Beats

A libertação dos corpos do ocidente viria pela dança dos negros? O primeiro romance de Kalaf Epalanga instiga a reflexão.

Cacá Machado
Revista Bravo!
4 min readSep 3, 2020

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PAUSA DE MIL COMPASSOS | coluna semanal

por Cacá Machado

“Era um ritmo jovial, havia generosidade, abertura, juventude e comunidade nas vozes deles. Eram quatro caras que formavam uma turma, e se amavam e se admiravam. Lembro de me dar conta naquela noite no Dom que a dança dos negros havia sido devolvida ao ocidente branco, as pessoas teriam seus corpos de volta porque os americanos iriam sacudir seus traseiros.” Foi assim que o poeta da geração Beat, Allen Ginsberg, narrou o impacto que a performance dos Beatles na boate The Dom no East Village em Nova Iorque provocou para ele nos anos 60, em artigo escrito para a Revista Rolling Stone (n. 415, 16 de fevereiro de 1984).

Quando li o romance de Kalaf Epalanga, Também os brancos sabem dançar (Todavia, 2018), lembrei-me imediatamente de Ginsberg. Sempre me pareceu meio enigmática essa idéia de que para o poeta branco novaiorquino a libertação dos corpos do ocidente viria pela dança dos negros através do beat da banda branca de rock inglesa, e não, por Chuck Berry ou Little Richards, ora, seus conterrâneos e contemporâneos negros. Porque atribuir aos Beatles o que ele e Kerouac já tinham reconhecido no Jazz Bebop dos anos 40/50? A cultura de massas parece ser o nó. E nesse sentido o título provocativo do romance de Epalanga me ajudou, se não a decifrar o enigma, pelo menos a entender melhor as diferentes perspectivas envolvidas no assunto. Tudo gira em torno dos beats — ou Beat(les), no caso. Afinal os brancos também sabem dançar porque aprenderam com os negros, esta parece ser a provocação que fica subentendida no título de Kalaf. Seu romance musical percorre e tensiona a construção de experiências que têm na dança e nos beats da música eletrônica diferentes perspectivas de centro e periferia, daquilo que está fora e dentro do eixo. África, Europa e Brasil.

O dispositivo é engenhoso. A narrativa da primeira parte do romance é conduzida pela voz do próprio autor, um músico e escritor angolano que juntamente com a sua banda Buraka Som Sistema, destaque nos anos 2000 no mundo da música eletrônica por internacionalizar o Kuduro — gênero que nasceu nas periferias de Luanda e se consolidou como world ghetto music (de acordo com a definição do próprio autor), se veem numa enrascada quando chegam de trem na fronteira da Suécia com a Noruega para um concerto em Oslo. Epalanga está com passaporte fora da validade e é detido pelos policiais escandinavos. O nó é grande e parece ser difícil explicar para um branco europeu nórdico a precariedade da sua condição de imigrante negro angolano que vive no limbo entre seu país periférico, desde que escapou da guerra com seus pais, a cidade de Lisboa, onde passou sua juventude e ocupa de certo modo condição periférica em relação aos centros europeus e Berlim, sua residência atual, “centro” do mundo branco. Kalaf precisa convencer o policial de que ele não é uma ameaça simplesmente por ser negro e africano, mas apenas um cidadão do mundo com um compromisso profissional em Oslo. Na segunda parte, quem assume a narração é a voz de uma mulher, Mari, professora de Kizomba (gênero de dança mais cadenciada que o Kuduro e mais próxima ao Semba) que se envolve com um baiano, o brasileiríssimo Quito — tudo se passa num ritmo de atmosfera transatlântica e interracial em que as danças de par enlaçado Kizomba e Semba inscrevem certa geografia amorosa-musical pelos guetos de Lisboa. Na terceira parte do livro, a narração passa para a voz do policial norueguês, que é fã de rap norte-americano. Sim, seco assim, porque é com esse estilo monótono e cheio de vazios que o policial conduz o ritmo narrativo que me parece, do ponto de vista formal, o ponto alto do romance.

A economia geral do signos do livro gira em torno da desterritorialização. Começando de trás para frente, o rap como gênero internacional de sucesso cultivado por um norueguês não tem nada de orgânico com sua experiência nórdica. Kizombas e Sembas, danças tradicionais de Angola se ressignificam na “pequena África” em Lisboa. E, por fim, o Kuduro (o ritmo que ganhou base eletrônica como o nosso Funk) é consagrado nas pistas brancas européias sob o signo de World Ghetto Music.

Tudo isso poderia ser narrado com ênfase no conflito e no engajamento político, como observou Acauam Oliveira em resenha sobre o livro na Revista Quatro cinco Um (https://quatrocincoum.folha.uol.com.br/br/resenhas/l/no-passinho-do-kuduro). Mas Epalanga opta por entender a cultura da imigração como um espaço desterritorializado até certo ponto positivo pelo tom geral de afirmação da festa e do amor que atravessa o seu romance. Nesta perspectiva, voltando ao início, os ouvidos do branco poeta Beat Allen Ginsberg, que apesar de louvar os beats da cultura negra norte-americana desde o Bebop, precisaram dos beats dos brancos Beatles para entender como a contribuição universal da cultura negra para a liberação dos corpos do ocidente podia chegar às massas.

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