Brecht livre
O tradutor André Vallias comenta a edição de “Bertolt Brecht: Poesia”, primeira grande antologia bilíngue do autor alemão no Brasil, e antecipa cinco poemas do livro
Embora Bertolt Brecht seja mais conhecido aqui e no mundo como autor de teatro, seus poemas circulam desde pelo menos os anos 50 no Brasil, onde já foram cantados no palco, gravados em disco, declamados na TV, impressos em panfletos e camisetas de esquerda— além, é claro, de editados em livro. Entre as principais coleções estão a esgotada Poemas e Canções (Civilização Brasileira), com traduções feitas por Geir Campos em 1966, e Poemas 1913–1956, tradução de Paulo César de Souza editada pela Brasiliense em 1986 e relançada pela Editora 34 em 2000.
Campos verteu 143 poemas para o português, enquanto Souza chegou ao número de 270 (reduzido para 260 na nova edição). Embora consideráveis, ambos os esforços somados, substituídas eventuais repetições, não chegam a cobrir 20% dos cerca de 2.300 poemas deixados pelo escritor — em forma variada, de versos rabiscados a letras para canções de Kurt Weill — e organizados entre os mais de um milhão de itens que compõem o Arquivo Bertolt Brecht, sediado em Berlim.
Nesta semana, a divulgação da poesia de Brecht no Brasil ganha novo capítulo com o lançamento de 300 poemas traduzidos por André Vallias. Publicada na Coleção Signos da Editora Perspectiva, Bertolt Brecht: Poesia é a primeira grande antologia bilíngue do autor e cobre todo o seu período criativo, desde a adolescência nos anos 1910 até a morte em 1956. (Uma edição bilíngue anterior, com apenas 13 poemas, foi produzida por Haroldo de Campos em 1966.)
No novo livro, os poemas estão dispostos em ordem cronológica e divididos de forma geográfica, em capítulos que levam o nome das cidades onde Brecht estava quando os escreveu. No percurso, o leitor atravessa dois continentes, duas guerras mundiais, revoluções bem e malsucedidas, a ascensão e queda do nazifascismo, períodos de exílio e a tentativa incansável de elaborar uma arte crítica — em igual medida útil para a luta dos oprimidos e inventiva do ponto de vista formal, em um diálogo produtivo com a tradição.
Coloquialismo
Poeta e designer gráfico, André Vallias segue de perto os preceitos da “transcriação” de Haroldo de Campos, a quem o livro é dedicado, e da “tradução-arte” do irmão Augusto, que dirige a Coleção Signos e assina a orelha do livro. No processo, iniciado em 2016, Vallias traduziu os poemas com liberdade, sem temer o coloquial ou a necessidade de adaptação para dar ritmo aos versos, como se observa na recriação de rimas. Sua Gründungssong der National Deposit Bank, por exemplo, virou o Funk de Fundação do Banco Nacional de Depósitos, onde se lê: “Mas tem algo que é fatal/ Para início — o capital./ Se, contudo, falta grana/ Que fazer? A gente afana.” Para comparação, Paulo César de Souza deu ao poema título mais literal (Canção de Fundação do National Deposit Bank) e, no mesmo trecho, escreveu: “Mas uma coisa é fatal./ É preciso capital inicial./ E não havendo o dinheiro/ Onde obter, senão roubando?”
Para a ocasião do lançamento de Bertolt Brecht: Poesia, haverá nesta quinta-feira (5), na livraria Tapera Taperá, em São Paulo, a leitura de alguns dos poemas por Alice Ruiz, Celso Sim e Omar Khouri. No Rio de Janeiro, o livro será lançado no dia 9 na Livraria da Travessa de Botafogo.
A seguir, leia uma entrevista com André Vallias e cinco poemas da antologia, compartilhados com a Bravo! em primeira mão.
Na introdução do livro, você escreve que a situação em que o Brasil mergulhou nos últimos anos parecia repetir — “com uma voz mais penetrante, quase de comando” — a pergunta que um amigo fizera em 2011: “Por que você agora não traduz Brecht?” Por que traduzir Brecht agora?
Porque é uma poesia que percorre e intervém num dos períodos mais sombrios e dramáticos do século XX. Porque é uma poesia pé-no-chão, multifacetada e demasiadamente humana, que exalta valores que estão em baixa no mundo contemporâneo e se mostram cada vez mais necessários: o aprendizado, a alegria, o ímpeto transformador, a gentileza, a esperança etc.
