Ardente despertar

Martha Kiss Perrone — da ColetivA Ocupação — fala sobre a trajetória da peça "Quando Quebra Queima"

Rafael Ventuna
Revista Bravo!
6 min readSep 2, 2019

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Quando Quebra Queima no FIT Rio Preto © João Cordioli

A adolescência é um labirinto. Dentro dele nos deparamos com uma possibilidade ainda negada durante a infância: a autonomia de mudar o mundo a nossa volta. É depois deste ardente despertar que surge a consciência do ser participativo. Embora esta fase tenha de ser tutelada até a maioridade, percebe-se nela uma potência de combustível. Perigosa. Bela. Lancinante. Um flerte do fósforo com a gasolina.

Este é o contexto que cooptou a diretora teatral Martha Kiss Perrone, que integra a ColetivA Ocupação, um grupo performático que teve como tema da sua montagem inicial a Primavera Secundarista, expressão que identificou o movimento articulado por estudantes que resultou na ocupação de mais de mil escolas brasileiras em 2016.

O que queriam aqueles adolescentes? Visibilidade para demandas urgentes. Uma pauta extensa de reivindicações que muitos adultos desprezam ou desconhecem.

Como um dos desdobramentos do movimento, nasce a peça Quando Quebra Queima. Que dá voz e vez a uma turma de estudantes-performers-criadores que nas artes cênicas descobriram uma nova plataforma de comunicação.

ColetivA Ocupação em apresentação no icônico Teatro Oficina © Mayra Azzi

Como foi o encontro com a turma que se tornaria o primeiro elenco de Quando Quebra Queima?
A aproximação aconteceu em diferentes momentos. Em outubro de 2015, na Escola Estadual Fernão Dias. E na reintegração violenta do Centro Paula Souza em maio de 2016. No final daquele ano, circulei com a peça Róz¡a por escolas que tinham sido ocupadas. Percebi que o teatro se tornou um refúgio de criação e um meio para estarmos juntos. Então, nos encontrávamos todos os domingos na Casa do Povo para práticas de teatro, performance, dança, afeto e de cuidado também. Porque ainda vivíamos o trauma e esgotamento das perseguições ao movimento.

Exatamente quando vocês se entenderam como um núcleo que avançaria junto?
A ColetivA, como grupo permanente, nasce depois da performance na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo em 2017. Entendemos que gostaríamos de continuar criando coletivamente. Hoje em cena são 16 estudantes performers.

Peça circula por festivais nacionais e internacionais © Mayra Azzi

O Brasil de 2019 está em um contexto muito diferente do que permitiu a Primavera Secundarista. O que você se lembra da temperatura daqueles tempos?
Importante lembrar que a explosão do movimento dos secundaristas foi um levante autônomo. Essa luta veio como uma grande onda de desobediência e capacidade de ação, criação e organização das escolas ocupadas, manifestações e também criação de afetos. Uma característica desse movimento é uma pulsão enorme de alegria, do encontro da revolta com a festa, de encantamento de estarem juntos, vivendo o cotidiano dentro das ocupações, cozinhando, dormindo, se auto-organizando, criando músicas, danças, outras formas de luta e, por fim, enfrentando o Estado que massacra esses corpos todos os dias.

Até o momento, que mudanças você percebe na rotina dos adolescentes? Continuam estudando? Ingressaram na faculdade? Que influência o trabalho da ColetivA tem em escolhas profissionais?
Todos nós da ColetivA tivemos nossas vidas radicalmente transformadas com a criação do grupo e com a vida que a peça ganhou. Temos um cotidiano intenso de trabalho e apresentações, mas ainda estamos em processo de formação. Que espero que nunca acabe. Atualmente, a maioria do grupo está na faculdade, estudando para entrar ou trabalhando. Alguns decidiram fazer teatro e estão na Unesp, ECA e SP Escola de Teatro. Outros, música, história e filosofia.

