Cantando o Brasil de Elsie Houston

Segundo álbum do projeto Goma-Laca dá corpo à música popular brasileira a partir de livro lançado na França em 1930

Guilherme Werneck
Revista Bravo!
22 min readJul 11, 2019

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Fotos: José de Holanda/ divulgação

Elsie Houston é uma dessas personagens incríveis da música brasileira. Filha de brasileira com um americano, ela começou a estudar piano aos 7 anos de idade. Aos 15 trocou o instrumento pelo canto. Próxima do compositor nacionalista Luciano Gallet, que conhece em 1922, se torna uma das suas maiores intérpretes. Na mesma época começa uma correspondência com Mário de Andrade que vai durar a vida toda. Nos anos 20, estuda na Alemanha, em Buenos Aires e em Paris, onde se casa com o poeta surrealista Benjamin Péret, além de fazer parte do círculo íntimo de Heitor Villa-Lobos e Arthur Rubenstein. É em Paris que percebe que tem de conhecer melhor o Brasil, e desse encontro do mundo lírico com a música folclórica floresce muito da sua arte.

Em 1930, Elsie Houston publica na França o livro Chants Populaires du Brésil (Cantos Populares do Brasil, em português) e esse livro, que nunca teve uma edição nacional nem um tradução para o português, serve de base para o novo álbum do projeto Goma-Laca, produzido pelos pesquisadores musicais e jornalistas Biancamaria Binazzi e Ronaldo Evangelista.

Para dar corpo ao projeto, os dois convocaram a cantora e percussionista Alessandra Leão e montaram um time impressionante de músicos para as gravações de 19 melodias registradas no livro de Elsie. Com uma banda de base que traz o contrabaixo acústico de Marcos Paiva, o violoncelo de Felipe Massumi, e os sopros de Junior Kaboclo, além da voz dos tambores de Alessandra Leão, o disco é recheado de convidados, pessoas escolhidas com muito cuidado para recriar essas canções que estão na gênese da música popular brasileira. Há as vozes de Juçara Marçal, Marcelo Pretto, de Lívia Mattos, que também toca sanfona, e de Siba com sua rabeca. Há os lindos coros das Pastoras do Rosário, a viola e zabumba de Rodrigo Caçapa, o clarinete de Luca Raele, o vibrafone de Beto Montag, a harpa de Alice Oliveira, as congas de Johny Gima, e o órgão e piano de André Mehmari.

Mais do que um disco em que o "erudito se curva ao popular" nas palavras de Ronaldo Evangelista, o Goma-Laca: Cantos Populares do Brasil de Elsie Houston é um pequeno livro que se pode ouvir.

No próximo sábado, dia 13, às 21h no Sesc Pinheiros, o disco será lançado com um show cheio de participações especiais e um repertório que expande os 74 minutos gravados em CD. Para falar da pesquisa, do show e dessa personagem impagável que é Elsie Houston, a Bravo! se encontrou com Biancamaria Binazzi e Ronaldo Evangelista no Centro Cultural São Paulo. Conversa que se estendeu por um almoço nas redondezas. Leia abaixo os principais trechos desse papo.

Elsie Houston, em série de fotos encontradas durante a pesquisa

Vamos começar pela história. Primeiro, como você chegaram no livro da Elsie Houston?

Biancamaria Binazzi — A gente já conhecia A Elsie como cantora, já era nossa cantora preferida, ou pelo menos uma das mais interessantes.

Ronaldo Evangelista — Um preâmbulo para a história em si é que, nos interesses do Goma-Laca desde que a gente criou esse projeto, a Elsie junta muitos pontos. O Goma-Laca tem 10 anos. Começamos a falar sobre ele em 2009 e o primeiro show foi em 2011. E a gente tem um método. Fazemos um milhão de pesquisas. A própria pesquisa sobre a Elsie se desdobrou em outras, como sobre o Luciano Gallet, o Theatro Municipal de São Paulo, sobre como a macumba é tratada na imprensa da época — um monte de pesquisas. A gente vai trocando figurinha, anotando e uma hora a gente fala, isso junta muitos interesses, esse núcleo vale a gente desdobrar. Então a Elsie…

