Clarice fala em Íris

“No Silêncio da Palavra” é um monólogo que ecoa os gritos da atormentada alma humana

Igor Zahir
Revista Bravo!
5 min readAug 22, 2019

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Quando escrevi meu livro sobre Lygia Fagundes Telles, o capítulo a respeito de sua amizade com Clarice Lispector continha uma história que me chamou atenção. Certa vez, voando para Cali, na Colômbia, quando o avião balançava muito e Lygia estava preocupada, Clarice se voltou para ela e disse: “Não tenha medo porque o avião não vai cair. Minha cartomante disse que eu morreria deitada, portanto, fique tranquila”.

Aquele misticismo, segundo minha biografada, era contagiante. Tanto que uma vez, quando Lygia dormia em um hotel da cidade de Marília, onde participava de um seminário, foi acordada por uma andorinha desgarrada, que entrou voando no seu quarto. Levou um susto, mas estranhou a forma como o animal a encarava, muito amigável. Logo, conseguiu que o pássaro saísse pela janela. No dia seguinte, foi informada de que Clarice morrera naquela noite. Só conseguiu dizer, baixinho: “Eu já sabia”.

Foi a primeira vez que parei para refletir sobre o silêncio de Clarice, e sobre as asas de Clarice. Não que tenha sido falado pouco a respeito de sua obra. Longe disso — como se sabe, ela se tornou o pilar de autoajuda tosca das redes sociais e memes, que, se por um lado fazem com que mais pessoas conheçam indiretamente seus escritos, por outro, reduzem sua genialidade ao estilo medíocre e superficial do que ganha a Internet hoje em dia. Clarice vai muito além de tudo isso!

Como disse o biógrafo Benjamin Moser, responsável pela divulgação internacional da escritora nos últimos anos, Clarice é uma esfinge. “De certa forma, eu também a decifrei ao levá-la do português para outros mundos e outras línguas. O trabalho de decifração é um trabalho de tradução e divulgação — um pouco menos violento do que a esfinge que devorava e arrancava pedaços dos pobres passantes. É uma decifração positiva. Clarice e eu deciframos um ao outro”.

Quem também está empenhada em destrinchar o enigma chamado Clarice Lispector, na prática, é a atriz Íris Marcolino, em cartaz com o monólogo No Silêncio da Palavra, no Teatro Rui Limeira Rosal, do Sesc Caruaru, no Agreste de Pernambuco. Com curta temporada (restam duas apresentações), ela se prepara pra levar o projeto para o sul e sudeste do país, como parte dos seus estudos sobre Clarice, que começaram há, pelo menos, quatro anos.

Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina, Íris faz parte do grupo de pesquisa “Hermenêuticas da Cultura, Mundo e Educação”, e realiza trabalhos em áreas que unem psicanálise, artes e estética. Como artista plástica, assinou a exposição A Morte nas Cores de Frida Kahlo, e é autora de Os Poemas do Poeta que Esquecia (Editora Bagaço, 2014). Agora, ela se arrisca na arte cênica, partindo dos textos de Clarice para provocar reflexões para um público intimista que se acumula ali mesmo, no pé do palco.

Estão lá, por exemplo, excertos do romance psicológico A Hora da Estrela (1977), sobre as desventuras da nordestina Macabéa no Rio de Janeiro:

“E dever meu, nem que seja de pouca arte, o de revelar-lhe a vida. Porque há o direito ao grito. Então eu grito. Grito puro e sem pedir esmola. Sei que há moças que vendem o corpo, única posse real, em troca de um bom jantar em vez de um sanduíche de mortadela”.

Parte integrante do projeto Meu Ser-tão Agreste, que envolve lançamento de livros e outras apresentações, No Silêncio da Palavra coloca Íris como Mavé, a protagonista que envereda entre Macabéa, Clarice (e seus espinhosos temas atemporais), e as dores e delícias do mundo atual. O caso de Mineirinho também chama atenção: um dos nomes mais procurados pela polícia carioca na década de 60, ele foi cruelmente assassinado com 13 tiros, os quais a escritora usou para relatar em um de seus contos mais emblemáticos, na época publicado na revista Senhor:

“Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro”.

Esse exercício de empatia é o que move Íris Marcolino, dirigida em cena por Moisés Gonçalves, conhecido pelo trabalho em O inimigo do Povo e Barrela. O clima criado em cena, mais moderno do que o habitual visto em cidades de interior como Caruaru, traz os telespectadores para a proximidade ao palco, ao chão. Íris, na figura da protagonista, encara um a um profundamente. A direção de arte assinada por Sam Auerbach e Dany WR tem o estilo mais cult e alternativo que já há alguns anos ganhou o mercado independente da dramaturgia no Brasil. Outros grupos e projetos de teatro na cidade deveriam se inspirar na ideia — só pra variar e fugir um pouco do tradicional cenário “mais do mesmo” usado exaustivamente nos espetáculos.

As janelas e molduras suspensas no ar, por onde ela passa enquanto recita seus pensamentos, nos dão a ideia dos portais que nos levam diariamente para as experiências com o outro. Como metáforas para as telas de smartphones, elas balançam ao som dos inquisidores questionamentos de Mavé: “quem é você?”.

Filósofa, Íris é acostumada a mergulhar em tais afrontas, como nos chás que promove na cidade com temas que vão de Simone de Beauvoir à própria Clarice. Destemida, ela não foge dos assuntos mais inescrutáveis. Esse monólogo é seu modo de protestar para as mazelas morais. Seja na figura de Mineirinho e da crueldade criminosa do Estado, seja na implacável desigualdade social que retrata quem vende o corpo por pura sobrevivência.

No Silêncio da Palavra me trouxe à tona o que o silêncio de Clarice Lispector provoca, quando ela não diz nada, pois tudo o que disse em vida ainda levará muito tempo a ser digerido. Me fez pensar nas asas de Clarice, que invadiram o quarto de Lygia Fagundes Telles para avisar que sua mística amiga havia partido.

O onírico e o real se juntam no palco do Teatro Rui Limeira Rosal. Neste caso, o que há de mais fictício, no fim das contas, é a personagem Mavé. Clarice, mais viva e imortal do que nunca, está pulsante nas veias de Íris. A atriz, que concilia carreira acadêmica com projetos culturais, se despe de qualquer rótulo e encarna, de todas as formas, uma personificação do que os escritos claricianos são capazes de despertar. Cheguei a comentar que Íris e Clarice, juntas, nos arremessam no âmago do nosso tormento. Errei: Mavé, como uma só, é a própria voz do tormento. Difícil é sair incólume aos seus efeitos.

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No Silêncio da Palavra. Teatro Rui Limeira Rosal , Sesc Caruaru. 23 e 29 de agosto, às 20h. R$ 20

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Igor Zahir
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Art advisor. Comentarista da rádio CBN. Crítico cultural. Colunista da Bravo!.