Ao infinito e além

“Hilda Hilst Pede Contato” trabalha o simbolismo dos nossos espectros, preenchendo apaixonadamente os vazios

Guilherme Werneck
Revista Bravo!
4 min readAug 2, 2018

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No início é só verbo, e a luz vem. Entre palavras e sussurros, entre o pedido e a expectativa, a câmera subjetiva passeia pelo jardim e começa a seguir um emaranhado de fitas magnéticas. O ritmo é de quem perambula, investiga com tranquilidade, passeia por um espaço onde o tempo é suspenso entre vozes e a expectativa do que encontrar ao seguir os fios acobreados. Uma imagem poética que perdura e traz com ela um pouco de inquietação. Seriam fios de Ariadne? Estamos em um labirinto? Essas fitas a brilhar no verde-azul das plantas filtradas pelo céu vão levar a alguma saída? São um preâmbulo para conhecer Hilda Hilst?

A câmera segue vagando até uma casa, investiga seus cômodos, passeia pela intimidade inanimada, explora luzes e sombras, até chegar ao gravador de rolo, à mão que enrola a fita, aperta o botão de gravar e empunha o microfone. Revela-se aos poucos a figura da poeta interpretada por Luciana Domschke, mas as palavras e a voz são da própria Hilda Hilst, que inicia seu pedido de contato com os mortos, esperando capturar uma prova da existência de outros planos existenciais.

Desde o princípio fica claro que Hilda Hilst Pede Contato não tem a menor vocação para a cinebiografia. A diretora Gabriela Greeb encaminha o filme para longe do linear, de qualquer aproximação com a narrativa épica. Antes busca usar toda a potência da linguagem cinematográfica para uma construção poética, um jogo com o tempo, com sentidos, com imagens, fragmentos. Nesse sentido, dialoga com exploração simbolista dos primeiros filmes de Andrei Tarkovski, embora por caminhos completamente diferentes.

Em primeiro lugar, pela opção de borrar as barreiras entre a ficção e a realidade. Tudo se constrói a partir da voz de Hilda Hilst, capturada em gravações feitas entre 1974 e 1979. E a ela se somam imagens de arquivo, de filmes pessoais e as imagens gravadas para o filme, com Luciana Domschke dublando a voz da poeta, e com os depoimentos de amigos, conhecidos, amantes.

Ao mesclar as falas de escritores como Jorge da Cunha Lima e estudiosos como Gutemberg Medeiros, com gente que teve uma ligação mais amorosa com a escritora, como as do escultor Dante Casarini, que foi casado com a poeta, Olga Bilienky, que morava com Hilst quando ela morreu, o filme consegue escapar do didatismo. Da mesma forma, a cena em que vários dos entrevistados se encontram para um jantar na Casa Sol, em Campinas, que frequentavam quando a poeta era viva, serve para romper com a previsibilidade das cabeças falantes.

A Casa do Sol é o palco principal do filme, reforçando não só a atmosfera de fetiche como a sua aura sobrenatural. É a materialização desse ponto de inflexão de várias histórias, de espíritos, de memórias, de tempos que se cruzam por não prescindir do espaço. A casa é também personagem. Na verdade ela se mostra mais interessante quando a câmera revela o que ela tem de ausência, de solidão, o quanto ela carrega ainda a atmosfera de expectativa que soa nos pedidos para que os amigos e escritores mortos deixem suas vozes do além impressas na fita.

O ato de escutar é subversivo. O silêncio que nunca é totalmente mudo é ainda mais subversivo. Hilda Hilst Pede Contato consegue justamente construir um clima para ouvir o inaudível, e em muitas vezes lança o espectador à posição de apenas ouvinte. E Gabriela Greeb escancara esse lugar quando se distancia das histórias e nos entrega a passeios guiados pela fotografia impecável de Rui Poças e pelo som arquitetado por Vasco Pimentel com a música de Nicolas Becker.

No livro Sinister Ressonance (“ressonância sinistra”, em inglês), em que David Toop investiga o ouvir e como ele foi retratado pelas diferentes artes ao longo da história, ele se pergunta como podemos ouvir “sons que nunca foram notados, sons que há muito se foram, ou sons que não são exatamente sons, são mais flutuações de luzes, do tempo e daquele sentimento peculiar que vem quando temos uma forte percepção de um lugar?” O filme é todo esse sentimento.

E, justamente por morar nesse arrepio na nuca, o longa consegue revelar a essência dessa escritora que demorou a conseguir contato com o público. Ao montar esse quebra-cabeças com som e imagem, juntar memórias e criar outras memórias com a imaginação, Gabriela Greeb encontrou uma forma muito sensível de conexão com a poesia de Hilda Hilst, ela mesma construída muito mais na emoção do que no rigor.

A poética de Hilda Hilst é esse todo complexo, que flerta com a beleza mas busca o êxtase, que consegue ser ao mesmo tempo prosaica e metafísica, erótica e divina. Ela pede símbolos no lugar de realismo. Talvez por isso não tenha forma mais interessante de construir um filme sobre essa escritora do que a de buscar habitar uma metáfora com múltiplas histórias. Mesclar as vozes da saudade com a eternidade das palavras capturadas nos livros, sem esquecer que o tempo todo há esse inquietante silêncio gravado.

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