Como você mesmo observa, o número de poemas escritos por Brecht é imenso, de aproximadamente 2.300 poemas. Quais critérios adotou para esta seleção?
Adotei uma mescla de critérios subjetivos e objetivos: escolhi poemas que me agradavam, poemas célebres demais para serem deixados de lado, poemas especialmente interessantes para ilustrar um determinado período, poemas que ainda não tinham sido traduzidos e, principalmente, poemas que julguei traduzíveis para o português Mas, naturalmente, muitos ficaram de fora por conta do prazo que estipulei para o projeto.
Como chegou na organização do livro, em que os poemas são divididos em capítulos com nomes de cidades onde Brecht passou?
Os poemas estão ordenados por ordem cronológica (o que é o grande diferencial desta edição, além do fato de ser bilíngue). O índice está por ordem alfabética para facilitar a procura de títulos em português e alemão. Dividi em seis capítulos que marcam o percurso geográfico-existencial do poeta, cada um deles é introduzido por fragmentos dos diários e anotações autobiográficas.
Quais tipos de desafios um poeta como ele impõe a quem deseja traduzi-lo para o português?
Traduzir poesia é a tentativa ousada de recriar em outra língua e em outro tempo um diagrama que seja tão instigante, complexo e movente quanto o diagrama original. Haroldo de Campos chamava isso de “transcriação”; Décio Pignatari, de “outradução”; Augusto de Campos, de “tradução-arte”. Foi o desafio ao qual me propus.
A capa e o projeto gráfico do livro foram concebidos por você. Como se deu esta parte do processo de criação?
Quis usar uma fonte que remetesse historicamente aos anos de glória do poeta e que ainda fosse atual. A Futura, criada pelo designer alemão Paul Renner, muito utilizada nos anos da República de Weimar e da Bauhaus, foi a escolha mais óbvia e natural. Além disso, foi a fonte preferida dos poetas concretos brasileiros em sua fase “ortodoxa”, nas décadas de 1950 e 1960. Usei a Futura Medium (1927) para o texto e a Futura Black (1930) para a capa. Foi também um gesto de romper com a “ditadura” das letras serifadas.
Observei que no livro há o link para um site ainda em construção (andrevallias.com/brecht). O que será disponibilizado por lá?
A Adenda Digital com duas partes da minha introdução, as notas para os fragmentos de diários/anotações autobiográficas e o índice geral.
Poemas de Brecht traduzidos por André Vallias
Aos pósteros
Confesso: eu
Não tenho esperança.
Cegos falam de uma escapatória. Eu
Enxergo.Quando os erros já se esgotaram
Senta-se (derradeira companhia)
O nada à nossa frente.(c. 1920)
As cidades
Por baixo delas corre esgoto,
Por dentro, nada; por cima, fumaça.
Lá estivemos. Só tivemos desgosto.
Passamos. Elas também, a cada ano que passa.(c. 1926)
Aqui ficavam os antigos mouros
Aqui ficavam os antigos mouros
E miravam longamente o mar
Dizendo, reinos são morredouros
E o nosso está para se acabar.E o que os mouros diziam é inconteste
Pois não sobrou um para contar;
E agora, onde ficavam, está Brecht
E ele mira longamente o mar.(1930)
Nos tempos de escuridão
Também há de se cantar?
Também há de se cantar:
Os tempos de escuridão.(1939)
A solução
Após o levante do 17 de junho
O Secretário da União dos Escritores
Mandou distribuir panfletos na alameda Stálin
Nos quais se lia que o povo
Abusara da confiança do governo
E que só com trabalho dobrado esta
Poderia ser reconquistada. Ora
Não seria mais simples o governo
Dissolver o povo
E eleger um novo?(1953)
Bertolt Brecht: Poesia, introdução e tradução de André Vallias. Editora Perspectiva, 584 págs., R$ 89,90.
Lançamento em São Paulo: dia 5/12, às 19h, na livraria Tapera Taperá (Av. São Luis, 187 — loja 29 no 2º andar da Galeria Metrópole— República). Rio de Janeiro: dia 9/12, às 19h, na Livraria da Travessa (R. Voluntários da Pátria, 97 — Botafogo).