B — Mas ela já era diferente. A gente pensa em Dalva de Oliveira, Carmem Miranda, legal, mas elas já estão muito bem representadas, e a gente vai muito no ouvido do nosso amigo mestre Mário de Andrade. Ele já falava: "essa mulher está fazendo coisa diferente". Ela não é uma cantora popular, mas ela está estudando o cantar do Brasil, o nasal do brasileiro, os timbres. E ela está voando, fazendo uma coisa moderna. Ela tem pesquisa, escolhe o repertório mais interessante. Então a gente foi muito pela escuta dele. Como o nosso primeiro disco era o Mário de Andrade procurando os discos de afro-brasilidade, coisas que não eram populares de tocar no rádio, a gente sabia um pouco da biografia dela. Existiu também um disco-livro lançado pelo Museu Afro-Brasil, que tem alguns 78 rotações dela, e nele é citado brevemente o livro Cantos Populares do Brasil. Mas a gente nunca tinha tido acesso a ele. Porque ele foi lançado na França, em 1930, e a gente não encontrava em nenhum lugar. O que aconteceu foi que, para a inauguração do Instituto Moreira Salles em São Paulo, o Juliano Gentile, que é o curador de música lá e é nosso padrinho, fez nosso primeiro show no Centro Cultural [São Paulo], nos convidou para fazer um show usando o acervo de 78 rotações do IMS. E é um acervo enorme. Aí eu pensei: vamos ver o que eles têm de Elsie, imaginando que a gente iria achar discos. Só que no meio dos discos tinha o Chants Populaires du Brésil, num exemplar que tinha pertencido ao [José Ramos] Tinhorão. Entre parênteses: o Tinhorão detesta ela. Mas apesar de detestá-la, ele guardou o livro. Só que estava no Rio de Janeiro, a gente não conseguia ir pegar. E eu pensei: se o Tinhorão tinha, o Mário de Andrade também tinha. Aí no IEB [Instituto de Estudos Brasileiros], na USP, onde está todo o acervo do Mário de Andrade, a gente foi achar esse livro, que era da biblioteca pessoal dele. E além do livro, que você pode mexer, tem a dedicatória da Elsie.

R — Como tudo do Mário, os rodapés são mais ricos que o conteúdo.

B — É muito bom porque ele continua a pesquisa dela: "isso daqui o Marcelo Tubinambá transformou nisso" ou "isso eu ouvi também em Pernambuco, ela ouviu em Alagoas". Aquilo foi um mapinha. A gente queria o livro e não era fácil ter uma cópia, mas a gente descobriu que no site biblioteca nacional da França, que tem tudo digitalizado, foi disponibilizada uma cópia em PDF para baixar.

Mas é preciso saber que ele existe para procurar…

B — Não só saber que ele existe, mas saber que a Elise não é só uma cantora, ela foi uma super pesquisadora. Junto com o livro, a gente encontrou uma série de discos que ela gravou para a Sorbonne [Universidade de Paris] para estudos de fonética e linguística. Discos que não eram de música, mas para entender como o brasileiro fala. Ela fez um congresso em Praga em 1928. Foram convidados para o congresso Mário de Andrade, Luciano Gallet, Renato de Almeida. Nenhum passou e a única pessoa que falou sobre o Brasil foi ela.

R — Ela publicou a fala dela em um texto muito legal, O Panorama da Música Brasileira.

B — Então você vê que, como muitos cantores da época, ela não estava só recolhendo as canções para cantar. Ela queria entender o que é uma embolada e principalmente a questão das músicas afro-brasileiras, tentando explicar que aquilo não deveria ser proibido. Nesse texto ela pondera por que o samba pode e o batuque não pode? Por que a capoeira é crime? E aí ela vai muito corajosamente publicando essas inquietações. Mas é claro que no Brasil não saiu muita coisa. Mas tanto na França quanto nos Estados Unidos ela foi reconhecida como uma divulgadora, uma musicóloga pesquisadora da música brasileira. Essa foi nossa principal descoberta: ela era muito mais do que a cantora que a gente já amava.

