Da diversidade viveremos?

Com paralelo entre 1967 e 2017, exposição ‘Brasil por Multiplicação’ ecoa impasses históricos do país

Andrei Reina
Revista Bravo!

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Foto da série “Da minha janela”, do coletivo Mão na Lata (Foto: Jailton Nunes)

Para começo de conversa, quando esta reportagem começou a ser escrita, o 35º Panorama de Arte Brasileira do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), que neste ano tem o título de Brasil por Multiplicação, era apenas mais um evento no calendário cultural da cidade. Já na sua elaboração prévia a proposta curatorial de Luiz Camillo Osorio e as obras por ela reunidas se mostraram refratárias a simplificações, pois à sua maneira dão a medida do momento de suspensão vivido no país, tanto nos méritos quanto nas contradições que comportam.

Desde a sua abertura (26/9), no entanto, a exposição foi capturada pelo que o professor Pablo Ortellado tem chamado de guerras culturais e, como é comum à sua dinâmica, opôs conservadores e progressistas. O motivo da vez foi uma gravação da performance La Bête, para a qual o artista Wagner Schwartz se deitou no chão do museu, permitindo que os espectadores — entre eles, uma criança acompanhada de sua mãe —tocassem o seu corpo nu. A inspiração de Schwartz era a série Bichos, esculturas de alumínio com dobradiças articuladas e manipuláveis pelo público que Lygia Clark produziu em 1960.

“É preocupante a estridência dessas vozes conservadoras”, disse-me Luiz Camillo antes que a polêmica sequer existisse, um dia antes da abertura, quando o perguntei sobre o caso da mostra Queermuseu, de Porto Alegre. “A arte sempre foi um espaço de tensionamento, de produção de ruído, de transgressão, justamente para imaginar outros valores e possibilidades de convivência entre as pessoas”, continuou. “Se você começa a restringir o espaço da arte a apenas lidar com o que já existe, acabou — acabou a possibilidade até, eu diria, civilizatória, porque arte é o que está abrindo fronteiras desde muito tempo”, concluiu.

Na crença de que o debate aprofundado não deve ser negligenciado pela ação de grupos conservadores, a reportagem se concentra a partir daqui no debate de ideias proposto pela curadoria e na descrição de algumas das obras apresentadas. Uma vez que a reação conservadora tem sido combatida em notas de instituições culturais da cidade — como o MASP e o Instituto Tomie Ohtake, além do próprio MAM e desta Bravo!—focaremos naquilo que a arte tem, apesar de nem todos quererem ouvir, a nos dizer.

1967 — 2017

Um alto falante no chão reproduz o discurso de Juscelino Kubitschek dois meses após o golpe de 1964. JK era então senador pelo estado de Goiás e sua cassação era dada como certa. Ao redor do velho aparelho de som, materiais e ferramentas de construção — martelos, tijolos, chaves de fenda — dão medida concreta à desconstrução (de um projeto político, de uma democracia, de um país) ao mesmo tempo que oferece, aos visitantes, os mesmos materiais necessários para a sua reconstrução.

Embora o assunto da instalação de Beto Shwafaty seja um evento do passado, é no chão histórico do presente que ela se encontra exposta hoje no 35º Panorama de Arte Brasileira do MAM.

Mas o que há do Brasil dos anos 60 — e de 1967, como veremos — no ano em que estamos? Quais repostas deu e dá a arte aos impasses do país nestes dois momentos históricos?

Recém-saído de rupturas democráticas de variado calibre, o país se viu em 1967 e se vê em 2017 com o futuro bloqueado, enquanto o presente toma a forma de um transe. Há, é claro, diferenças fundamentais. Para ficar no campo da cultura, a relativa hegemonia de esquerda, que persistiu mesmo após o golpe (como lembra Roberto Schwarz), e o debate sobre a identidade brasileira, nos termos das perspectivas tropicalista e nacional-popular, saíram de cena.

Hoje, questões identitárias (raça, gênero e sexualidade), a condição de vida nas periferias das grandes cidades e o descaso ambiental tomaram a frente do debate cultural e, embora apresentem impasses históricos, atualizaram os termos das disputas política, simbólica — e estética.

Variando em suporte, temas e formação dos artistas — entre arquitetos, bailarinos, performers, cineastas, fotógrafos e jovens amadores, além de artistas visuais — Brasil por Multiplicação ecoa o momento presente sem dar as costas ao passado.

