Crítica: “Antígona” e “Hotel Mariana”

Quando o poder e o amor duelam e se aniquilam a partir de dois pontos de vista: o primeiro, de 25 séculos atrás, o segundo, hoje

Joao Luiz Vieira
Revista Bravo!
5 min readJun 19, 2017

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Guga Melgar/Divulgação

O tempo é um grande aliado do teatro, assim como o é da vida. Ele nos confronta, nos justifica, nos adequa, nos consolida e apura nosso diálogo com o alheio. Dois espetáculos que entraram em cartaz em São Paulo exemplificaram com muita contundência essa tese, e por vieses distintos: “Antígona”, que esteve em cartaz por um mês no Sesc, e “Hotel Mariana”, que fica até o dia 10 de julho na Estação Satyros, na Praça Roosevelt. Ambos devem seguir em turnê.

“Antígona” foi novamente remontada, desta vez pela dupla Amir Haddad e Andrea Beltrão a partir da tradução de Millôr Fernandes (1923–2012) — a saber: existem várias versões da peça, inclusive do original grego. Escrita há 25 séculos por Sófocles, a história é periodicamente revista porque atemporal, afinal trata de poder e de amor, antíteses que se retroalimentam e se aniquilam desde os primórdios da humanidade. Um não subsiste com o outro.

O espetáculo, dirigido por Haddad, é de uma simplicidade espartana, perdão pelo trocadilho ajustado à origem do autor: uma atriz interpretando todas as personagens da obra, um baú com mínimos acessórios servindo de anteparo para as composições — às vezes a partir de um scarpin, noutras usando como único recurso uma echarpe — e a ideia mais feliz da montagem, uma espécie de árvore genealógica horizontalizada que explica a origem dos vícios e das virtudes de cada indivíduo ali retratado.

A força do texto ganha reforço extraordinário graças os muitos recursos físicos e emocionais da intérprete, que faz um trabalho minucioso e inteligente. A peça, originalmente, começa pelo prólogo, um diálogo entre as irmãs Antígona e Ismênia, que dá a um leitor/espectador um panorama dos acontecimentos. Depois se seguem cinco episódios ou, como se batizou, cinco estásimos, as odes cantadas do coro em cena, grupo que traz informações ao público.

O estopim de “Antígona” é a morte dos dois filhos de Édipo, Etéocles e Polinices, que se mataram na luta pelo trono de Tebas. Com isso, sobe ao poder Creonte, parente próximo de Jocasta, mãe e mulher de Édipo. Creonte decide, então, que um dos rapazes, Polinices, não teria o direito de ser sepultado, deixado ao léu, para que aves de rapina o dilacerassem. Ele vê isso como exemplo para os que pretendessem golpeá-lo.

“Antígona” é, de certa maneira, uma peça que se sustenta sobre o dever que o ser humano tem para com as divindades, que seria, no caso, anterior àquele que se tem para com o Estado. Semente histórica das feministas, Antígona deixa claro que não deixará o corpo do irmão a esmo, mesmo que tenha que pagar com a própria vida. Você se lembra de algum momento histórico, especialmente o atual, em que essas questões como essas não fossem urgentes e bélicas? Quem tem mais poder, e para que (ou quem) ele serve?

Divulgação

“Antígona” dialoga tanto com “Hotel Mariana”, que o episódio que dá musculatura à peça idealizada por Munir Pedrosa, dirigida por Herbert Bianchi, é citado no programa do espetáculo de Amir Haddad. Está lá: “05/11/2015 — Às 15h30 uma onda gigantesca de lama e metais engole o município de Bento Rodrigues. A barragem de rejeito de minério da empresa Samarco se rompeu e é a maior tragédia ambiental brasileira. São 650 quilômetros de lama. O rio Doce agoniza!”.

“Hotel Mariana” também segue o mesmo diapasão de “Antígona”, sendo que o registro é individualização do drama que paralisou a vida dos moradores da região em torno de Mariana. A cidade, com cerca de 58 mil habitantes, foi a primeira vila, cidade e capital de Minas Gerais. Dependente do turismo e da extração de minérios, viu-se engolida por 55 bilhões de litros de lama, detrito que devastou os distritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, e levou à óbito o rio Doce.

Isso o noticiário, nacional e internacional, trouxe, com riqueza de detalhes, assim como a desfaçatez dos responsáveis pela tragédia, dos diretores da empresa à presidente da República à época, Dilma Rousseff. O mais interessante desse trabalho é o uso do verbatim, termo latino que significa reproduzir ipsis litteris o que foi dito por alguém. Em teatro, os atores fazem uso de fones de ouvido para reproduzir os relatos, provavelmente realistas, no palco.

Os primórdios desse tipo de encenação datam do século 19, com Georg Buchner (1813–1837) e nas propostas naturalistas de Émile Zola (1840–1902). De uma maneira geral, é uma dramaturgia política, com encorpada vertente de denúncia, algumas vezes fazendo uso de imagens e documentos. Um tipo de teatro, portanto, que se aproxima do jornalismo. Augusto Boal (1931–2009) foi um dos entusiastas da técnica, especialmente em seu repertório praticado nos anos 1960, tendo como ápice o projeto Teatro Jornal, que desenvolvia encenações de notícias de jornais.

Munir Pedrosa

É essa a proposta de “Hotel Mariana”, na qual Pedrosa coletou 40 depoimentos e de parte deles reconstituiu o diálogo que alimentou a “dramaturgia”. Quando o a vida superpõe-se à ficção, nada mais coerente que trazer a pungência realista a primeiro plano, no que também é chamado de “Teatro Real”: “se Deus não entra nesse assunto tinha morrido mais gente”, disse um dos moradores durante o processo de apuração da obra. Como criar frases ficcionais se a realidade entregou uma desse calibre?

É isso o que a equipe, liderada pelo próprio Pedrosa, em excelente atuação, nos pedem para fazer: mergulhar com eles nos resíduos de dignidade que restaram dos humildes moradores daqueles confins. Tudo também é muito simples na montagem, porque ali a verdade dos sentimentos é o valor maior. Tanto “Antígona” quanto “Hotel Mariana” são mais do que espetáculos de teatro, são propostas inequívocas de reinvenção da ética humanista.

*João Luiz Vieira é jornalista, dramaturgo, roteirista e educador sexual, tendo sido de crítico teatral do Jornal do Commercio, do Recife, entre 1992 e 1998. Ele tem dois livros lançados como coordenador de texto: “Sexo com Todas as Letras” (e-galáxia, fora de catálogo) e “Kama Sutra Brasileiro” (Editora Planeta, 176 páginas), é sócio proprietário do site paupraqualquerobra.com.br e do canal sexo_sem_medo, no YouTube.

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