Dança à beira de um vulcão

Crítica: série “Babylon Berlin” nos transporta para efervescência cultural e turbulência política da República de Weimar, mas timidez crítica prejudica análise da ascensão nazista

Andrei Reina
Revista Bravo!
6 min readOct 19, 2020

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Cena no bar Moka Efti em “Babylon Berlin” (Divulgação)

Cabarés e delegacias, salões e cortiços, porões e tribunais. Policiais e artistas, gângsteres e cientistas, comunistas e nazistas. Cosmopolitismo e ressentimento, militarismo e vanguarda, ocultismo e psicanálise. Quem tenta resumir a experiência social da República de Weimar (1918–1933), o intervalo democrático alemão entre o fim da Primeira Guerra Mundial e a ascensão de Hitler ao poder, é obrigado a enfileirar contradições e pontos de tensão. Não por acaso, o historiador Peter Gay definiu o período como “uma glória precária, uma dança à beira de um vulcão”.

Retratar esta coreografia trágica em um obra de ficção é, pois, uma empreitada considerável. A série alemã Babylon Berlin, cuja terceira temporada entrou para o catálogo do Globoplay neste ano, se preparou bem para ela. Só as duas primeiras levas de episódios custaram mais de 40 milhões de euros (cerca de R$ 260 milhões), fazendo desta a série alemã mais cara já produzida, feito alcançado graças à parceria inédita entre a TV pública do país e o canal pago Sky One.

A superprodução é escrita e dirigida por Achim von Borries, Henk Handloegten e Tom Tykwer, cineasta que despontou nos anos 90 com o filme Corra, Lola, Corra. O trio se baseou na série de romances policiais ainda em andamento do escritor Volker Kutscher, que logrou transformar uma exaustiva pesquisa em arquivos do período em livros de enorme sucesso comercial na Alemanha (e que ainda não têm tradução no Brasil).

O ator Volker Bruch em cena de “Babylon Berlin” (Divulgação)

Hedonismo e precariedade

De fato, a produção tem uma qualidade romanesca. Assistir aos episódios de quase uma hora cada, nos quais as dezenas de personagens secundários ganham desenvolvimento raro de encontrar mesmo em séries ambiciosas, é um pouco como folhear um calhamaço de histórias bem costuradas. De bem intencionados a facínoras, todos têm seus demônios, contradições e lados B.

Ainda assim, Babylon Berlin tem dois protagonistas claros. O detetive Gereon Rath (Volker Bruch) chega de Colônia com costas quentes na metrópole, o que facilita pouco a sua primeira missão: debelar um esquema de pornografia envolvendo o submundo berlinense e políticos. Logo casos ainda mais sensíveis chegam às suas mãos, do assassinato de comunistas dissidentes de Stalin à reconstrução ilegal do Exército alemão, obra de grupos conservadores que conspiram contra a República. A trama policial se adensa e ganha contornos cada vez mais políticos, na medida em que a série evidencia as forças em disputa naquela primavera de 1929. É com a ajuda de doses diárias de morfina que Rath, um homem traumatizado nas trincheiras da guerra, tenta encarar as assombrações — subjetivas e mais-que-concretas — que cruzam seu caminho.

A atriz Liv Lisa Fries em cena de “Babylon Berlin” (Divulgação)

Em meio à caça aos fantasmas, ele conhece Charlotte Ritter (Liv Lisa Fries), jovem de origem proletária que leva uma vida dupla. À noite, ela se entrega aos excessos e prazeres de Berlim. Durante o dia, roda na ciranda da viração para ajudar a família e realizar o sonho de se tornar investigadora policial, cargo até então monopolizado pelos homens. É através de Charlotte que testemunhamos a efervescência cultural dos chamados “anos 20 dourados”, das danças frenéticas nos cabarés, apinhados de artistas do mundo todo, às transformações no comportamento e na sexualidade. É também com ela que conhecemos de perto os efeitos da inflação e do desemprego na Alemanha da época, um país dividido entre cortiços paupérrimos e luxuosas construções no estilo art déco. Sem tempo para dormir no intervalo entre o hedonismo e a precariedade, a personagem vive ao pé da letra a máxima de Peter Gay.