Instalação “Brasília Broadcast”, de Beto Shwafaty (Foto: Atraves \\)

Entre parangolés e patrões

A curadoria de Luiz Camillo Osorio parte de dois textos clássicos do pensamento cultural brasileiro separados por 20 anos. O primeiro deles, e ao qual a proposta do Panorama deve sua principal orientação, é o Esquema geral da nova objetividade, de Hélio Oiticica. Escrito em 1967 para o catálogo da exposição Nova objetividade brasileira, o artista delineia as características compartilhadas por grupos e artistas contemporâneos, como os neoconcretos, o Cinema Novo e o Grupo Opinião de teatro.

Esquematizados por Oiticica, estavam presentes a vontade de construir uma vanguarda cultural brasileira; a negação do quadro e a subsequente tendência para o objeto; a participação ativa do espectador; o posicionamento político diante de questões sociais; a presença crescente de ações coletivas e a reformulação do conceito de antiarte.

“Como, num país subdesenvolvido, explicar o aparecimento de uma vanguarda e justificá-la, não como uma alienação sintomática, mas como um fator decisivo no seu progresso coletivo? Para quem faz o artista sua obra?”, são algumas das perguntas levantadas pelo artista, que encerra com sinal positivo, em caixa alta e exclamação, seu Esquema com um “grito de alerta” — DA ADVERSIDADE VIVEMOS!

Parte dessas características está presente no corpo de obras do Panorama, sobretudo o trabalho de coletivos (periféricos, de arquitetos) e a ausência do quadro como suporte preferencial. Diversa, a mostra conta com instalações penetráveis, performances, fotografias e vídeos — enquanto a pintura, quando aparece, é diretamente aplicada à parede, em painéis.

A vontade de construir uma nova cultura está insinuada, assim como o convite à participação ativa do espectador, mas estes aparecem mais como solicitações de escuta do que chamados à ação conjunta. Passando por diversos temas e grupos identitários, a exposição materializa uma constelação que ainda não tomou corpo na sociedade — o que lhe confere uma carga utópica na mesma medida em que a faz, em alguns momentos, girar em falso.

Reator e sala de controle de usina nuclear em Angra dos Reis (Fotos: Romy Pocztaruk)

Adversidade, diversidade

O segundo texto que alimenta a curadoria, e cuja negatividade o título da exposição inverte, é o ensaio Nacional por subtração, publicado por Roberto Schwarz em 1986. Nele, o crítico comenta o mal-estar na cultura brasileira e latino-americana proporcionado pela “experiência do caráter postiço, inautêntico, imitado da vida cultural que levamos” e na transformação (ideológica) desse incômodo em “feição nacional” pela classe dominante.

Schwarz também critica o eterno retorno à estaca zero da vida intelectual brasileira sempre que uma nova tendência do pensamento estrangeiro desembarca no país. A moda de então era o chamado pós-estruturalismo (de Michel Foucault e Jacques Derrida), cuja quebra conceitual da hierarquia entre original e cópia transformava o subdesenvolvimento, antes um obstáculo a ser superado, em trunfo. “De atrasados passaríamos a adiantados, de desvio a paradigma, de inferiores a superiores”, resume Schwarz.

De fato, a curadoria está mais próxima do horizonte intelectual do autor da Microfísica do Poder, na medida em que desloca a discussão sobre a identidade nacional das adversidades sociais para a diversidade cultural do país. “A partir do final dos anos 60, a questão política, dado um certo esgotamento do modelo alternativo e de um outro tipo de resistência — por um lado, ao sistema hegemônico, das democracias liberais e do capitalismo, e, por outro, de formas de abrir alternativas, criando formas de vidas heterogêneas, as discussões das minorias, de micropolíticas que começam a acontecer a partir dali — implicaram em um outro conjunto de critérios para discutir a dimensão política da arte”, explica Luiz Camillo Osorio.

“A ideia de Brasil por Multiplicação é justamente que não tem uma essência, uma identidade do Brasil”, prossegue o curador. “O Brasil foi originalmente pós-identitário, é um acúmulo de referências o tempo todo se repensando, se refazendo”, afirma. A mostra seria, então, segundo Osorio, um “mosaico de influências, de temporalidades distintas e de referências culturais”.

Lugar de fala

Algumas dessas referências são mapeadas nos trabalhos apresentados e fazem ouvir vozes até então pouco presentes nos grandes museus. O painel no corredor que leva à Grande Sala do MAM, pintado pelo artista Isaías Sales e o coletivo MAHKU, do povo Huni Kuin, do Acre, já dá o tom do que está em jogo.

Esta sensibilidade ao chamado lugar de fala também está nas duas séries de fotografia apresentadas pelo coletivo Mão na Lata, formado por adolescentes da Maré, no Rio de Janeiro. Em uma delas, fotografias em preto e branco desfocadas e soturnas revelam um olhar que, embora esteja entranhado naquela realidade, é capaz de estranhá-la e criticá-la de forma contundente.

