Cultura achatada

Como um samba-canção pouco conhecido de Lupicínio Rodrigues consegue lançar luz à nossa emergência cultural

Cacá Machado
Revista Bravo!
3 min readAug 20, 2020

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PAUSA DE MIL COMPASSOS | coluna semanal

por Cacá Machado

“E assim essa bola achatada/que chamam de mundo/Prossegue a rodar/E o amor continua um mistério/Que nem a ciência/Consegue explicar”. Pois é, em tempos de terraplanismo Lupicínio Rodrigues lembra que a terra é redonda mesmo que achatada. Os versos são do pouco conhecido samba-canção “Os beijos dela”, lançado em 1963 por Lúcio Alves.

O tema é recorrente em Lupi: sujeito abandonado insiste na obsessão do amor da “ingrata” que o deixou. É da condição humana lupiniana remoer a perda e amar ainda mais aquilo que se foi. Mas a imagem do mundo como uma bola achatada é, para mim, um achado poético que diz muito sobre o tempo de hoje. Canções também servem pra isso. Entre o fanatismo terraplanista e o idealismo da bola como forma perfeita, o mundo pode seguir achatado tanto em sentido negativo, onde ideais são rebaixados, como em sentido positivo, no qual se reconhece potencialidades dentro de limites.

Temos visto achatamentos generalizados do setor cultural nos últimos tempos. A Lei Emergencial de Cultura Aldir Blanc é um bom exemplo sobre a complexidade dos processos institucionais. Ela surgiu de uma articulação muito rápida das Deputadas Federais Benedita da Silva (PT) e Jandira Feghalli (PCdoB) que conseguiram aprovar na câmara o montante de 3 bilhões destinados à Cultura para ser executado entre a União, os Estados e os Municípios. Para a grande maioria dos agentes culturais, atordoados com os sistemáticos desmontes do governo federal na área da cultura, agravado com a angustiante experiência inicial da quarentena provocada pela pandemia, isso surgiu quase que como um milagre e, claro, o apoio foi imediato. Redes de abaixo-assinados pipocaram por todos os lados. Muitos grupos de militância cultural que estavam desarticulados desde, pelo menos, o impeachment da Presidenta Dilma se reencontraram e começaram a discutir se o Projeto de Lei seguiria para o Senado e posterior sanção do Presidente. Os mais entusiastas tinham certeza da aprovação e já começaram a programar ações com os futuros recursos que incluíam até, por exemplo, cursos para que os gestores municipais “aprendessem” a usar o repasse financeiro. Já os desconfiados afirmavam que o Projeto de Lei seria barrado no Senado ou, na pior da hipóteses, pelo veto do Presidente. Ora, não faria sentido que este governo aprovasse uma lei para o setor que ele mais despreza.

Para felicidade dos entusiastas, a Lei Emergencial 14.017/2020 foi aprovada e, para a confirmação dos desconfiados, há 52 dias estamos à espera dos repasses emergenciais. O problema, claro, não é a lei. O problema é a narrativa que a cada dia vem se construindo, no melhor estilo bolsonarista: cabe aos Estados e Municípios, em última instância, a execução da lei, pois o governo federal já fez a sua parte aprovando-a. Portanto, o “fracasso” da execução cairá na conta deles, afinal o presidente não pode cuidar de tudo, “talkei?

O nó está justamente naquilo que foi o foco de maior investimento institucional do Ministério da Cultura nas gestões Gilberto Gil e Juca Ferreira (2003/2010/2016): as Leis do Plano Nacional de Cultura (PNC, 2010), do Sistema Nacional de Informação e Indicadores Culturais (SNIIC, 2012) e da Política Nacional de Cultura Viva (PNCV, 2014). A engrenagem foi desenhada e funcionou razoavelmente bem no seu início. Ajustes seriam necessários, como sempre. Se estivesse implementado, o SNIIC seria o lugar de execução ágil, transparente e eficaz de leis emergenciais como a Aldir Blanc, pois identificaria na ponta os agentes culturais locais e suas necessidades. Mas aí é que mora a perversidade disso tudo. Como o SNIIC está emperrado, o repasse da Lei Emergencial não tem como escoar. Consolida-se assim a narrativa de que “eu aprovei a lei, a ineficiência é dos outros”. Esta é lógica que tem alimentado as ações deste governo em áreas estratégicas como o meio ambiente, a educação e a saúde.

Mesmo que parte dos recursos da Lei Emergencial Aldir Blanc possam vencer entraves, dificilmente a totalidade dos 3 bilhões conseguirá ser executada. Mas pelo menos há um efeito residual: agentes culturais têm se mobilizado em debates virtuais e lives e já se fala em uma Conferência Nacional de Cultura articulada pela sociedade civil. De volta à canção de Lupi, a cultura, como o mundo, mesmo achatada continua rodando. Sigamos.

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