Crônica de uma volta à vida

Mesmo com a beleza de Villa-Lobos e Antonio Meneses, não foi trivial voltar à plateia pela primeira vez na pandemia

Guilherme Werneck
Revista Bravo!
6 min readSep 24, 2021

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Foto de celular do concerto (Crédito: Marina Dias)

Nem bem deu um minuto de concerto, meus olhos marejaram e as lágrimas começaram a escorrer, molhando a parte de cima da máscara PFF2. O Concerto nº 2 para Violoncelo, de Villa-Lobos, é das minhas peças preferidas do compositor; o violoncelista Antonio Meneses a deixa ainda mais bonita; e o maestro Isaac Karabtchevsky conduz Villa-Lobos como ninguém. Mas a culpa dessa explosão emotiva não pode ser creditada apenas pela música sublime que entrava pelos meus ouvidos. Vinha de muitas camadas, muitas delas que não tem nada a ver com música, ou que pelo menos precisam passar por algumas chicanas intelectuais para encontrar o universo dos sons.

Seguramente, a principal emoção vinha de sair de casa para ouvir música pela primeira vez desde que me isolei no dia 15 de março de 2020. Ser um ouvinte, principalmente um ouvinte atento e presente, não é algo trivial para mim. Toda a minha vida adulta, mesmo quando a música não estava diretamente relacionada à minha principal atividade no jornalismo, me acostumei a sair pelo menos três vezes por semana para assistir a shows, concertos ou discotecagens.

Não desprezo o peso do estúdio na construção da música, sobretudo a moderna, mas estar presente enquanto a mágica acontece entre músicos é algo que reputo da maior importância como formação não só da minha identidade como da minha visão de mundo. Em certo sentido, a música é a minha pátria, e exerço plenamente minha cidadania quando estou diante de um palco ou aglomerado numa pista.

Toda essa digressão para dizer que talvez não houvesse um lugar melhor para essa volta à plateia do que a Sala São Paulo. Não por ser o templo da música que é, mas pelo respeito que vem mostrando à pandemia, que se traduz em cuidado e acolhimento ao ser recebido por lá. Quando se tem consciência da tragédia que ainda representa uma média móvel acima de 500 mortes por dia por conta desta doença, sair do isolamento não é simples, psicológica e socialmente. E me senti seguro em todo o processo.

Independentemente disso, quando a música veio e à minha frente eu tinha a Osesp numa disposição que só havia visto em vídeo, o impacto foi inegável. Do mezanino, via toda a orquestra ocupando o palco por inteiro, mais espaçada, com os metais totalmente apartados, separados por painéis de acrílico. Havia também o efeito de ver os músicos todos de preto, inclusive com máscaras negras, e a casa lotada, mas cheia de vazios para dar conta do ainda necessário afastamento. Senti um choque de realidade, o oposto do que gosto de sentir ao ouvir música. Sempre cultivei o escapismo nesses momentos.

Neste ponto, o novo normal, expressão de que não gosto muito, tornou-se de uma concretude angustiante. De repente, não conseguia mais imaginar a Sala São Paulo lotada, nem uma orquestra sem esses espaços, sem essas máscaras, sem o preto que é elegante mas também é luto. E senti, junto com a música, uma pequena morte, que não deveria estar ali num celebração tão pulsante de vida. Neste momento em que a arte se impõe com toda a sua totalidade, havia uma fresta sinistra que a presença da música, em vez de esconder, iluminava.

Antonio Meneses e Isaac Karabtchevsky durante o ensaio (Foto: Isadora Vitti)

Por deformação de ofício, não entendo a arte pela arte, não acredito em nada absoluto, sem história, contexto, sem conflito. O que acontece no presente abre uma teia de narrativas complexas e concomitantes. E se, de um lado, tinha a atenção capturada pela música, pela execução esplêndida da peça de Villa-Lobos tanto por Antonio Meneses quanto pela orquestra, em um segundo plano, esta cabeça que teima em escapar do presente, começou a ponderar sobre o significado da audição desse concerto de Villa-Lobos em setembro de 2021.

