Crítica: ‘As Criadas’, de Jean Genet

Montagem minimalista do polonês Radoslaw Rychcik faz ressoar um texto que ainda provoca impacto 71 anos depois de escrito.

Joao Luiz Vieira
Revista Bravo!
3 min readAug 18, 2017

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Divulgação

Por João Luiz Vieira*

Ao menos no Brasil, Jean Genet (1910–1986) ficou muito conhecido por causa de duas obras seminais de sua carreira de dramaturgo: “O Balcão”, escrita em 1957, e “As Criadas”, de 1946. Ambas foram muito montadas, mundo ocidental inteiro, por diretores icônicos, como Víctor García (1934–1982), que dirigiu o primeiro texto com Raul Cortez (1932–2006), Celia Helena (1936–1997)e Ruth Escobar em 1969. Até hoje, é considerado um marco histórico do teatro contemporâneo.

José Celso Martinez Correia também deixou um rastro. Assinou uma versão transgênera de “As Criadas”, batizada de “As Boas”, com o próprio diretor no elenco, junto a Marcelo Drummond e Raul Cortez, que viveu uma histriônica Madame em um dos grandes sucessos comerciais de 1991. A peça ganhou nova versão recentemente, encarada com pungência pelo polonês Radoslaw Rychcik, 36 anos. Estava em cartaz até semana passada, no Sesc Santana, e agora busca novos palcos.

Genet não gostou da primeira versão de “As Criadas”, a primeira obra teatral dele a sair do papel. Achou “burguesa”, com cenários e figurinos de luxo e atrizes jovens como as funcionárias da casa. Homossexual assumido, queria homens nos papéis. Gostaria da versão de Zé Celso, se vivo estivesse. E da de Rychcik, por outros motivos.

As opções do polonês foram cenicamente restritivas: três poltronas, três atrizes, uma banda repassando uma trilha dramática intermitente e dois telões enfatizando o necessário. Para ampará-los, um texto ressonante que ainda provoca impacto hoje, 71 anos depois de escrito.

“As Criadas” foi desenvolvida numa das passagens de Genet pela cadeia e é um raivoso ataque aos opressores, no caso uma dona de casa e suas empregadas. A peça é, basicamente, a tentativa de as oprimidas reverterem o jogo. Pense grande: o que queremos dos que nos oprimem em casa, na escola, na vizinhança, na igreja, no governo porque temos menos recursos econômicos, somos de um gênero subjugado, praticamos sexo sem aprovação social ou modificamos nosso corpo? Empatia ou fuzilamento?

A escolha por Denise Assunção como Madame foi de extrema inteligência. Aquém de sua cor de pele, a atriz e cantora imprime em cada passo, cada frase, cada gesto, cada olhar e até em cada silêncio uma verdade cênica digna de aplausos em cena aberta, o que foi comum nas apresentações do espetáculo. Parece uma incorporação de uma rainha ancestral, um misto de Nina Simone com Iansã, com tudo o que tem de poder e empáfia.

Ela consegue se sobressair também porque divide a cena com duas atrizes que não economizam pulsão no jogo de cena, e praticamente nunca erram em suas escolhas profissionais: Bete Coelho e Magali Biff, igualmente impecáveis em suas atuações, com destaque para o meticuloso trabalho corporal de ambas.

Ao restringir a peça praticamente a Genet, e ao escolher uma intérprete negra para protagonismo, Rychcik jogou à luz as questões ligadas à luta de classes, mas “negritou” o diálogo com o espectador comentando a fissura social que envolve a maioria da população mundial: os não-brancos versus o topo da cadeia alimentar. É uma interação urgente e necessária, basta lembrar os recentes conflitos provocados por neonazistas nos Estados Unidos.

Depois do suicídio de um de seus amantes e do amigo e tradutor Bernard Frechtman, Genet tentou se matar. Apesar de ter atravessado a década de 1960 colhendo frutos de sucesso de sua produção literária, o controvertido francês concluiu sua passagem por aqui engajando-se na defesa de trabalhadores imigrantes na França, na causa dos palestinos e dos movimentos norte-americanos como Panteras Negras. Creio que Genet iria aprovar essa enésima versão de sua peça, um dos melhores trabalhos em teatro deste ano em São Paulo. Fique atento quando voltarem à cena.

*João Luiz Vieira é jornalista, dramaturgo, roteirista e educador sexual, tendo sido de crítico teatral do Jornal do Commercio, do Recife, entre 1992 e 1998. Ele tem dois livros lançados como coordenador de texto: “Sexo com Todas as Letras” (e-galáxia, fora de catálogo) e “Kama Sutra Brasileiro” (Editora Planeta, 176 páginas), é sócio proprietário do site paupraqualquerobra.com.br e do canal sexo_sem_medo, no YouTube.

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