Arca redime na pista

Crítica: produtor venezuelano faz set do encontro entre vanguardas mainstream e periféricas na estreia do festival YAGA

Paula Carvalho
Revista Bravo!
4 min readNov 7, 2018

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Foto: Pérola Mathias

Em tempos de anti-intelectualismo, a pista pode ser senhora. Neste fim de semana, foi a LoveStory, casa de todas as casas à sombra do Copan, que encarnou o clichê — cada vez mais cabível — do "last night a DJ saved my life". Lá que pela primeira vez o venezuelano Alejandro Ghersi, o Arca, tocou no Brasil.

Anunciado como um festival de subculturas e do underground, o estreante YAGA trouxe, além do renomado produtor, sets de Total Freedom — DJ, aliás, que é inspiração para Arca — e da britânica Sophie, e brasileiros como Alada e Linn da Quebrada. Headliner da noite de sábado, Arca desce as escadas atrás do palco de óculos escuros, com um vestido e uma estola que lembram os trajes de um padre, um salto vermelho, uma bolsa Prada e um buquê de rosas, que distribui entre o público. Ganha um boneco do Louro José à la Taylor Swift, e começa a sua viagem.

Como costuma dizer, não faz músicas que tenham uma sensação de conforto, e essa também é a máxima do seu set: mescla tracks suas — algumas, inclusive, que canta barrocamente em castellano, nos pole dances do LoveStory — com produções depuradas, hiper-editadas e tomadas de intervenções glitch. De repente, volta para o espanhol com uma cumbia ou uma referência ao changa tuky venezuelano. Assim que o público começa a se sentir em território já navegado, ou quando o ritmo começa a parecer repetitivo, desconstrói tudo de novo (assim como a roupa de padre, que a essa altura já virou lingerie).

Foto: Pérola Mathias

As referências a seu país de origem são pontos altos do set. Em contraponto, talvez, a um mainstream mais padronizado da música eletrônica, o uso sem condescendência de estilos populares (assim como nos sets dos diversos brasileiros do YAGA, que usam e abusam do nosso funk) faz uma conexão mais profunda entre nossos desiguais e combinados.

Fazer música na ponta-extrema da vanguarda (é só lembrar que Arca é um dos co-produtores do Yeezus, disco de 2013 de Kanye West, e dos dois últimos de Björk, Vulnicura e Utopia) sem deixar de perceber a potência e inventividade de quem o faz com recursos mínimos — como os produtores venezuelanos que passaram, inclusive, a fazer festas à tarde por conta do perigo da saída à noite — é, também, saber reconhecer que muitas das novidades surgem da necessidade. Aí, a chegada, em meio à apresentação, do performer Saullo Berck (aquele, que em 2015 aparecia dançando hits de estrelas do pop com o seu salto de tijolos) é mais um ponto para o time latino-americano, que joga não só com música, mas com os diversos estalos — de humor, de ironia, de política — da cultura queer.

Os saltos de Arca e Berck, no festival YAGA. Foto: YAGA

O set de Arca — e a potência do seu encontro com o público, absolutamente diverso em gêneros e pós-gêneros, estilos, roupas, formas de dançar e referências, do bondage aos body mods e montações futuristas — promove aquilo que cultua nos clubs: "Ter um espaço na noite em que todo mundo relaxa, abre o cérebro e entra no seu corpo depois de trabalhar o dia inteiro é realmente especial. Essa conexão mente-corpo é única", como falou em entrevista ao fotógrafo Wolfgang Tillmans.

Em seus trabalhos — o mais recente é Arca, disco do ano passado — a desconstrução cerebral pela qual passam melodia, ritmo, voz e harmonia é também forma de "ouvir pensando", sem saber em que esquina dobrar ou que corrimão segurar. Confrontos binários — masculino e feminino, conforto e desconforto, refinado e bizarro — são sempre postos à prova e, muitas vezes, suprimidos com a exposição de fragilidades, como o canto que vira choro. O contraste eletrônico vs. orgânico, por sua vez, é superado com a não-repetição dos beats e a não-linearidade da estrutura das faixas. Como se máquinas, ainda que soando como máquinas, tocassem sons com todas as imperfeições de uma banda ou uma orquestra.

À Vogue, em entrevista de 2014, Arca dizia: "Quando você está desconfortável, é aí que começa a aprender algo novo sobre você”. Vale não apenas para ele: o Trava Línguas, projeto que Linn da Quebrada vem desenvolvendo com os DJs Badsista e Pininga e sua parceira, JuP do Bairro, também apresentado no YAGA, é um mergulho profundo (e, claro, incômodo) na dor da população trans e travesti no Brasil.

Triste é pensar que, quanto mais o underground e vanguarda tentam expandir suas barreiras, abrir a mente e transformar dor em potência, a ignorância de projetos autoritários — escolas "sem partido", censura em museus, entre tantos —venha ganhando força assustadora. Em mais uma de suas sabedorias de pista e de produção, Arca reflete, também a Tillmans: "Eu me atraio pela sugestão da violência. Eu não estou interessado em fazer vídeos ou fotos que celebrem a violência, o acontecimento da violência. Estou mais interessado no que o indivíduo faz uma vez que ela aconteceu. Se você repete a violência em outra pessoa ou a encara, reconhece a tristeza e o sofrimento que ela causa e a transmuta em outra coisa.”

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Paula Carvalho
Revista Bravo!

jornalista, doutoranda em sociologia na usp. quase tudo em torno de som 🎛 pra mandar mensagem: paula.cncarvalho@gmail.com