Condenados em família
Tetralogia que marca os 70 anos de Raimundo Carrero reúne livros perturbadores sobre um clã que transita entre a devassidão e a decadência
No meu livro Lygia Fagundes Telles: Dossiê de uma Imortal, a multipremiada escritora participou com uma carta, que serviu de epílogo, com o título Vocare, cujo um dos trechos reproduzo a seguir:
“Para exercer o ofício escolhido, o escritor vai ter que travar uma luta com a palavra, luta dura que o faz feliz porque foi o que ele decidiu. Paixão que exige luta… E cito agora um poema de Carlos Drummond de Andrade: ‘Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos, mal rompe a manhã’. Seduzir o leitor para ler o escritor que pode ser corrompido, mas não corrompe; que pode ser louco, mas não enlouquece o leitor; ao contrário, pode até desviá-lo da loucura. O escritor que pode ser triste e solitário, mas ainda assim vai acompanhar o leitor na sua solidão”.
Ainda no mesmo livro, Lygia diz que, para escrever, você precisa se dedicar de corpo e alma a seu personagem, a seu enredo e à sua ideia. É preciso que seja um ato de amor, uma doação absoluta, e é impossível sair do transe enquanto não dá a história por acabada, enquanto não decifra o humano. O detalhe é que o ser humano é indefinível. Por mais que tente, você não consegue defini-lo totalmente. O ser humano é inalcançável, inacessível e incontrolável; ele está sujeito a esses três ‘Is’.
Chegamos aonde eu queria: até que ponto o ser humano, como personagem (ou vice-versa), é realmente indesvendável aos olhos da literatura? Se alguém — ou melhor, a obra de alguém — pode responder isso com precisão, é Raimundo Carrero. O mais célebre escritor pernambucano da atualidade, e também um dos poucos representantes vivos do Movimento Armorial impulsionado por Ariano Suassuna, Carrero está em ritmo de comemoração.
Seus 70 anos, além de renderem prêmios como o Jabuti, o São Paulo de Literatura e o Troféu APCA, inspiraram o projeto Condenados à Vida. Primeiro, uma exposição somada à série de eventos (com direito às famosas oficinas literárias de Carrero) até 16 de dezembro, no Museu do Estado, em Recife. E, durante a abertura, foi lançada uma importante tetralogia que reúne quatro dos seus livros mais chocantes.
No volume com mais de 700 páginas, o leitor acompanha tramas diversas, que se entrelaçam entre si: em Maçã Agreste (1989), o moralismo e o fanatismo religioso se chocam com o pecado e a luxúria, numa teia psicológica que envolve família Cavalcante do Rego. Ernesto, Dolores, Jeremias, Raquel, Sofia, Tia Guilhermina, Biba, entre outros personagens intrigantes.
O segundo livro, Somos Pedras que se Consomem (1995), começa com uma intensa (e inegavelmente sensual) cena de incesto entre Leonardo e Ísis, deixando claro o que vem pela frente: uma história em que o erotismo anda de mãos dadas com tragédias pessoais, guiado por referências como Sylvia Plath, Henry Miller, a Madame Bovary de Flaubert, D. H. Lawrence com O Amante de Lady Chatterley. O próprio Maçã Agreste, lançado seis anos antes, é lembrado pelo protagonista Leonardo: “Aonde lhes levaria a leitura de tantos romances e poemas, de modo que até personagens saíam das páginas para a vida, para a realidade? A verdade é que os personagens não estavam apenas nos romances, existiam de verdade”.
Seguindo o ritmo, Carrero mistura como nenhum outro escritor os personagens de seus romances. No terceiro livro, O Amor Não Tem Bons Sentimentos (2008), acompanhamos o perturbado Matheus que, diante do corpo nu e sem vida de Biba boiando no rio, nos leva a penetrar no passado obscuro da família. Dramas, assassinato, estupros, vazio e solidão transbordam da mente do personagem e, como resultado, o leitor precisa manter o foco para não perder o raciocínio — nem perder o fôlego diante do que é um retrato da psicose humana.
O livro em questão lembra o que escreveu o acadêmico Hans Ulrich Gumbrecht no prefácio de um livro de João Almino: “A família torna-se substância nas reivindicações nunca certas de relações de sangue entre irmãos e gerações distintas. E a família também continua a ser a origem latente da tragédia, na medida em que pode ter perdido sua substancia clássica e se transformado num jogo vibrante de gestos comunicativos”. Nesse caso, um jogo de silêncios e devaneios devastadores.
Para finalizar a tetralogia, em Tangolomango (2013), Tia Guilhermina está de volta, com uma lembrança abrasando a alma. “Agora ela está a andar e a sofrer, vadia no mundo, porque lhe anunciaram que Matheus ia, novamente, a julgamento, acusando de estuprar e matar a mãe, Dolores, e a irmã, Biba. Matheus, tia Guilhermina, Matheus? O menino que eu criei, ela diz na memória, da boca para dentro”.
Com o perdão do spoiler, ao chegar no último livro, o leitor provavelmente se sentirá exaurido, ao seguir o passo da personagem com suas dolorosas lembranças, tendo o Carnaval de Recife como pano de fundo. O Galo da Madrugada, os blocos de rua. Frevo com jazz. Bandeira Branca tocada com instrumentos de percussão. Os bonecos gigantes de Olinda. Cada detalhe da festa se transforma em tique-taque de uma bomba relógio prestes a explodir dentro da solteirona e solitária Tia Guilhermina. O ápice se dá quando ela, desnuda de corpo e alma, se torna um exemplo vivo (num corpo brutalmente violentado, com alma já não tão viva), da decadência humana.
Li Condenados à Vida escutando Philip Glass, hábito meu desde que comecei esta coluna, há pouco mais de um ano e meio. Já havia lido vários livros do autor pernambucano, mas nunca assim, seguidos e costurados um pelo enredo do outro. Ao final da tetralogia, embalado pelo melancólico som do premiado pianista, me deu uma forte e incômoda dor no peito. Quando você para e pensa na ruína daquela família – no que parece ser um DNA amaldiçoado, que Carrero criou ao longo dos últimos 30 anos, e, ao mesmo tempo, com tramas tão atuais, que poderiam facilmente se passar na casa vizinha, ou (é assustador admitir isso) até mesmo na sua família — não tem como fugir da dor que domina após a leitura.
Senti na pele palavra por palavra do crítico José Castello: os livros de Raimundo Carrero, sobretudo os reunidos em Condenados à Vida, dilaceram a gente. Rasgam uma proteção íntima que a gente costuma usar pra se defender do mundo. Deixamos de ser leitores e nos transportamos para dentro dos livros. O título que escolheu para a tetralogia se baseia em uma pergunta incômoda: pode mesmo a vida ser denominada uma condenação?
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Condenados à Vida, de Raimundo Carrero. Cepe Editora, 704 págs., R$ 80.