Ronaldo Evangelista, Alessandra leão e Biancamaria Binazzi

E como ela chega nesse lugar? Porque ela vem do canto lírico, segue uma tradição musical muito europeia. Embora seja filha de um americano, foi criada no Brasil, começou os estudos aqui e depois vai para Paris estudar canto lírico. Vocês acham que ela tem uma influência da onda nacionalista que estava no centro da discussão musical na Europa e nos trabalhos dos compositores europeus da década de 10, da década de 20 do século passado?

B — Super.

R — Principalmente o estudo da música popular, isso era uma tendência da época.

B — Os nacionalistas daqui, o Villa-Lobos, o Mário de Andrade, o Luciano Gallet, eram a turminha dela, os amigos. Frequentavam a casa. Eles rompiam com as tradições acadêmicas europeias, mas iam para a Europa para beber essa ideia de ruptura. Como acontece com o Villa-Lobos, tanto que ela foi junto com ele para Paris. Aí você tem aquela história clássica do Villa-Lobos –que ele chega em Paris, se achando moderno, começa a tocar umas músicas meio Debussy, e os franceses dizem que isso eles já conhecem, que eles querem ouvir música brasileira. E é aí ele se descobre brasileiro. A Elsie também. Ela descobre o Brasil quando ela sai, ela tem essa professora de canto lírico que era mais modernista, a Ninon-Vallant, que começa a inspirá-la. É lá que ela começa a incorporar essas coisas mais exóticas. Depois de Paris que ela vai fazer a viagem dela pelo Brasil e vai fazer o livro.

E como é o trajeto da viagem dela? Porque a maior parte das músicas vêm do nordeste, mas tem também músicas caipiras, do sudeste, e coisas indígenas, da Amazônia.

B — Isso é um grande enigma. A gente nunca achou exatamente. A gente tem pistas. Cartas de indicação. Ela teria passado por Manaus, pela Paraíba, mas são pistas. O marido dela, com quem ela fez as viagens, era o Benjamin Pérret, que nos anos 60 lançou livros sobre culturas populares. Mas o grande segredo, que o Mário de Andrade já falou, é que o livro é muito bom, mas não é só de viagem. Não são apenas canções que ela coletou em campo. Tem muita coisa que foi informada. Então o livro tem muito das viagens do Mário, tem muito dos aprendizados com o Hekel Tavares, com o Jaime Ovalle…

R — Tem um capítulo importante da música popular que também passa pela Elsie, que é quando Os Turunas passam pelo Rio de Janeiro em 1922. Tem várias músicas que ela grava e que ela escreve que vêm daí. Porque Os Turunas estão ligados ao João Pernambuco, que era dos Oito Batutas numa fase. E o João Pernambuco também tinha viajado com os Oito Batutas recolhendo músicas. Tanto que tem músicas do Gastão Viana, irmão do Pixinguinha, que obviamente eram músicas de terreiro que ele assinou. O próprio Pixinguinha tem várias em que acontece a mesma coisa.

Naquele disco Gente da Antiga, do Pixinguinha com o João da Baiana e a Clementina de Jesus, tem vários pontos de macumba.

R — E isso é depois. Se você for pegar nos anos 20, quando eles começam, têm várias músicas que partem do popular, porque a moda da época era você dar uma roupagem. Eles pegavam um mote interessante, faziam um arranjo e passavam por compositores. Então as músicas são levemente mudadas, a não ser as coisas só do João Pernambuco. Mas quando Os Turunas vão para o Rio, com o Jararaca sendo o personagem principal dessa viagem, levam muita música e gravam muitas músicas que depois eles até vem a regravar. As próprias gravações mais emblemáticas do Jararaca são já do fim dos anos 20. Mas eles passam por lá em 1922, e tem muita música que vai surgindo no nosso inconsciente coletivo histórico, até porque elas vinham de muito longe das capitais.

B — Que nem hoje, você vê essa turma que vai no show da Alessandra Leão, da Karina Buhr.

R — Comadre Fulozinha.