Para elaborar o cenário das andanças de Gereon e Charlotte, a direção de arte da série prezou, com raras concessões, pelo rigor na reconstrução histórica. Esse esforço em retratar a República de Weimar na TV é comparável somente a Berlin Alexanderplatz (1980), obra-prima de Rainer Werner Fassbinder baseada no romance de Alfred Döblin. Não é preciso se esforçar para identificar, ao longo dos episódios, marcos e referências do período. A Ópera dos Três Vinténs (1928) de Bertolt Brecht, por exemplo, serve de pano de fundo para uma tentativa de assassinato à la Hitchcock. A Orquestra Moka Efti, formada para a série, agita a casa noturna homônima com ritmos populares da década — todos em seguida banidos pelo nazismo — , como o jazz dos negros americanos e o klezmer dos judeus. Há ainda acenos de estilo ao pioneirismo noir de Fritz Lang (sobretudo o de M, o Vampiro de Düsseldorf) e ao expressionismo alemão, em cenas da terceira temporada ambientadas em estúdios de cinema.

A Orquestra Moka Efti e a cantora Severija interpretam canção da trilha de “Babylon Berlin”

Timidez crítica

A ambição narrativa de Babylon Berlin, no entanto, não encontra par em sua capacidade crítica. Sobretudo nas duas primeiras temporadas, a série adere ao ponto de vista social democrata, personificado pelo personagem de August Benda (Matthias Brandt), chefe da polícia política que exerce grande influência sobre Gereon, o protagonista cujo discurso, ancorado na ideia de que fazer o seu trabalho direito basta para enfrentar a turbulência política, tem algo de ingênuo. Benda enxerga como sua a missão de proteger a frágil democracia alemã de extremos políticos à esquerda (comunistas) e à direita (nazistas). Ao final da segunda temporada, essa visão de mundo entra em crise, em circunstâncias aqui omitidas para não revelar o enredo. Nesse momento, recursos narrativos da trama policial e do melodrama são reforçados até o limite para efeito dramático.

A voltagem política diminui no momento em que as contradições se tornam incontornáveis, deixando a impressão de que esses artifícios narrativos, que apelam para a emoção e a sensação fáceis, aparecem para socorrer um ponto de vista limitado. O risco, aqui, é fazer parecer que o horror que se seguiu à República de Weimar era, no fim das contas, inevitável. Um fatalismo dessa natureza informa pouco sobre o passado e imobiliza quem hoje se vê diante de desafios análogos.

Um bom exercício, nesse sentido, seria comparar Babylon Berlin às peças de Brecht e aos filmes de Fassbinder, já que neles, respectivamente, a trama policial e o melodrama concorrem para formar um ponto de vista mais crítico sobre a ascensão do nazismo. Cabe lembrar, ainda, que ambos o fizeram mesmo em trabalhos que gozaram de recepção calorosa do público. Talvez seja o caso de investigar a razão pela qual eficácia comercial e timidez crítica formem um par tão difícil de superar em produções atuais.

Para ser justo, é provável que a debilidade crítica da série se deva menos ao talento dos artistas envolvidos que ao “horizonte de expectativas rebaixadas” (Paulo Arantes) do presente. No momento em que a democracia volta a ser colocada contra a parede, as alternativas de reforma minguam, enquanto forças autoritárias voltam a mostrar os dentes. Na Alemanha, isso se traduz na incerteza quanto à sucessão de Angela Merkel, que até 2021 deixa o cargo de chanceler, e na preocupação com o surgimento de novos grupos de extrema-direita, como a AfD (Alternativa para a Alemanha).

Por tudo isso, entre fachos de luz e pontos cegos, Babylon Berlin nos transporta a um passado que — menos nos sonhos de emancipação que nos pesadelos regressivos — insiste em não passar.

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