Ao redor do som

O projeto "Até o fim, cantar", da Casa de Francisca, de integração entre música e cinema, exemplifica o espaço que molda a criação

Cacá Machado
Revista Bravo!
5 min readOct 1, 2020

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PAUSA DE MIL COMPASSOS | coluna semanal

por Cacá Machado

Arrigo Barnabé desce as escadas de uma pequena arquibancada com seu usual sobretudo preto, cabelos grisalhos desgrenhados e máscara branca com duas grandes válvulas em direção ao piano. Uma câmera na mão acompanha a trajetória.Tudo em silêncio mudo — até pensei que os alto-falantes do meu monitor de vídeo estivessem com defeito. Ele se senta ao piano e ao tirar a máscara surge o ruído branco de sala vazia. Ataca acordes dissonantes, algo como uma densa sequência de clusters (acordes formado por notas encavaladas cujo efeito cria dissonâncias timbrísticas) que, ao poucos, vão se organizando ao redor de uma melodia angulosa. Depois da segunda repetição instrumental entendemos que se trata de uma valsa — “Ano bom”, parceria com Luiz Tatit. Arrigo canta e encarna, então, a personagem da canção salva pelo amor do “meu mal”, daquele vazio da solidão que se instalou, como diz a letra da música, no espaço de tempo criado pelo vão entre o natal e o réveillon. O ambiente é escuro e refratado pelas imagens do tampo negro do piano e das grandes portas de vidro localizadas nas costas do artista que deixam transparecer a cidade. Tudo é muito íntimo e melancólico. Estranho e belo.

A experiência desta performance só pode ser vista por vídeo. Trata-se do projeto “Até o fim, cantar” da Casa de Francisca, proposta experimental de articulação entre música e cinema surgido por ocasião da situação da Pandemia Covid-19 onde as performances presenciais ficaram impossibilitadas. O resultado é um filme dirigido pelo cineasta Kiko Goifman gravado em 21 de agosto de 2020 e está disponível no site do projeto (https://cine.casadefrancisca.art.br).

Mas não poderia também ser entendido como uma Live, afinal não é apenas a transmissão de um show do Arrigo Barnabé? Aqui vale uma distinção. As Lives que temos visto dos artistas de consumo de massa (sertanejos, pagodeiros, axezeiros) parecem que são feitas para serem assistidas junto com refeições ou em encontros familiares, pois não exigem atenção na construção audiovisual — câmera quase sempre fixa centralizada na performance do artista num palco neutro com no máximo uma decoração que serve de apoio para o merchandising de produtos. “Até o fim, cantar” investe exatamente no oposto, o que está em jogo é a narrativa que se constrói em torno do som — a câmera, o cenário, os gestos, tudo se movimenta em função de um discurso.

Na coluna passada, lancei questões: “quais espaços acústicos moldam as diferentes cenas musicais da São Paulo hoje em dia?” ou “queremos uma cidade que normatize os sons (músicas, cenas, criações) ou que admita o conflito natural de interesses como tônica das negociações?”. As perguntas vieram da sugestão de David Byrne sobre aquilo que ele chamou de “criação reversa”, onde o criar é visto como uma experiência moldada pela tecnologia, espaços acústicos ou até mesmo por plataformas de negócios. Nesta perspectiva, este projeto de música e cinema da Casa de Francisca mas, sobretudo, a sua trajetória como casa de shows, é um bom exemplo, dentre outros que existem, da construção de uma cena independente em São Paulo.

Começando pelo presente, ao convidar Laís Bodanzky para uma curadoria cinematográfica, Rubens Amatto, criador e criatura da Casa de Francisca, mostra mais um desdobramento original para as possibilidades deste autodefinido espaço sócio-cultural que, desde 2006, vem se reinventando. Teve seu início numa antiga casa na rua José Maria Lisboa com apresentações praticamente acústicas e não mais, salvo engano, do que 40 lugares. Sempre no limite da sustentabilidade econômica, iniciou uma campanha para reforma do espaço promovendo “El grande con(s)erto” no Teatro Oficina em 2012 que envolveu um amplo espectro de artistas da cena musical da cidade de diversas gerações — de Paulo Vanzolini ao Passo Torto. De forma solidária a renda se reverteu para a casa e para a continuidade do projeto. Os “El grande concerto” anuais tornaram-se como que uma tradição inventada e, na sua quarta edição em 2014, teve o Teatro Municipal de São Paulo como palco das apresentações. Quase um milagre que aquele projeto de casa tão pequeno pudesse ganhar tamanha repercussão. Rubens nunca abriu mão de uma curadoria de música autoral e inventiva. Mas o ponto de virada e aprofundamento desta experiência foi a migração da Casa de Francisca para o imponente Palacete Teresa, prédio histórico de 1910 no centro velho de São Paulo na esquina das ruas Direita e Quintino Bocaiuva — chamado como “a esquina musical de São Paulo”, o Palacete foi matriz da Rádio Record e abrigou a Casa Bevilacqua e a Editora Irmãos Vitalle.

Na contramão de certo empreendedorismo cultural que sinaliza que casas de shows devem ter acessibilidade facilitada e ausência de conflitos como forma de segurança garantida, a ocupação do Palacete Teresa trouxe, ao contrário, justamente a dimensão do conflito e da negociação como tônica do lugar. Não é possível chegar de carro, as pessoas em situação de rua podem despertar insegurança para os frequentadores não acostumados com as áreas degradadas do centro da cidade e, por vezes, o volume alto dos bares ao redor podem interagir com o espetáculo no interior do Palacete. Tudo isto faz parte da experiência de um show na Casa de Francisca. Sinaliza, portanto, que a música tocada lá está envolvida numa relação direta e franca com as tensões da cidade.

Quando David Byrne fala em como os espaços acústicos podem moldar uma cena musical independente, penso imediatamente na Casa de Francisca. Mas penso também na Casa do Mancha, na Casa do Núcleo, no Hangar, na Casa Barbosa, no Estúdio Fitacrepe, em São Paulo, mas também no Bar Semente, na Áudio Rebel e no Circo Voador, no Rio de janeiro, ou no Ocidente em Porto Alegre. Diferentes dinâmicas moldaram esses espaços e eles moldaram diferentes sons. Alguns surgiram e fecharam muito antes da Pandemia, outros vêm se reinventando. A Francisca é só um exemplo.

“Até o fim , cantar” não é, por fim, uma Live. É um mergulho numa experiência que, ecoando o último verso da canção de Arrigo Barnabé e Luiz Tatit, vai “De nada mais a algo além”.

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