B — Com essa migração, os músicos pernambucanos dominaram o rádio, todo mundo pirou nas músicas deles, e quem não era pernambucano, como o Almirante, começou a incorporar os instrumentos, os ritmos, os temas.

R — E se você for pensar, isso é uma tradição da música brasileira desde que ela nasceu. Qual é a primeira música gravada? Isto é Bom, com o Baiano. É uma música folclórica.

B — Uma chula.

R — Tanto que tem nas anotações da Elsie e tem nas anotações do Mário como Iá Iá Você Quer Morrer. E o cara chama Baiano e está gravando uma música de matriz popular.

B — Xisto Baia

R — Xisto Baia, sem dúvida. Desde que a música brasileira nasceu, isso é o pop, a tendência. A Elsie e todos os modernistas estão muito ligados nisso, então aceitá-los é aceitar também a música popular da época.

Vocês acham que a Elsie é influenciada pelo Mário nas viagens ou é o Mário que é influenciado pela Elsie?

R — A missão do Mário acontece dez anos depois.

B — Mas eu acho que não, o Mário já começa a recolher antes. Ele está viajando desde 1924, anotando. E se você cruza, por exemplo, o Ensaio Sobre a Música Brasileira, que é de 1928, você já encontra umas cinco ou seis partituras que estão no livro da Elsie, iguaizinhas. No do Luciano Gallet encontramos umas oito iguais.

R — Mas o que é curioso que às vezes muda um pouco.

B — O que acontece é que às vezes o Mário diz que ouviu no Rio Grande do Norte e ela ouviu na Paraíba. Mas o que acontecia era uma troca. Eles eram amigos. Tanto que nas cartas aparecem umas rusgas, que era, "poxa, você passou aquela música minha para a Elsie, e ela nem me deu crédito". Porque naquela época a moeda de troca era a melodia. Na época que não tinha a tecnologia de gravação, o Mário ia lá e anotava um Bumba Meu Boi, ele não podia passar para qualquer um. Porque só ele tinha. E era muito difícil. Você tinha de ir para um lugar, ouvir, você tinha de anotar com a música acontecendo. E o Mário falava que não dava para anotar a música brasileira, porque tem as percussões, os quartos de tons, o improviso. Por isso ele fez a missão, porque ele entendeu que tinha de gravar.

R — Por na pauta já é deturpar. Já é fechar uma coisa que é feita para ser aberta. Tipo desafios e emboladas.

B — Por isso gravar, mas o legal é que nesse projeto a gente está falando da época pré-gravação.

R — Isso é uma coisa que a gente já tinha ido atrás quando fizemos o disco anterior, de afrobrasilidades. Tinha visto muito no livro do Sílvio Romero, nas poesias do Catulo da Paixão Cearense. Tudo de poesia ele assinava, ele tem 400 mil livros, e todas as poesias que existiram no mundo ele dizia que eram dele, né? Mas vira e mexe a gente acha um verso de uma música que o Catulo registrou uma quadrinha. Então um dia ele ouviu em algum lugar. Mas o incrível é como as coisas se misturam. Às vezes a gente acha um texto com um refrão e um improviso. Aquele improviso é parecido com outra música. A própria Taieras, que e está no disco. A Inezita [Barroso], que é outra das nossas deusas mor, canta de um jeito diferente a letra.

B — Mas é o jeito de falar, quem cantou para ela cantou desse jeito, a música pode ter mil anos, né?

R — Por isso a gente não pode ser sacro com isso. É o contrário, a gente tem que adaptar, porque tem coisa, por exemplo, que não faz sentido. Ou a gente não entende o sentido porque é uma piada antiga. Algumas vezes, a letra parecia estar falando contra ela mesmo. Em Bambalelê isso acontecia.

E existem coisas que vocês mudaram para deixar mais politicamente correto, não?

R — Politicamente correto é o termo pejorativo do momento. Mas foram coisas naturais, de letras que não eram confortáveis para a gente.

B — Tinha uma que falava do judeu [em Bem-Te-Vi]. Tem caso do mulata. Todas as mulatas a gente tirou fora.

