo de Percussão do Instituto de Artes da Unesp), o Coro Contemporâneo de Campinas (ligado à Unicamp) e o Studio PANaroma, centro de música eletroacústica fundado por Flo Menezes na Unesp, onde leciona. O regente e percussionista Ricardo Bologna é o responsável pela direção musical, enquanto Marcelo Gama assina a direção cênica.

No conteúdo e na forma, Ritos de Perpassagem é uma espécie de anti-ópera. Não há propriamente uma narrativa, no que a obra dispensa a estrutura melodramática que está na base dos principais títulos do gênero. “Esse caminho inverso é o meu caminho”, diz Menezes. “Eu jamais quereria fazer uma narração de um amor frustrado em que Joana se apaixona por João mas é traída por Beltrano e é descoberta a traição por Cicrano… esse arquétipo operístico está absolutamente longe e já existe. Para mim interessa abordar temas, temas que me são preocupantes, no sentido de me ocuparem poeticamente e também no sentido de preocupantes mesmo”.

Desdobrados em trechos de obras filosóficas e políticas em nove idiomas — português, espanhol, italiano, francês, alemão, inglês, latim, grego e russo — e na própria arquitetura formal, os três temas da ópera são no mínimo inusitados: o pitagorismo, os ritos de passagem e os neutrinos. Durante uma pausa dos ensaios da ópera, aos quais o compositor tem comparecido para dar instruções e acionar a parte eletrônica, Flo Menezes falou à Bravo! sobre o interesse por cada um deles. Vestido com roupas largas em tons escuros, chama a atenção em sua figura os cabelos revoltos, os óculos de aro grosso e um bóton com a foice e o martelo do comunismo sobre o paletó. Sua fala oscila entre a sobriedade do professor experimentado e o entusiasmo do jovem cientista.

Foto: Heloisa Bortz

Pitagorismo em cena

Descrito pelo compositor como “a veia principal da ópera”, Pitágoras de Samos é o nome atribuído ao filósofo do século 6 a.C. que fundou em Crotona, na Magna Grécia (atual sul da Itália), uma sociedade secreta. “A finalidade da confraria era oferecer aos seus membros uma satisfação interior que a religião externa, oficial, não lhes dava, porém o deus dos pitagóricos era Apolo Delfo (o espírito racional) e não Dionisos (o espírito trágico)”, explica Marilena Chauí em sua Introdução à História da Filosofia.

Filosófica e religiosa, a Escola Pitagórica tem dimensões aparentemente contraditórias. Por um lado, afirma a transmigração das almas. Por outro, delineia uma visão matemática da natureza, na qual a música tem papel central. “Os exercícios espirituais da comunidade pitagórica eram realizados ao som da lira órfica ou a lira tetracorde, e é muito provável que Pitágoras tivesse percebido que os sons produzidos pela lira obedeciam a princípios e regras para formar os acordes e para criar a concordância entre sons discordantes, isto é, os sons da lira seguem regras de harmonia que se traduzem em expressões numéricas (as proporções)”, escreve Chauí.

“Nas minhas leituras fui descobrindo que Pitágoras era o grande influenciador das civilizações”, diz Flo Menezes. “A sua influência é maior que Cristo, mas é uma influência quase que velada”, afirma, citando a expansão suscitada — e nem sempre reconhecida — pelo filósofo “da política à matemática, à música, à acústica, ao comportamento, à cosmologia, à mística”. “A ópera homenageia o mentor da primeira sociedade comunista, a Comuna de Crotona, sociedade fundada por Pitágoras numa caverna e na qual rezava o princípio ‘aquilo que é do amigo é de todos’”, continua o compositor. “Aquele que adentrava na sociedade dispunha de tudo que tinha, as propriedades e os bens eram de todo mundo”.

Flo Menezes vê o pitagorismo como uma influência ora explícita, ora velada dos “processos de aglutinação de significados de campos”, articulações de sentido que atravessam a civilização desde a formulação de uma frase até a construção de “templos de concerto” ou a constituição de movimentos políticos. “Existe sempre uma delimitação de campo onde você tem o começo e um fim desse campo — que às vezes é temporal e às vezes não, é um limite de significado mesmo”, explica. “O que acontece ao longo da civilização? Existe sempre uma necessidade do ser humano entrar nesse universo semântico e sair de alguma maneira. Os criadores saem propondo outras coisas. Aqueles que não são criadores saem para entrar em outros compartimentos”.

Essa “dialética entre confinamento e ultrapassagem”, como define o compositor, o remeteu à ideia de margem presente no clássico da antropologia Ritos de Passagem, escrito em 1909 por Arnold van Gennep. “A margem assume papel central na análise ritual de van Gennep que, pelo exame dos ritos de passagem material, revela a importância do espaço intermediário existente entre eles, como no caso dos ritos vinculados aos pórticos, aos limites do mundo doméstico ou às fronteiras entre o mundo profano e mundo sagrado”, escrevem Renan Arnault e Victor Alcantara e Silva em verbete da Enciclopédia de Antropologia da USP.

A leitura de van Gennep foi reveladora para Flo Menezes, que conecta o livro ao terceiro tema da ópera. “Aí eu fui entender que o que estava acontecendo na história da civilização era que o pitagorismo se desprendia de Pitágoras como se fosse uma partícula que atravessa todos os corpos, os corpos sociais”, diz. “Esse atravessamento se dava aparentemente sem interferência, como os neutrinos”.

“Os neutrinos são partículas que viajam quase na velocidade da luz em linha reta e que não interferem nos corpos. Agora você está sendo atravessado por bilhões de neutrinos”, avisou-me o compositor, que se pôs a filosofar. “Quer dizer que a gente é atravessado continuamente? Eu sou um campo de significado, um corpo, um ente — e no entanto eu estou sendo atravessado por bilhões de partículas que não fazem interferência comigo”. Para Menezes, o pitagorismo é um “neutrino às avessas”, que ao longo das civilizações atravessa “corpos de significados” e segue adiante, nem sempre se fazendo notar.