Sob as fotos, legendas escritas pelos próprios jovens dão vazão não só ao modo como vivem, mas às suas subjetividades. “O sol às vezes parece me cegar”, diz um dos versos abaixo de uma foto tirada à janela. O olhar nada exótico, de elaboração complexa, vai na contramão da precariedade dos recursos utilizados, uma vez que as fotografias foram feitas com câmeras construídas com latas recicladas.

Já na série inédita de Barbara Wagner e Benjamin de Burca, a voz popular troca o preto e branco por cores cintilantes. Ao longo de uma parede, diversos retratos estão suspensos de modo que ambas as faces estejam à vista. Na frente, uma fotografia de pessoas comuns de São Paulo ganham um fundo artificial, tridimensional e colorido, com a inscrição dos nomes dos retratados e frases de efeito. O resultado tem aspecto kitsch e cafona — tão agudo que parece auto-consciente, próximo da estética das capas de DVD pirata ou dos antigos tazos de embalagens de salgadinho. Quando olhamos o verso do retrato, descobrimos que a escolha dos elementos da imagem não se deve ao arbítrio dos artistas, que apenas os organizaram segundo um questionário aplicado aos retratados.

Frames da videoinstalação “Se fosse tudo sempre assim”, de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes (Foto: Divulgação)

Política e criatividade

Esta relação criativa entre conteúdo social e elaboração estética foi uma das preocupações da curadoria. Para Osorio, há uma “manutenção da dimensão fabulatória” em trabalhos como os do Mão na Lata que permite que de uma realidade oprimida surja uma “voz com potência poética”. Para isso, o curador defende uma interlocução na qual estas vozes entrem em contato com “uma experiência com a linguagem, uma dimensão de não-adesão ao real, mas de deslocamento do real”. Para ele, a “potência experimental e atritiva da arte — e da arte moderna, da tradição moderna — tem que ser minimamente mantida”.

No mesmo espírito, a videoinstalação apresentada por Dora Longo Bahia toca a questão ambiental de modo ao mesmo tempo direto e criativo. Em uma sala escura, imagens de uma queimada na Amazônia são projetadas diante do degelo acelerado na Patagônia—situando o problema brasileiro no circuito global de desastres anunciados. Nas paredes laterais da sala, um menino brasileiro e um argentino — ambos vestindo os uniformes de suas seleções de futebol — estão frente a frente e tocam uma bola um para o outro. O desastre e o jogo operam uma ambiguidade que é tanto a preocupação com o futuro, na aliança momentânea dos garotos, quanto a batata quente empurrada adiante pelas autoridades locais quando surge questões dessa natureza.

Nas fotografias apresentadas por Romy Pocztaruk, espécie de contraface da videoinstalação de Dora Longo Bahia, há uma exposição fria e objetiva dos interiores de uma usina nuclear brasileira — sem pessoas retratadas, os equipamentos tecnológicos são vistos sob luz natural. Perto das outras obras, as fotos de Pocztaruk fazem suspeitar do potencial de desastre contido no progresso.

Sobrevivendo ao desastre

Pensando no trabalho de Longo Bahia, Luiz Camillo Osorio reflete que “o futuro deixou de ser o projeto utópico — a ideia de colonização de uma sociedade ideal, sem classes, harmônica — para ser o lugar da catástrofe e da destruição ambiental”. Diante de desafios imensos como estes, aos quais se somam outros (sociais, econômicos, raciais, de gênero), o que pode fazer a arte?

“O tipo de interferência que a arte pode produzir, no curto prazo, é sempre muito tênue”, pondera Luiz Camillo. “Pode é produzir outras percepções, abrir outras possibilidades de imaginar uma realidade diferente daquela que existe”, afirma. “Se ela vai se efetivar ou não, vai depender de uma vontade coletiva”.

Baseada na ideia de um Brasil múltiplo, a curadoria da exposição aposta suas fichas na “composição das diferenças”. Mas o trabalho (de artistas e da sociedade) é longo pela frente. “Fazer as diferenças conviverem, ainda que com ruídos”, para falar com Luiz Camillo Osorio, não é só o objetivo do 35º Panorama de Arte Brasileira, mas de qualquer projeto de país que retire da diversidade a sua força. Enquanto isso, da adversidade vivemos — ainda.

35º Panorama da Arte Brasileira — Brasil por multiplicação

Visitação até 17 de dezembro, de terça a domingo, das 10h às 17h30. Ingresso: R$ 6 (grátis aos sábados).

MAM: Parque do Ibirapuera (portão 3) — Avenida Pedro Álvares Cabral, sem número — São Paulo.

Mais informações no site: mam.org.br/exposicao/35-panorama

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