Canções desintegradas

Guilherme Werneck
Revista Bravo!
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3 min readApr 18, 2019

Crítica: com Maurício Takara na bateria, Rakta aprofunda a tensão entre o concreto e o abstrato — mantendo o traço ritualístico — em "Falha Comum"

Rakta ao vivo durante a gravação do Sesc Instrumental

Falha Comum, a música que abre o disco de mesmo nome do Rakta, começa com uma percussão tateando espaços bem ao estilo da improvisação livre, enquanto um som grave, quase em um staccato em câmera lenta, dialoga com a bateria. Em seguida começam a entrar bolhas de ruídos, que têm origem no teclado, mas processado por pedais. Esse som começa a se organizar em um pulsar esparso e vai ganhando corpo até se cristalizar em um todo tribal. A massa sonora ganha peso e o vocal irrompe, primeiro com gritos e depois entregando a letra que, como sempre, está embaçada pelos efeitos — percebe-se a intenção mas são palavras perdidas no nevoeiro, se chocando nos dois lados do estéreo. Há um eco de canção, uma organização, entretanto nada se fixa. A sensação é a do início de um ritual, uma evocação xamânica que prepara o espírito para entrar no universo do terceiro álbum da banda.

A grande novidade neste disco é a entrada de Maurício Takara na bateria e percussão, substituindo Nathalia Viccari, que se mudou para Buenos Aires. A sensibilidade jazzística de Takara combinada com sua origem no hardcore dá um impulso forte para que Paula Rebellato (sintetizadores e voz) e Carla Boregas (baixo) consigam expandir os limites das canções, ou esgarçá-las, como disse Carla durante uma apresentação recente das músicas do álbum no Sesc Consolação, em São Paulo.

As sete canções do disco passam por esse processo de desintegração. O interessante é que é uma desintegração estruturada, existe um esqueleto em todas as faixas, mas em vez das partes convencionais da canção, com A, B, refrão, a estrutura é que é corroída pouco a pouco. As partes estão lá, mas os elementos vão sendo contaminados por ruídos, texturas, inflexões rítmicas. Exemplo disso é Estrela da Manhã, que começa quase como uma música convencional do pós-punk. A primeira parte poderia estar num disco do Xmal Deutschland do meio dos anos 1980, mas a segunda vai pouco a pouco permutando elementos, incluíndo, ruídos, sujeiras, texturas.

Fim do Mundo traz como novo elemento um flerte com a música dançante, mas, de novo, por mais que bateria e baixo desenhem uma linha que impulsiona os quadris, o teclado leva para paragens mais etéreas.

Outro elemento central é uma certa circularidade das canções, que remetem ao tribal, ao ritualístico, mesmo que apresentadas em formas diferentes em músicas como 笑笑, que quer dizer gargalhada em chinês e japonês, e Ruína. Porém, ainda que haja um desejo manifesto de expansão da consciência em quase todas as faixas, a propulsão roqueira, que como no krautrock parece levar sempre adiante, também se impõe, principalmente em Flor da Pele e Miragem.

Pensando na trajetória da banda esteticamente, III (2016) é o momento em que o Rakta amadurece seu no seu som, equilibrando texturas sonoras mais psicodélicas com a pulsão punk muito presente no primeiro LP, Rakta (2013) e em singles como Serpente (2014) e Rakta em Transe (2015). De lá para cá a música se torna ainda mais psicoativa, com seu jogo de ruídos, feededbacks, gritos, ecos, delays. Um processo que já se anuncia no EP Oculto Pelos Seres (2018), mas que chega de forma mais explícita com este Falha Comum.

O traço mais interessante do Rakta é como equilibrar o risco pelo desconhecido, pelo inteligível e o sensorial com formas já estabelecidas. Falha Comum mantém essa característica, mas é o álbum da banda que traz mais elementos desafiadores, que até então eram explorados com mais profundidade nos projetos paralelos de Paula Rebellato e Carla Boregas, como Acavernus e Fronte Violeta.

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