O Concerto nº 2 para Violoncelo foi publicado em 1955 e segundo consta foi encomendado pelo cellista potiguar Aldo Parisot, brasileiro radicado nos Estados Unidos e professor catedrático de Yale. Parisot colabora inclusive com Villa-Lobos na sua criação, dando sugestões específicas relacionadas ao violoncelo. É uma obra da maturidade do compositor, um dos que melhor tratou o violoncelo na história da música brasileira.

Para se entender um pouco de como essa obra condensa muito da sensibilidade de Villa-Lobos para o instrumento, seu primeiro concerto para violoncelo é de 1913. O compositor vai mais fundo no instrumento, seus conjuntos de violoncelos são praticamente fundadores de um gênero à parte, explorado tanto nas Bachianas nº 1 e nº 5, anteriores a este concerto, quanto na Fantasia Concertante para Orquestra de Violoncelos, que estreia três anos depois, em 1958.

Sendo uma obra de maturidade do compositor, ela expressa profundamente uma ideia ao mesmo tempo generosa de Brasil, que é formada no seu nacionalismo peculiar, paralelo ao de Mário de Andrade em seu respeito pela música popular, mas também forjado nas experiências de gerir a educação musical pública na era Vargas. Escrita um ano após a morte de Getúlio, num ano eleitoral em que o país elegeria Juscelino Kubitschek, é uma obra que transpira possibilidades e esperança. Não à toa, a obra do maestro terá um impacto gigante nos músicos populares que farão a trilha das elites na década seguinte, com a sua bossa nova.

Ouvir esse concerto de Villa-Lobos é ouvir o Brasil que lutava para dar certo, que sabia de onde vinha, respeitava a diversidade cultural de sua gente e de suas histórias e queria uma transformação para melhor, que necessariamente passava pela educação e por uma ideia de desenvolvimento econômico e urbano. A beleza cortante dessa obra não deixa de vir com um travo amargo hoje. Porque essa ideia de Brasil é a que está sendo destroçada pelo fundamentalismo negacionista, chulo e ignorante do governo Bolsonaro.

Enquanto as ondas dessa esperança quase ingênua dos anos 1950 emanavam dos instrumentos, a realidade se impunha de forma inequívoca. Uma realidade que tenta de todas as maneiras fechar o cerco a qualquer ideal de Brasil que cultive a vida e um ideal de futuro. Afinal, os efeitos da necropolítica de Jair Bolsonaro se fizeram sentir de maneira especialmente forte nesta semana, com a participação vexaminosa na Assembleia Geral das Nações Unidas, com a materialidade do genocídio que se apresenta de forma cada vez mais concreta pela CPI da pandemia no Senado, e sobretudo com a miséria real que vemos ao redor da sala de concerto, que espelha sem retoques a derrocada da economia e a volta da fome. Todos avessos de Villa-Lobos e da genialidade da interpretação de Meneses.

A segunda parte da noite foi dedicada à Sinfonia nº 4 em Fá Menor, de Tchaikovsky. De certa maneira, olhando agora apenas pelo prisma musical, foi uma harmonização por contraste. Tudo o que Villa-Lobos tem de fluido, Tchaikovsky tem de rijo, mas a orquestra brilhou numa interpretação vigorosa, como o compositor pede. E imagino a felicidade dos músicos da percussão.

Mas a noite foi de Villa-Lobos, e por mais que eu tenha sofrido com a angústia de sair de casa, com o confronto com o novo normal, com as interferências da realidade, saí da Sala São Paulo feliz de ter reencontrado a música como um espaço para pensar um país que pode ser diferente, se olhar para o que temos de melhor.

Serviço

Temporada Osesp: Isaac Karabtchevsky e Antonio Meneses com a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Programa: Heitor Villa-Lobos — Concerto nº 2 para Violoncelo e Orquestra e Pyotr Ilyich Tchaikovsky — Sinfonia nº 4 em Fá Menor, op. 36. Sexta-feira (24/9), às 20h (com transmissão pela internet), e sábado (25/9), às 16h30. Ingressos: entre R$ 50 e R$ 100. Sala São Paulo: Praça Júlio Prestes, 16 — Campos Elíseos — São Paulo.

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