R — Tem uma que é boa, que a Alessandra fez instintivamente e ficou muito bom, que é em Cordão de Prata. A letra era "não acredito em mulher nem quando está dormindo". Ela trocou para não acredito em você. É uma mudança muito simples, a música fica mais direta e a gente não perde o espírito. Teve umas três quatro dessas.

B — Mas o legal é que as músicas, todas elas, eu imagino como formas do bolo, mas a receita está aberta. Você pode botar o que quiser. Principalmente são refrãos na verdade. O legal é o que você vai por no meio. E para gente era importante que todo mundo, a Ale, o Marcelo [Pretto], pudesse colocar um pouquinho de si também nas letras. Escolher os refrãos que mais faziam sentido e inventar outros. Acho que no show a gente vai conseguir fazer mais isso de usar essas formas com liberdade, que é típico do coco, da música popular. Como no caso do Marinheiro Só, o meio cada um preenche como quer.

R — Freestyle.

E como vocês fizerem a seleção do que ia entrar no disco, porque o livro tem muito mais músicas registradas?

B — Não foi fácil.

R — Eu fiz uma lista de favoritos, a Biancamaria fez seus favoritos, a Ale escolheu as dela. Mas antes de tudo, a gente fez uma longa pesquisa para descobrir o que tinha sido gravado, o que tinha em disco. O que é muito difícil porque nem tudo tinha o mesmo nome. Por exemplo, a própria Cordão de Prata, que é uma das nossas favoritas, a gente demorou para encontrar. A gente já estava ensaiando quando a encontrou como Mulata Roxa. E foi difícil para a gente ligar isso. Ela tinha esse título porque em um dos versos ele fala "mulata roxa é morena", olha que viagem.

B — E às vezes ela é registrada como Cordão de Ouro também, que a gente ouviu agora em Pernambuco.

Mas como foi o processo?

R — O processo foi ir mostrando para a Ale os discos. Quando ela foi em casa a primeira vez, a gente já mostrou alguns discos, tocou algumas melodias no piano, cantarolou outras. E muitas nos acompanharam até cair porque já não tinha espaço no disco. Tem umas três, quatro que eu sinto falta, que eu gostava muito. Tem até música que a gente chegou a ensaiar, fazer no show do IMS no ano passado e não entrou. Algumas das que a gente mais gostava como Três Pega, não tem disco. A gente conhece a melodia porque a gente tocou e cantarolou, mas não podemos nem falar para alguém: ouve essa música… Só tem na nossa cabeça e de quem for ler o livro.

B — Mas uma coisa que a gente fez, mas só um pouco, porque foi tímido, foi transformar em vinhetas essas músicas que não tinham gravação, mas que eram super bonitas, uma ideia do Ronaldo.

R — No começo a gente ia fazer uma música e uma vinheta, para ser como se você folheasse o livro. Mas aí o disco já tinha 15 músicas longas e não coube. E a gente amarrou as vinhetas que estão no disco com um material que foi recolhido pela irmã da Elsie, a Mary Houston, em Montes Claros, cinco anos antes da Elsie. Tanto o Mário quanto o Gallet harmonizaram essas músicas em 1923, 1924, dizendo que foram recolhidas pela Mary. Por isso a gente chamou essas músicas de vinhetas de Montes Claros no disco. Uma com o Mehmari tocando órgão [Perdiz Piou], outra com o Massumi no violoncelo [Fotoró Tó Tó] e a terceira com Alice Oliveira com a harpa [Ai que Coração].

B — Foi o nosso recorte, quando vimos que só podia ter três, juntamos essas de Montes Claros.

R — E no fim, a única tomada [elétrica]usada no disco foi numa dessas vinhetas que tinha o Mehmari com o órgão. Porque uma das regras era não poder ter tomada, porque retratava música das tradição oral, do começo do século, de antes do microfone. A ideia principal era fazer uma banda que fosse de câmara e de rua, moderna mas que exista com instrumentos acústicos.

B — Mas não foi fácil tirar aquele [órgão] Hammond de lá (riso).

R — Nós gravamos essa faixa no estúdio do Mehmari. Essa música nós testamos com marimba de vidro, com cravo, mas a do órgão foi a que a gente achou que ia colar melhor entre uma música e outra no disco, tinha uma coisa que lembra igreja e que tem a ver.