Performance em Leeds no Reino Unido © JMA Photography

Martha conta que em cerca um ano e meio com a peça em cartaz conseguiu fazer vários “deslocamentos da luta secundarista” pelo país e exterior. Bahia, Paraná e festivais nas cidades britânicas de Leeds e Manchester receberam a programação da ColetivA, que costuma compor um mix de performance, oficinas e debates que extrapolam a agenda da Educação e navega pelas questões de gênero e racismo por exemplo.

Em 22 de setembro, o grupo participará do encontro MEXE, na cidade portuguesa do Porto. A apresentação será na Escola Alexandre Herculano, onde também será desenvolvida uma atividade com alunos desta centenária instituição de ensino.

A boa reputação do trabalho também rendeu um convite para a abertura da mostra Dramaturgias 2, em agosto, no Sesc Ipiranga. Martha destaca a sensibilidade da curadoria para receber um trabalho cuja a dramaturgia é coletiva e está presente nos elementos cênicos, da trilha sonora às coreografias.

A performance de Quando Quebra Queima se constitui basicamente em um jogral que costura uma profusão de músicas, vídeos e coreografias que retratam o contexto das ocupações. O público é conduzido no encerramento da apresentação a experimentar um pouco da dinâmica da marcha com deslocamento até a rua. Uma garantia de manter vivo o protesto.

Participação na mostra Dramaturgias no Sesc Iprianga © Mais Um Coletivo

Quando Quebra Queima é um raros trabalhos que desconstroem o adultocentrismo. O que você pensa sobre isso?
Jovens e crianças são pessoas que ainda não foram totalmente capturadas pelo modo de vida adulta. Têm um olhar de baixo para cima e não do alto. A perspectiva é de pulsão, alegria e festa. Onde ninguém é especialista de formação. Isto traz uma outra forma de se relacionar com o mundo. Esta pergunta faz lembrar um episódio em que a polícia retirou estudantes à força até serem detidos em uma delegacia. Um momento de muita violência. A reação deles na frente dos policiais foi brincar de polícia-e-ladrão. As estratégias do riso, da esquiva e da brincadeira quebram o ciclo de sofrimento de suas vidas pessoais e também do contato direto com a repressão máxima do Estado.

Sobre a continuidade da ColetivA, a diretora explica que o espaço é múltiplo e os encontros potencializam a realização de atividades que extrapolam as artes cênicas. Lista uma série de experiências vividas e materiais coletados que devem gerar conteúdo multimídia e novas conexões com artistas de linguagens distintas e engajados em outras lutas que têm em comum o combate às injustiças e ao autoritarismo.

Martha concedeu esta entrevista em diferentes etapas. Enviou e-mail, tomou tempo para debater as perguntas com os integrantes, enviou material complementar e áudios pelo WhatsApp. Tudo isso enquanto articulava simultaneamente as apresentações em São Paulo, Porto e em Santos, onde, em sessão única no dia 31 de agosto, no auditório do Sesc Santos a “sala de aula e resistência” tomou corpo e corpos. A peça não só emociona. Inflama.

Como o recorte e lugar de fala de Quando Quebra Queima está sendo atualizado? Afinal, a pauta de reivindicações — especialmente quando o assunto é Educação — mudou radicalmente após a eleição de Bolsonaro.
A dramaturgia do espetáculo é viva. É da escuta. E temos muitos momentos de improvisação, em que cada dia a peça é transformada a partir da urgência das ruas e do presente. Mas considero que tudo na peça é texto, não somente a palavra mas o gesto, música, dança, vídeo, imagens — e sabemos que a presença desses corpos nessa peça/manifestação são os corpos que estão historicamente em perigo e agora em levante. Ocupam uma cena que sempre foi negada a eles. Em cena/combate são de certa forma uma resposta e resistência ao contexto que estamos vivendo. Dizemos a todo momento que não iremos parar, e o passo que foi dado não tem volta. A ColetivA é infinita.

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