Arquiteturas da imaginação

Em individual na Galeria Luisa Strina, em São Paulo, Carlos Garaicoa discute a deterioração política do Brasil e de Cuba através da arquitetura e da fotografia

Andrei Reina
Revista Bravo!
7 min readApr 3, 2019

--

Detalhe de fotografia da série “Puzzle” (2019)

O impasse em que se encontra a construção de uma nova sociedade e as ruínas acumuladas pelo caminho da história ganham forma em Paisajes de Trabajo, nova exposição de Carlos Garaicoa. Na individual que o artista cubano apresenta na Galeria Luisa Strina, em São Paulo, a interrupção do projeto de um Brasil moderno e a marca do tempo em edifícios históricos de Cuba comparecem em um diálogo taciturno, mas aberto ao jogo.

Convertida em uma espécie de escritório de arquitetura, a galeria encontra-se ocupada por quatro grandes mesas de trabalho. Sobre o tampo de cada um dos móveis de madeira, que medem 240 por 120 centímetros, foram pintadas plantas de edifícios icônicos do Brasil. Três são de Oscar Niemeyer: a Casa do Baile (do Conjunto Arquitetônico da Pampulha), o Palácio da Justiça e a Praça dos Três Poderes

Intervenções feitas sobre os desenhos comentam a distância entre o projeto e a sua realidade histórica, como as marcas de charuto a chamuscar a sede do Ministério da Justiça. Essa “tortura do edifício”, como coloca Carlos Garaicoa, aponta que a ideia de “Niemeyer como figura icônica da América Latina, desse pensamento modernista de uma nova sociedade” encontra-se hoje “violentada”.

A quarta mesa da série (que nomeia a exposição) torna mais precisa a interrupção histórica e traz, estampada em vermelho sangue, a planta da Casa da Morte. Nos anos 70, o imóvel em Petrópolis, no Rio de Janeiro, serviu como centro clandestino de tortura para o Centro de Informações do Exército. Além da pintura, que parece coagular sobre a madeira, a violência é sublinhada por um serrote fincado no tampo, como a congelar o golpe.

A crise do modernismo brasileiro é confrontada por imagens de uma Havana em ruínas, apresentada em inéditos da série Puzzle, iniciada em 2018. Fotografias de casas, edifícios e estabelecimentos comerciais da capital cubana — quase todos construídos no período pré-revolucionário — são exibidas em uma caixa transparente de acrílico. Um quebra-cabeça com a reprodução da imagem é colocado sobre a foto, mas os pedaços que cobririam as partes ruinosas dos prédios estão destacados e se acumulam no fundo da caixa.

“Havana é uma cidade um pouco parada no tempo”, diz Garaicoa. “Tem essa dimensão temporal e essa dimensão da utopia, de sonho social. Através da arquitetura e da ruína, tem essa ideia melancólica e violenta da decadência de um pensamento, de uma utopia modernista.”

Obras da série “Puzzle” (2019)

Ruínas

Constante na estética de Garaicoa, as ruínas surgiram a partir de exercícios fotográficos na cidade onde nasceu o artista. “Havana é uma cidade completamente saturada desses prédios, desses edifícios destruídos”, diz. Mas registrá-las não bastava. “Encontrei essa ideia da ruína romântica, que está em muitos pintores, como Caspar David Friedrich, mas sempre de um modo muito contemplativo. Fiquei a pensar que é possível, a partir dessa ruína, propor um pensamento mais produtivo.”

As formas inventivas com as quais imprime as fotografias surgem dessa necessidade de ir além da contemplação, que precisa da dimensão criativa e lúdica para tornar a obra “dialética” — palavra muito utilizada pelo artista para comentar o próprio trabalho. “Aqui está a realidade específica que estou a documentar e esta é uma segunda possibilidade dessa realidade”, explica. “Em uma análise posterior, a gente encontra novas respostas efetivas a essa realidade. É essa ideia da história, da memória coletiva que é transformada através de um gesto fictício, um pouco borgeano.”

“Eu sempre falo que nós artistas somos pequenos demiurgos, estamos transformando a matéria constantemente”, continua. “A arte é uma luta constante contra a matéria física, e nesse ponto você tem muitas armas para falar de uma questão política, mas não só. Tem uma dimensão rica, informativa. A arte tem essa capacidade de falar com a realidade e de transmitir um jogo, de esteticamente ver a realidade de um outro modo. Isso é muito especial.”

Essa aposta no poder construtivo da arte é radicalizada na instalação Reglas, que ocupa uma parede inteira da galeria com arquiteturas imaginárias, formadas por fios, linhas, traços e 23 réguas de madeira. Desenvolvida a partir da obra Autoflagelação, Sobrevivência e Insubordinação (apresentada na Bienal de São Paulo em 2004), a instalação é feita a partir de um desenho mas é aplicada diretamente na parede, tornando nova a cada montagem a combinação de forma livre e rigor estético.