O órgão usa tomada, mas poderia ser um órgão de tubos numa igreja.

R — Total.

B — Se você ouvisse a de cravo, ia brigar com a gente. Ela está muito boa, mas a gente foi covarde (risos).

R — Imagina um cravo e um cravo bem picadinho, ia ficar muito diferente do resto do disco…

B — Vamos ser sinceros, faltou coragem.

R — A gente mostra no programa de rádio. Vamos ter vinhetas lindas do André Mehmari para o rádio.

B — Esse material da Elsie é muito extenso, dá para pegar só um instrumentista e explorar essas outras canções.

R — Dá para fazer um segundo disco só com instrumento solo.

B — Foi para isso que a Elsie criou o livro. Para a pessoa pegar a notação, entender e criar. Porque são só pistas que ela dá. Não tem harmonia…

R — Isso no fim foi uma coisa muito boa para a gente. Foi muito importante para o nosso conceito. A gente vê que na verdade tem páginas do livro com duas partituras muito rapidinhas, com uma frase e meia dúzia de notas. Isso nos deu liberdade. Quando a gente foi ouvir muitas das músicas, a Xangô mesmo, que abre e fecha o disco, ela existe não só no livro da Elsie como em outros livros também. Ela tem duas harmonizações diferentes do Villa-Lobos, uma para piano e voz e uma para coral de cinco vozes, tem harmonização do Gallet com uma corda, e cada uma é de um jeito. A gente pesou muito essas coisas para escolher o nosso jeito de gravar. No final, a ideia foi deixar tudo misterioso, sem entregar os caminhos. Em Estrela do Céu, por exemplo, a gente pegou duas frases que a gente gostou, uma que está num introdução em violão. Em Xangô, a gente pegou uma caída que está na harmonização do Villa-lobos.

Inclusive vocês colocam uma imagem dessa partitura para ilustrar a música no disco.

B — É porque ele dedica à Elsie essa partitura.

R — É muito bonito.

B — Imagina essa mulher em Paris… Tem uma história de que foi ela que passou para ele a melodia.

R — A gente queria muito achar a origem da Xangô. A gente chegou num tal de Dodô.

B — A Elsie fala que ouviu de uma cozinheira negra do Rio de Janeiro.

R — E uma outra pessoa relata ter recebido do Mário, que teria dito ter ouvido de um tal de Dodô.

B — Que pode ser uma tal de Dodó.

R — A gente queria muito saber de onde exatamente saiu a Xangô. Porque a gente adaptou da Elsie, que adaptou do Mário, que adaptou do Gallet, que adaptou do Dodô.

B — E outra, a gente não pode ser ingênuo. Esses caras são incríveis, mas tem um lado que eles são datados também.

R — Eles queriam consertar as músicas.

B — Datados porque o próprio Caçapa fala: que palavra mais horrível essa que é coletar. Você tira da pessoa a autoria. Não importa quem ela é, quem que ensinou, se é uma mulher negra…

R — Foi recolhido, eu tirei do chão… No livro da Elsie tem coisas que pegam meio mal, ela diz que foi uma cozinheira, sem dizer exatamente quem é.

B — Hoje em dia ainda bem que isso está sendo revisto. Até vem daí a nossa escolha de músicos para trabalhar junto. Como o Marcelo [Pretto] e a Juçara [Marçal], da Barca, a Ale e o Caçapa, o Junior Kaboclo. Porque são pessoas que entendem que hoje a gente devolve para a origem. A gente reconhece essa pesquisa genial, mas a gente sabe que é um livro cheio de lacunas. Seria muito melhor se eles tivessem escrito: aprendi da cozinheira da minha mãe, dona Estela, que mora no morro da Mangueira…

Por outro lado não dá para desprezar o contexto histórico, são registros feitos grosso modo 40 anos depois do fim da escravidão.

B — Exato, e eram todos empregados, no engenho, nas cozinhas. Ontem mesmo conversei com uma pesquisadora que está fazendo uma tese sobre Bambalelê. Ela chegou a uma mulher que era a preta Joana. O Mário falava que todo mundo que ia para Recife ia ouvir essa mulher.

