Cinema de conflito

Em edição virtual, Mostra Internacional de Cinema de São Paulo lança plataforma de streaming, exibe filmes premiados em festivais internacionais e homenageia funcionários da Cinemateca Brasileira

Andrei Reina
Revista Bravo!
8 min readOct 22, 2020

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Cena do filme “Casa de Antiguidades” (Divulgação)

A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo está diferente. Nesse ano não tem filas longuíssimas, nem corrida de uma sala para a outra na região da Avenida Paulista. O mais importante, no entanto, permanece: a maratona de sessões e a troca de figurinhas entre espectadores — condição para se achar no universo de 198 filmes de 71 países — agora migram para o ambiente virtual.

Embora a sessão de abertura aconteça hoje (22), às 19h30, no drive-in instalado pelo Cine Belas Artes no Memorial da América Latina, a programação será sobretudo online. Para isso, a Mostra criou uma plataforma online, a Mostra Play, onde os títulos estarão disponíveis para internautas em todo o território nacional. A boa notícia para os insones é que não haverá horário fixo para assistir aos filmes, cujas sessões custarão R$ 6. Parceiras do evento, as plataformas Spcine Play e Sesc Digital exibirão 30 títulos de forma gratuita.

Entre os destaques desse ano estão filmes premiados em festivais internacionais, como Não Há Mal Algum, longa do iraniano Sheytan Vojud Nadarad que levou o Urso de Ouro em Berlim, e Nova Ordem, thriller vencedor do Grande Prêmio do Júri em Veneza. Dirigido por Michel Franco, o polêmico filme mexicano abre a Mostra.

Filmes brasileiros com carreira internacional também comparecem, como Casa de Antiguidades, longa estrelado por Antonio Pitanga que integrou a seleção oficial do Festival de Cannes (disponível pelo Belas Artes à la Carte), e três títulos exibidos em Berlim: Cidade Pássaro, de Matias Mariani, Irmã, de Luciana Mazeto e Vinícius Lopes, e Todos os Mortos, de Caetano Gotardo e Marco Dutra.

Os homenageados de 2020 incluem os funcionários da Cinemateca Brasileira, instituição responsável por preservar e difundir a memória do cinema brasileiro que, em crise, deixou de pagar salários e em seguida demitiu seus trabalhadores. Este é o primeiro coletivo a receber o Prêmio Humanidade, que nesse ano também reconhece o veterano documentarista Frederick Wiseman. Do americano, a Mostra exibe o inédito City Hall, que esmiúça — em nada menos que quatro horas e meia — o trabalho da prefeitura de Boston.

Cena do filme “Não Há Mal Algum” (Divulgação)

Para saber mais sobre o capítulo digital da principal janela de cinema de São Paulo, a Bravo! conversou com Renata de Almeida, diretora da Mostra. Leia a seguir.

Como foram os últimos meses para vocês e como chegaram à decisão de fazer uma edição que é sobretudo online?

No começo, março, eu tinha esperança que até outubro estaria tudo normalizado e que a mostra ia ser física, nos cinemas. A gente recebeu muitos filmes cedo, logo que eu fui pra Berlim e depois. Quando fazíamos um convite, era como se a Mostra fosse física, mas talvez com uma sessão online. Muitas pessoas não concordavam. Quando chegou maio e Cannes não aconteceu, começou a cair a ficha pra todo mundo que poderia durar muito mais do que esperávamos. Então a começamos a bater na tecla de que seria online.

Houve resistência dos produtores?

Sentimos muita insegurança dos diretores, produtores. O que acontece? Os filmes da Mostra — a grande maioria — não têm distribuidor no Brasil, então eles pretendem vender [os filmes]. Passamos um tempo estudando as plataformas, as possíveis maneiras de fazer essa parte online, e concluímos que com essa plataforma que contratamos, a Shift72, seria mais fácil conseguir os filmes que queríamos. Como ela é usada no meio do cinema há muito tempo — o Festival de Tribeca fez com essa plataforma, Toronto, mesmo o mercado de Cannes usa essa plataforma. Então os produtores confiaram que não ia ter pirataria, confiaram que a plataforma ia funcionar e não ia ficar travando. Tivemos que fazer isso num ano com o orçamento muito, muito reduzido. E também as respostas de patrocinadores demoraram, tivemos vários cortes, patrocinadores que saíram. Isso não é uma reclamação, porque esse ano foi difícil para todo mundo. Mas tivemos que tomar essa resolução: vamos gastar o orçamento — que na época nem tínhamos— para contratar essa plataforma. E quando cheguei à conclusão de que seria nesse meio virtual, o site da Mostra também teria que melhorar, dar um upgrade. Isso foi um tanto duro, decidir que você vai gostar muito mais nessas coisas do que gostaria. Hoje eu vejo — entrei na plataforma da Mostra e fiquei até emocionada — que tomamos as resoluções certas, porque está funcionando bem.

E como foi negociar as sessões para o ambiente virtual?

Tivemos de negociar com os produtores e os diretores. Os produtores começaram falando que podiam ser só 500 views (visualizações). 500 views é muito pouco para uma sala de cinema. A gente fechava quatro ou cinco sessões [por filme, em mostras presenciais]. Essa média vai dar 1.500, 2 mil lugares. Foi toda uma negociação diferente, mas já tínhamos uma parte online nos últimos anos, com a Spcine Play. E na 33ª Mostra, em 2009, fizemos uma mostra online com a plataforma The Auteurs, que hoje chama Mubi. Foi um fracasso, porque ninguém tinha internet boa para ver filme e não tinha esse costume. Tenho a impressão que a pandemia acelerou processos que já estavam em curso, como essa discussão sobre se um filme estará na Netflix primeiro ou se ele vai para a sala.