As enormes réguas americanas, encontradas por Garaicoa em um antiquário alemão, dialogam com o único desenho da exposição. Na aquarela Tomar Medidas, uma rua de Madri recebe a estranha visita de esquadros flutuantes, sobrepostos sobre a via como um Ovni.

Quatro pregos martelados uns sobre os outros e afixados em uma parede vazia encerram a exposição. Garaicoa deu o título de Resistência ao conjunto de peças de aço, ferro, bronze e ouro —a de metal mais precioso equilibrando-se frágil diante do espectador, enquanto a mais pobre afunda no concreto. Para ele, “terminar com esses objetos de trabalho fala um pouco dessa ideia de resistência, da maleabilidade da realidade em relação aos materiais, com a força que fazemos para a distribuição da riqueza e, de alguma maneira, para a distribuição de poder.”

Parte da instalação “Reglas” (2019)

Intercâmbios

Antes de viajar a São Paulo, Carlos Garaicoa visitou a Zona da Mata Sul de Pernambuco, onde conheceu o jardim botânico e a escola de música do projeto Usina de Arte — além, é claro, das ruínas da unidade desativada de moagem e refino de açúcar. “Fiquei muito impressionado, porque é cada vez mais difícil encontrar pessoas que acreditem assim na arte, que estão aí para entregar uma coisa sincera para a sociedade”, diz, referindo-se a Ricardo e Bruna Pessoa de Queiroz, que o receberam em Santa Terezinha.

Para Garaicoa, o projeto acerta em combinar a ocupação artística do parque com a dinamização da economia local, estimulando a abertura de restaurantes e pousadas. “Você sente que a arte tem um sentido, que ela encontra um lugar de comunicação verdadeira. Além das obras, tem a possibilidade de o artista fazer algo no entorno, de ser parte desse entorno. Acredito muito nesse tipo de projeto, que faz a arte intercambiar com a realidade”, conclui.

O artista pretende retornar à Usina com a esposa, a clarinetista Mahé Marty, para um encontro com os alunos da escola de música, e já há uma conversa em andamento sobre possíveis trabalhos no local. “Não temos algo fechado nem formatado em definitivo ainda, mas a empatia e vontade de desenvolver parcerias está instalada”, diz Ricardo.

A visita ao projeto lembrou Garaicoa de sua própria iniciativa, o programa de intercâmbio e residência Artista x Artista, que recebe criadores internacionais em Cuba e leva talentos cubanos para a Europa. “Talvez por ser artista, acredito muito que tenho que fazer coisas. Para viver, não posso só ter ideias, preciso fazer. E acredito muito na política real, como uma coisa prática”, diz Garaicoa. Essa predisposição tornou-se especialmente sensível em 2006, quando o artista deixou Cuba para viver em definitivo na Espanha, onde já tinha um ateliê. “Eu saí de Cuba porque não podia seguir em um contexto político fechado. Fiquei cansado dessa simplicidade, de uma estrutura de poder de ideologia única, sem oportunidades de diferir”, diz ele. Hoje, ele se considera um dissidente tanto do regime cubano quanto da política espanhola. “Eu penso que é muito importante se manter fora, à margem, em uma posição mais anárquica diante da política.”

Obras de Garaicoa que estarão na SP-Arte

Mercadorias

Além da individual na galeria, a Luisa Strina levará uma obra de Garaicoa para a SP-Arte, feira que abre hoje para convidados e segue até o fim de semana no Pavilhão da Bienal, no Ibirapuera. Provocativa, a peça consiste de uma bolsa de viagem da Louis Vitton com um livro de escritos de Karl Marx dentro. Intitulado O Cristovão Colombo do Capital, o volume foi editado pela própria marca de luxo em uma coleção que convidava fashionistas a “viajar com grandes escritores”.

A galeria espanhola Elba Benítez e a Continua (que se divide entre Itália, China, França e Cuba) também terão peças de Garaicoa à venda, ambas tendo a fotografia como suporte principal.

Apesar dessa boa circulação no mercado internacional de arte, Garaicoa não desconhece as contradições envolvidas no processo de mercantilização de seu ofício. “Penso que estamos atravessando um período muito ruim, em que a arte plástica passa a ser um commodity de design nas casas dos grandes patrões. E a capacidade de ação da arte dentro das sociedades talvez seja menor”, diz.

A avaliação se estende para além da arte. “A sociedade contemporânea está em uma crise na qual é muito difícil pensar numa transformação através do pensamento crítico. Penso que temos que reeducar o mundo na ideia de um pensamento que é construtivo. Mas estamos muito em minoria, as pessoas que ainda pensam que a arte é capaz de mover a sociedade.”

Garlos Garaicoa — Paisajes de Trabajo. Até 25 de maio, de segunda a sexta, das 10h às 19h, e aos sábados, das 10h às 17h. Galeria Luisa Strina: Rua Padre João Manuel, 755 — Cerqueira César — São Paulo.

--

--