R — O Mário dizia que tinha sido a voz mais pura que ele ouviu. Que nenhuma gravação em disco chegava perto.

B — Ela tinha uma voz de cristal, de africana. O Mário fala que ela era uma mulher do engenho, imagina o que era uma mulher negra no engenho nos anos 30? E ele fala que foi à noite na festa dos empregados e ela cantou de um jeito maravilhoso, no dia seguinte ele pediu para ela cantar na frente dos patrões e ela não conseguiu. E a letra – na nossa gravação a gente não pegou todas as estrofes – fala do engenho, da usina que pica, de ter cuidado para não se queimar… É um canto de trabalho falando das dificuldades de trabalhar na usina. Então às vezes a própria música pode dar uma pista de quem são os informantes.

E como vocês chegaram na concepção musical do disco? A Alessandra Leão foi o primeiro nome que vocês pensaram para desenvolver esse trabalho?

R — Foi. No show do outro CD a gente encontrou a Ale, ela nem morava em São Paulo ainda. Faz uns cinco anos, e a gente já falou: se prepara porque no próximo vocês [ela e o marido Caçapa] vão estar junto. Porque o Caçapa tinha lançado o disco, brilhante, Elefantes na Rua Nova, a gente sempre pirou na Ale, no Comadre Fulozinha, que tem muito a ver com isso que a gente está falando. O processo começou um pouco com a chegada da Ale, mas a ideia que amarrou tudo foi a de fazer uma coisa que tivesse uma banda pré-microfone, pré-gravação. Essa consciência veio quando formou-se a banda, quando se juntaram o Marcos Paixa, o Massumi e o Junior, porque a gente queria fazer uma coisa que fosse sem harmonia. Quando a gente chamou o Beto [Montag] no vibrafone, a instrução foi para não abrir a harmonia, a ideia era mais dar clima. A gente queria essa coisa que flutuasse, que tivesse um mistério entre o maior e o menor.

O Massumi faz isso brilhantemente no disco.

R — Foi quando entrou o Massumi, por exemplo, que a gente conseguiu fazer Adê Chariô, em que o violoncelo às vezes soa como um quarteto de cordas e em outras como a rabecada de Oro Só, e o Junior completa com uma flauta elegante, e ele é o discípulo do Mestre Baiano, fundador da Banda de Pífanos de Caruaru. A gente quis botar uns cremes que dessem a cara do erudito, mas um erudito se curvando à música popular. Outro exemplo é a participação do Luca Raele.

Realmente o trabalho do Luca, do Beto, costuram as músicas sem fazer uma brincadeira inteligente em cima da harmonia. Eles entram mais para fazer comentários em torno da melodia.

R — No caso do Luca teve uma coisa engraçada na gravação de Passarinho Verde. Nós fizemos uma primeira, achamos legal, mas tinham uns buracos. No final, a gente fez uns três takes. A partir do segundo, do terceiro, ele nos disse que entendeu a música. E a graça acabou. A gente usou o primeiro take, que é ele passeando no meio da floresta, em que ele está mais sentido o que está sendo jogado para ele no momento.

O próximo passo é o show?

R — Sim, sábado tem o show de lançamento com muitos convidados. Mas vamos fazer também uma série de coisas legais, rádio, aulas-show, curso no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc aqui em São Paulo. Lá vai ter um dia com os músicos, outro com pesquisadoras, entre elas a Isabel Betervelle, que fez uma tese sobre a Elsie que foi muito importante para a nossa pesquisa.

B — Sem a tese dela a gente não ia saber nada sobre a Elsie.

R — Porque tem clareza, ordem e situa o trabalho da Elsie de um jeito que foi muito importante para a gente.

Nessa pesquisa mostra a Elsie como perseguida política?

B — Sim, a gente achou cartas.

R — Ela foi expulsa do país no governo Vargas. E ainda ficou um tempo depois de ter sido expulsa.

