Cadernos de leituras

Uma estranha reunião modernista e o dia em que nevou em São Paulo

Bravo!
Revista Bravo!
2 min readSep 22, 2020

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Por Carlos Castelo

Que garçonnière aquela, do Oswald de Andrade, na Líbero Badaró! Nem conto…

Guilherme de Almeida, Monteiro Lobato, Menotti del Picchia, Ricardo Gonçalves, Ferrignac.

Todos nós, no clímax da juventude, íamos ao apartamento discutir literatura, política, ouvir música, promover saraus.

Eu era o mais mais café com leite. Comparecia aos encontros porque era protegido do Mário, uma espécie de assistente em suas viagens pelo interior paulista para registrar o folclore. Carregava as malas, os cofos, a máquina fotográfica e os cadernos de anotações.

Seu Mário me pagava em livros e cartas de recomendação. Montei uma pequena biblioteca de literatura francesa e passei a ter assunto para conversar com os modernistas.

Num desses encontros festivos da Líbero passei a discorrer sobre Blaise Cendrars. Lobato, com suas indefectíveis sobrancelhas de ariano torto, gostou dos meus pontos de vista; convidou-me logo para trabalhar em sua editora.

Oswald não estava na saleta naquele “meu” momento. Ao retornar, como sempre fazia, mudou o ambiente. Veio com Daisy, a aclamada Miss Cyclone, de braços dados e às gargalhadas.

Ricardo Gonçalves os interrompeu e pediu que o casal me ouvisse verbalizando os versos de Prosa Transiberiano. Segui:

…do fundo do coração brotam-me lágrimas

Se penso, Amor, na minha amada;

Não passa duma criança, que encontrei

Pálida, imaculada, no fundo dum bordel,

É uma criança, loura, risonha e triste,

Não sorri nem chora;

Mas no fundo dos seus olhos, quando vos deixa beber

Treme um delicado lírio de prata, a flor do poeta.

Foi inevitável que eu dissesse aqueles versos olhando para o fundo dos olhos de ressaca da linda normalista.

Quando encerrei, todos prorromperam num klaxon de palmas. Todos menos Oswald. Olhava para mim e Miss Cyclone, como se seu grosso pescoço acompanhasse uma partida de tênis entre Charles Chaplin e Paulette Goddard.

Resolvi ir-me embora ao notar o evidente ciúme oswaldiano. Quem disse que o anfitrião permitiu? O homem passou a não mais conversar, mas a palestrar. Voltando-se como um pêndulo para Daisy e eu deitou agressiva falação sobre Breton, Montaigne, Totem e Tabu, Rousseau, o Bispo Sardinha. Tanto falou, exclamou, bufou que, quando todos já estavam hipnotizados, flocos de neve aterrissaram em pleno Centrão.

O poeta abriu as janelas da garçonnière e urrou como um tritão:

– Só lhe interessa o que não é seu!!!

Ergueu-me com facilidade e lançou-me na calçada. Levantei na cama de casa, transido de frio, e com o livro Neve na Manhã de São Paulo (Companhia das Letras), de José Roberto Walker, em cima do peito.

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