Essa influência silenciosa é revelada em cena na “neutrinópera” (como Menezes se refere ao trabalho) através de citações a grandes filósofos e artistas do passado, que são incorporados — ou “transmigrados”, para ficar no vocabulário pitagórico — pelos solistas. Santo Agostinho, Johannes Kepler, Johann Wolfgang von Goethe, Karl Marx e Leon Trotsky são alguns deles. No plano cênico-musical, a figura do compositor de vanguarda Gilberto Mendes também é evocada, em cena que faz o jogo de bola de seu Santos Football Music desembocar numa revolução social. Outro nome da música avançada a pairar sobre a ópera é o de Karlheinz Stockhausen, a quem Menezes empresta o prefixo trans — título de uma obra musical para teatro dos anos 70 — para definir as duas partes de Ritos de Perpassagem como “trans-atos”.

Folhas da partitura de “Ritos de Perpassagem” disponibilizadas pelo compositor

Perpassagens

Além de ser tematizada, a ideia de perpassagem está na própria estrutura da obra, à qual Flo Menezes não quis dar começo ou fim. “Ela sequer tem um meio, porque durante o intervalo os músicos vão intervir no café, e o som do neutrino continua na sala, em 16 canais”, diz o compositor. Sob direção de Marcelo Gama, optou-se por encenar o próprio ritual do teatro, desde a chegada do público até a saída, conforme proposto por Menezes. A criação atravessa todos os aspectos da experiência, como no uso de maquiagem por parte da equipe e dos músicos do teatro — e também do público, que terá a opção de se maquiar — e em sons disparados na rua no início e ao final do espetáculo. “O objetivo é que eles percebam que estão no palco”, diz Gama. “A partir do momento que o público for se aproximando do teatro, eles estão entrando no cenário de uma peça da qual fazem parte. Tudo o que acontece ao lado deles é só para mostrá-los que eles são ativos, participantes desse ritual”.

Marcelo Gama diz que optou por não acrescentar mais camadas a um trabalho já complexo como Ritos de Perpassagem. Ao contrário, extraiu da partitura os principais elementos para mostrá-los de forma reconhecível ao público. De fato, a partitura de Flo Menezes já contém diretrizes visuais, expediente utilizado para evitar o que chama de “ingredientes arbitrários da mistura operística”. “Se você nomear os ingredientes da ópera, você tem a música, o texto, a cenografia, a iluminação e a indumentária. De todos esses, os únicos necessários são a música e o texto”, diz o compositor. Para ele, os elementos ligados ao aspecto visual “não são necessariamente ligados à estética da concepção da obra operística”. Para minimizar a arbitrariedade, Menezes os costurou no “tecido semântico da ópera”, incluindo já na partitura instruções para encenação, projeção de vídeo, luz e figurino.

No plano sonoro, o compositor exportou inovações da música eletroacústica —à qual está filiado desde a formação com nomes como Stockhausen, Henri Pousseur e Pierre Boulez — para o gênero lírico. “Como toda performance musical, a ópera me incomoda na medida em que ela está confinada a um espaço”, diz Menezes. “Um dos ganhos irreversíveis da música eletroacústica é uma totalização do espaço acústico, uma escuta de todos os lugares”. Em Ritos de Perpassagem, essa premissa é levada às últimas consequências: além das 18 caixas de som espalhadas pelo teatro, os músicos da orquestra ocupam posições variadas no fosso e saem dele para tocar entre o público. Há ainda percussionistas posicionados sobre o palco e nas bordas da plateia, que é envolvida por diversos pontos de emissão sonora. A profusão de sons, imagens e citações é proposital e entram na conta do maximalismo que caracteriza a ópera.

Em um ano marcado pela estreia de uma obra inédita pela Osesp — os TransLieder baseados em Johannes Brahms —, Flo Menezes apresenta enfim a sua primeira ópera em um clima que é menos eufórico que preocupado. “Que lugar tem essa obra numa sociedade bolsonarista?”, se pergunta. “Minha obra está suspensa por dois vieses: um porque a sociedade a suspende, ela não consegue aterrissar no chão enquanto estivermos no reino da boçalidade. E o outro porque eu também quero me suspender do chão”.

Afeito a citações, Flo Menezes empresta a expressão de John Cage, que assim relata uma passagem de Daisetsu Teitaro Suzuki — um dos responsáveis por popularizar o zen-budismo no Ocidente — no livro De Segunda a Um Ano, traduzido no Brasil por Rogério Duprat e Augusto de Campos:

Numa conferência sobre Zen-budismo no inverno passado, o dr. Suzuki disse: “Antes de estudar Zen, homens são homens e montanhas são montanhas. Enquanto se estuda Zen as coisas se tornam confusas: não se sabe exatamente o que é o que e qual é qual. Depois de estudar Zen, homens são homens e montanhas são montanhas.” Depois da conferência foi feita a pergunta: “Dr. Suzuki, qual é a diferença entre homens são homens e montanhas são montanhas antes de estudar Zen e homens são homens e montanhas são montanhas depois de estudar Zen?” Suzuki respondeu: “A mesma coisa, só um pouco como se você tivesse os pés um tanto fora do chão.”

Ritos de Perpassagem, de Flo Menezes. Ensaio geral gratuito: hoje (25), às 19h. Apresentações: sexta (27) e sábado (28), às 20h, e domingo (29), às 17h. Ingressos: R$ 30 a R$ 80. Theatro São Pedro: Rua Barra Funda, 161 — Barra Funda — São Paulo.

--

--