Passada a pandemia, essa tendência deve continuar na Mostra? É cedo para dizer se pretendem manter uma plataforma virtual para as próximas edições?

Ainda é cedo, temos que esperar, mas eu gostaria. Eu acho muito bacana dar esse acesso todo. Não sei se num ano sem pandemia os produtores vão concordar, porque o que a gente sentiu na negociação foi isso. Quando eles viram que não tinha outro jeito, concordaram. Também teve vários que concordaram desde o começo. São as polêmicas da nossa época, alguns acham legal, outros não. Foi um processo de convencimento. No ano que vem, quando esperamos que esteja tudo normalizado, não sei se conseguiríamos tantos filmes como nesse ano. Eu mesma estou surpresa com a seleção. Quando decidimos que seria online, achei que seria uma seleção mais difícil, mais complicada de fazer. E tem títulos muito, muito fortes. Falo isso porque tem títulos que são esperados, que já passaram pelo circuito de festival, já receberam prêmio. Eu achei que esses filmes, que já estão muito falados, a gente não conseguiria, mas no final conseguimos muitos filmes.

Cena do filme “Nova Ordem” (Divulgação)

Por que a escolha de abrir com Nova Ordem, do Michel Franco?

O filme de abertura é muito forte. Foi uma escolha que talvez eu não tivesse feito se não estivéssemos vivendo o que estamos vivendo. É um thriller e um filme muito forte, polêmico. Vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que vai adorar. Ele é perturbador, você sai do filme e não sabe o que achou — estou falando o que aconteceu comigo. Além de achar que o Michel Franco é um grande cineasta, eu acho que ele traz questões muito latentes da nossa realidade. E você pensar “ah, é um filme violento”. Não é violento, vemos a Amazônia e o Pantanal queimando todo dia na televisão, tantas coisas são violentas. E [o filme traz] essa questão da distribuição de renda na América Latina.

E City Hall, do Frederick Wiseman, homenageado com o Prêmio Humanidade?

É um filme muito da [nossa] época. E muito o trabalho do Wiseman, que pega uma instituição pública, o micro, para falar do grande. Nesse filme, é através de uma Prefeitura. Numa época que falamos tanto em crise da democracia e num ano com eleição para prefeito, achei que era ideal. Todos os candidatos podiam tirar algumas horas — porque o filme é longo— para ver. Ali mostra o que estamos precisando, a diferença de um político para um estadista, a diferença de um funcionário público para um servidor público, alguém que acredita servir aos cidadãos.

Há também um Prêmio Humanidade coletivo, dado aos funcionários da Cinemateca. Qual a importância de reconhecê-los nesse momento?

A primeira vez que eu saí no meio da pandemia foi para aquela primeira manifestação da Cinemateca. Há 30 que eu trabalho na Mostra e há 30 anos que eu trabalho com a Cinemateca — não só a Cinemateca Brasileira, mas com todas as cinematecas do mundo. É o nosso direito (e das futuras gerações) à memória, à história. Foi até uma resolução repentina [dar o prêmio], mas acho que foi super acertada. Eu tinha sido convidada para algo que a [deputada federal] Jandira Feghali estava fazendo no Zoom. Aqueles milhões de quadradinhos, tinha tanta gente. Nesse meio tempo, a Gabriela [Sousa de Queiroz], que era diretora do acervo da Cinemateca, deu um depoimento muito emocionante. Ela descreveu como foi o dia dela lá. A Cinemateca estava trancada e ela teve que chamar o porteiro, que não recebia o seu salário há meses. O porteiro abriu e entrou com ela, mas não tinha luz. Ela foi ligar o gerador, o gerador estava quebrado, não funcionava. Ela, então, ligou pro eletricista da Cinemateca, que também estava sem ganhar salário havia meses. E ele foi e deu um jeito no gerador. Ela também não recebia e estava lá. Na hora eu pensei: esse pessoal devia ganhar um prêmio. A Mostra dá o prêmio, então. Um país civilizado tem uma cinemateca e se orgulha dela. E mais do que um lugar físico, ela é formada por pessoas que trabalham ali.

Na programação desse ano há muitos filmes brasileiros novos, incluindo alguns selecionados por festivais internacionais, como Casa de Antiguidades, do João Paulo Miranda Maria.

Tem vários, tem o filme do Matias Mariani [Cidade Pássaro], que estava em Berlim. Tem Casa de Antiguidades, que estava em Cannes. Irmã [de Luciana Mazeto e Vinícius Lopes], que também estava em Berlim. É uma compreensão de que o cinema tem uma função quase diplomática também. Às vezes há o pensamento equivocado de achar que o cinema fala mal do país. Não é essa a questão. O cinema e a arte vivem do conflito. Esses filmes vão falar das questões problemáticas de um país. Tem que fazer essa diferenciação: uma coisa é um filme de propaganda e outra coisa é um filme brasileiro ou de qualquer outro país levantar as questões críticas daquele país. Isso não é só no Brasil, é na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos. E ninguém encara que esse trabalho, por isso, esteja agindo de alguma maneira contra o Brasil. O fato de esses filmes terem levado o nome e a cultura do Brasil para fora é muito importante para o país. É o que chamam de soft power. Ele está levando a nossa voz para fora do Brasil, é um trabalho de Itamaraty.

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