B — O Antonio Bento, do Rio Grande do Norte, escreve numa carta para o Mário: "fale para a Elsie parar de mandar cartas para mim, porque a polícia veio aqui olhar minhas cartas e eu não tenho nada a ver com isso".

R — Tem uma história maravilhosa. O Jaime Ovalle ficou horrorizado porque num jantar o marido da Elsie, o [poeta surrelista francês Benjamin] Péret cuspiu na cruz. Porque ele era comunista antirreligião ferrenho.

B — Voltando para a pesquisa, a partir do material da Isabel, o Museu Afro fez um livrinho continuando a pesquisa, que foi fundamental para a gente. E aí a gente descobriu os arquivos dela, que estão com sua neta hoje, que os abriu para a gente.

R — As fotos da Elsie que a gente usa no disco, a Biancamaria achou no bauzinho da Jaqueline Péret. O manuscrito da Elsie a gente achou lá.

B — E foi uma espécie de reconciliação dela com a avó. E isso aconteceu depois do show do IMS, porque a Isabel nos disse que a gente precisava convidar a neta da Elsie. Ela veio ao show, se emocionou muito e disse que queria conhecer mais sobre a avó.

R — Porque a Elsie não teve proximidade com o filho. Não só ela morreu quando não tinha nem 40 anos, e ele era muito pequeno, como ela não tinha convivido muito com ele.

Um ponto alto do disco é o encarte. Como foi essa produção?

R — A gente queria fazer um livro. No outro disco nós fizemos um encarte de 24 páginas comentando faixa e faixa. Nesse a gente fez 100 páginas, com a história das músicas, textos sobre a Elsie.

B — E vamos falar também do trabalho da Heloísa Etelvina, que fez um trabalho lindo de linoleogravura para cada música do disco.

R — A capa também é dela.

A capa é muito bonita. A cobra que é retratada na imagem tem alguma simbologia?

B — Teve um dia que a gente teve um insight depois de gravar com o Mehmari. Primeiro a gente achou que ele não ia querer participar porque era só uma vinhetinha

R — Mas ele se animou.

B — Só que disse que não queria gravar uma só, queria gravar duas. E a gente pensou que se ele gravasse duas ia acabar com o nosso esquema das vinhetas de Montes Claros. Mas, enfim, se ele queria gravar…Daí a gente lembrou de Xangô.

R — Porque era a música que tinha mais conteúdo para uma versão erudita. Tinha várias harmonizações, tinha variações.

B — E aí chegamos lá no Estúdio Montiverdi, na Cantareira, ele gravou a Perdiz. O Mehmari ouviu toda a série de podcasts que a gente fez sobre a Elsie antes de gravar. Ele se apaixonou pela história dela. Não sei se consciente ou inconscientemente, nessa última gravação ele foi fazendo o Xangô em vários tons e de vários modos. Um muito Brasil, um muito Villa-lobos…

R — A gente pirou porque ele entendeu a história toda, tem um que é meio francês, um que é meio blues americano.

Tem uma que é bem Tom Jobim, em que ele abre o baixo…

R — É uma mistura de Brasil, Debussy, blues. E a gente achou que ele contou a história inteira do disco em três minutos.

B — Por isso a gente decidiu abrir o disco com Xangô e fechar com ela na versão do Mehmari. Daí a gente teve essa ideia da cobra mordendo o rabo, que simboliza os ciclos.

R — E a Heolísca acompanhou toda a escolha do material e tinha feito uma série de bichos para acompanhar as músicas, inclusive uma pele de cobra. E a gente pensou no ouroboro, que tem muito a ver. E ela pirou.

B — Posso fazer minhas viagens agora? A cobra faz o percurso mas não é reto, tem o contato com o solo, com a nossa terra, mas ao mesmo tempo é um animal que, como a Elsie, não é meiga. Ela era briguenta, e o Mário fala do jeito dela de cantar que era sinuoso, com movimentos do corpo. Acho que a cobra quis vir (risos).

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Serviço do show: Goma-Laca: Cantos do Brasil de Elsie Houston. Dia 13 de julho, sábado, às 21h. Sesc Pinheiros. Ingressos: R$ 9 a R$ 30

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