Das novas plasticidades neurais

Crítica: "Meu Coco", de Caetano Veloso, "Delta Estácio Blues", de Juçara Marçal, e o modus operandi do deslizar no pós-digital

Renato Gonçalves
Revista Bravo!
6 min readNov 9, 2021

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Os versos "neurônios meus ganharam um novo outro ritmo" ("Anjos tronchos", Caetano Veloso) e "a loucura de todos nós/ emojis não vão qualificar" ("Sem cais", Negro Leo, Juçara Marçal e Kiko Dinucci), mesmo que advindos de discos distintos, parecem nos dar uma dica: há um diálogo entre os recém-lançados "Meu Coco", de Caetano Veloso, e "Delta Estácio Blues", de Juçara Marçal. Ambos os discos parecem trabalhar sob a insígnia de uma nova forma estética fomentada pelas transformações cognitivas com as complexas e pulsantes redes informacionais e midiáticas que nos circundam e nos emaranham.

Que a internet e a aceleração dos processos digitais estão moldando novas formas de plasticidade neuronal, isto é, novas configurações no sistema estímulo-resposta, isso já vem sendo discutido desde os estudos mais avançados da neurociência que têm se ocupado do funcionamento fisiológico dos cérebros diante dos vivazes estímulos da tecnologia. Exemplo disso é o trabalho de Nicholas Carr, que vem reunindo percepções de neurocientistas em relação aos impactos da internet (The shallows: what the internet is doing to our brains). Porém, pouco ou nada sobre essa nova realidade homem-máquina já havia se refletido de forma tão explícita na produção da música popular brasileira dos últimos anos, até este segundo semestre de 2021.

Caetano Veloso vinha de um hiato de nove anos de discos de inéditas. Juçara, de sete. Embora em caminhos diferentes, ambos se mantiveram ativos em projetos especiais que adiaram os planos da retomada de um novo trabalho autoral solo. A pandemia acelerou (ou distendeu, dependendo do ponto de vista) o processo de gestação de discos autorais, sonhos que já estavam no horizonte, e "Meu Coco" e "Delta Estácio Blues" surgem como obras de uma mesma família estética que dialoga com a nova forma de constituição do cérebro, agora, fragmentado, disperso, mas ainda mais vivo, a deslizar pelos estímulos e apelos ao nosso sistema cognitivo.

Nesses dois discos, a composição, tanto do ponto de vista da canção quanto no que diz respeito à construção do fonograma, parte da ideia do deslizamento, própria à nossa relação aos estímulos tecnológicos e midiáticos de agora. Fragmentos, cacos, estilhaços e sobras são a todo momento evocados em um processo de seleção, copia-e-cola e sobreposição, como se o material fonográfico estivesse a reproduzir o nosso olhar diante das timelines que deslizam por nossos dedos com seus algoritmos e suas ofertas hiper-estimulantes e, por isso mesmo, desgastantes.

Sobre "Delta Estácio Blues", Juçara Marçal

Comecemos pelo processo de produção de "Delta Estácio Blues". A escolha do repertório segue uma lógica polifônica, onde se cruzam e se misturam vozes de diferentes fontes. São muitos os discursos e os autores balizados pela autoria de Juçara Marçal, que assina, em parceria, grande parte das composições. Sua versatilidade como uma intérprete-autora não economiza recursos e dicções para alinhavar a diversa amálgama de compositores e discursos: Juçara vai do fraseado rítmico típico de Tulipa Ruiz em “Ladra” (Tulipa Ruiz) ao canto prosodiado de fôlego no rap-punk “Crash” (Rodrigo Ogi/Kiko Dinucci).

Como destacou a cantora em episódio do Bravo! Podcast (s03e07), muitas vezes, as bases sonoras construídas a partir de samples retirados da internet, cujo trabalho de pesquisa e seleção podem ter sido exaustivos diante do mar de conteúdos disponíveis a nossa fruição, foram a pedra fundamental das composições. O uso de samples deixa de ser meramente um recurso estético a criar bases rítmicas, como fez o rap nacional desde o final da década de 1980, e passa a ser encarado de forma a ressaltar texturas, patterns e ruídos. Em específico, "Corpus Christi" torna evidente como o procedimento cacofônico de produção foi, posteriormente, mola criativa para letras igualmente a deslizar, como ocorre, no caso, pela citação verborrágica de nomes de praias e regiões do litoral de São Paulo: "Solemar, Boqueirão/ Vila Mirim e Central/Mongaguá, Suarão/ Gonzaga, Maracanã".

Diante da tecnologia, como representar, na música brasileira, o pós-humano, o corpo ciborgue, em que se pese a integração da tecnologia à organicidade do corpo, como discute Thierry Hoquet (no livro "Filosofia ciborgue")? Talvez um bom exemplo esteja em "Oi, cat" (Tantão e os fitas), faixa na qual a manipulação digital do timbre da cantora, a modular para uma região extremamente grave, aponta para a experimentação tecnológica das tessituras do próprio canto. Em "Lembranças que guardei" (Fernando Catatau/Juçara Marçal/Kiko Dinucci), o vocoder, por sua vez, é empregado para simular um corpo virtual diante das lembranças mortas já guardadas (ou arquivadas).

Sobre "Meu Coco", Caetano Veloso

Por sua vez, "Meu Coco” é construído sobre uma mescla de sonoridades e referências. Do rock ainda mais cru do que na trilogia anterior de discos ("Cê”, "Zii e Zie" e "Abraçaço") em "Anjos tronchos" (Caetano Veloso) aos traços estilísticos pinçados do rico caldeirão brasileiro de sonoridades, como a do sertanejo universitário em "Enzo Gabriel" (Caetano Veloso), passando-se ainda pela afrobrasilidade do arranjo de Letieres Leite em "Pardo" (Caetano Veloso) e pela sutil, mas impactante, homenagem orquestral a Weber em "Ciclâmen do Líbano" (Caetano Veloso).

De início, somos tentados a enxergar o ecletismo criativo como mais uma demonstração do procedimento tropicalista da mistura, já apontado por Celso Favoretto (no livro "Tropicália: alegoria, alegria"). Contudo, dessa vez, Caetano parece mais interessado em deslizar, em termos da visão linguística de Ferdinand de Saussure, mais pelo significante do que pelo significado. Em outras palavras, mostra-se mais empenhado pela construção fonética e material das palavras do que pelo seu conteúdo latente. Já na primeira faixa, que nomeia o disco, Caetano desliza pela sonoridade de nomes: "Simone Raimunda, disparou as Luanas/ a palavra bunda é o português dos Brasis" ("Meu Coco", Caetano Veloso"). Semelhante feito está em "Sem Samba Não Dá" (Caetano Veloso), que destrincha um fio de artistas da nova geração, e nos sentidos ambíguos de "Ciclâmen do Líbano"/"se clamem do Líbano".

As citações, por vezes, excessivas como as ofertas a nossa mente no contexto digital, vão da própria obra de Caetano, como as referências às canções "Irene" (Caetano Veloso) e "Um índio" (Caetano Veloso), em "Meu coco" (Caetano Veloso), e outros artistas com os quais se identifica, como Pedro Almodóvar ("é muita dor e muita glória") e Chico Buarque ("apesar de você") em "Não vou deixar" (Caetano Veloso). O título do disco não poderia ser mais fortuito: "Meu Coco" abre a caixa craniana de um artista inquieto e constantemente estimulado pelo seu tempo, que, nos últimos anos, tem sido chamado a rememorar sua trajetória, não com saudosismo, mas como nesse ato houvesse um esforço de síntese, como ocorre no documentário "Narciso em férias".

Das novas plasticidades neurais

O neurocientista Eric Kandel, já na década de 1970, demostrou que a sinapse muda com a experiência. Os novos discos de Juçara Marçal e Caetano Veloso operam como representações das plasticidades neurais que se forjam com os novos estímulos do mundo hiperconectado. Nesse ponto, a construção estética, que, em uma perspectiva das ciências normativas, alicerça a conduta da ética e a construção da lógica, ao se apropriar do deslizamento como modus operandi, nos apresenta os novos processos cognitivos que marcam o tempo presente.

Diante de um pensamento acelerado e fragmentado, talvez o exercício da memória seja um dos pontos em comum mais interessantes a se destacar de ambos os discos. Não será coincidência que os dois, em certa medida, trabalhem com a memória e o refazer das narrativas outrora esfareladas. Enquanto Juçara reconstrói o mito de um Estácio pagão ("Delta Estácio Blues", Juçara Marçal, Kiko Dinucci e Rodrigo Campos), Caetano Veloso, em um gesto político, teima em não deixar que se caia no esquecimento "nossa gana, a nossa fama de bacana/ o nosso drama, nossa pinta" ("Não vou deixar", Caetano Veloso), uma clara referência à construção do Brasil.

Não há como não ouvir ambos os discos e não encontrar paralelos, por exemplo, no trabalho do artista plástico Von Ha que chafurda no lodo pungente dos memes e de recortes audiovisuais para criar proto-narrativas efêmeras e aparentemente desconexas ou ainda na experiência cognitiva diante de ferramentas como o Instagram e o TikTok, com sua dinâmica de um rolar infinito até a saturação. Também não se pode negar que podemos ouvi-los como quem revive a sensação de exaustão das retinas quando as pálpebras se fecham e nelas pululam figuras a tremer nossos olhos. São tempos de excesso, mas também de vivacidade. Restam-nos os estímulos e o saldo de respostas, como todos esses que são manejados e operados em “Meu Coco” e “Delta Estácio Blues”.

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Renato Gonçalves
Revista Bravo!

Pós-doutorando no IEB-USP. Doutor em Ciências da Comunicação (ECA-USP), mestre em Filosofia (IEB-USP) e pesquisador multidisciplinar. Docente ESPM-SP.