De volta, a Bituca
Escola de música popular de Barbacena, cidade cheia de história de Minas Gerais, recebe inscrições para nova turma
Depois de quatro anos sem receber novos alunos e de passar dois anos fechada, a Universidade de Música Popular Bituca, ligada ao grupo Ponto de Partida, de Barbacena (MG), está de volta. A instituição recebe, até o dia 9 de julho, inscrições para o seu processo seletivo, que tem como único pré-requisito o talento (não há nem sequer grau de escolaridade exigido). Depois de uma ficha de inscrição, os aplicantes serão convidados, em julho, a participar de audições individuais, em que os professores — chamados mestres, na escola — avaliam o talento e aptidão musical.
Um desses avaliadores será Pitágoras Silveira, mestre de prática de conjunto e coordenador da escola. A história dele com Barbacena já dura mais de 15 anos. Começou quando, pequeno, passou a integrar o projeto Meninos de Araçuaí, na sua cidade natal, localizada no Vale do Jequitinhonha, no norte de Minas. O coral, idealizado pela ONG Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento (CPDC), conta desde 2002 com a parceria do Ponto de Partida. Naquele ano, estrearam com Milton Nascimento o espetáculo Ser Minas Tão Gerais, que marcou o início da colaboração da trupe com o padrinho da escola (Milton, como se sabe, é também chamado de Bituca).
Pitágoras foi um dos jovens a cantar com Bituca nesse primeiro espetáculo. Quando voltou para casa depois de uma viagem para divulgar o projeto no Rio de Janeiro, onde esteve na casa do músico mineiro, sua família ria enquanto lhe entregava uma encomenda que havia chegado. Milton, quando o viu no piano da sua casa, enxergou o talento de um menino que pela primeira vez batucava o instrumento. E mandou de presente um teclado para sua casa, em Araçuaí. Depois, Silveira foi convidado a integrar a Bituca e fez todos os cursos da escola.
História
Fundada em 2004 por Regina Bertola, uma das criadoras do Ponto de Partida em 1980, a Bituca oferece cursos de guitarra e violão; baixo elétrico e acústico; bateria; piano e teclado; percussão; canto e engenharia de áudio e produção musical. Todos são gratuitos e profissionalizantes. Duram, em média, dois anos. "Em média", afirma Bertola, "porque costumamos dizer que, se o aluno tiver ido bem, ele recebe alta, e não que está formado". Quando foi fundada, era a primeira escola de música popular no estado, e hoje em dia a maior parte dos alunos é de Belo Horizonte, fazendo um movimento inverso do tradicional sentido interior-capital na educação.
O modelo da escola — que busca fugir dos engessantes conservatórios — tem um formato muito mais livre. As aulas acontecem todas as semanas entre segunda e quarta — assim, quem já toca profissionalmente podem fazer seus shows aos finais de semana. Alunos de todos os cursos estudam repertórios coletivos, para que se possam fazer práticas de bandas, ensaios em conjunto. Além disso, ao fim de cada três meses, fazem shows locais.
A escola também está ligada a outros processos não ortodoxos de aprendizagem — foi a primeira do país a oferecer, de modo extensivo, o curso de musicalização pelo método húngaro Kodály, por exemplo. Criado para educar musicalmente a Hungria — e até hoje utilizado no país — , o método, que privilegia o estudo das alturas e contrastes entre as notas em vez do estudo de escalas, foi desenvolvido pelo educador e músico Zoltán Kodály e por Béla Bartók, grandes referências na composição da primeira metade do século 20, inspirados sobretudo pelo folclore e estudo da música popular húngara.
Um dos professores da Bituca, Ian Guest, nasceu em Budapeste, e foi formado na primeira geração do Método Kodály no Conservatório Béla Bartók. Chegou ao Brasil em 1957, foi técnico do estúdio Odeon nos anos 1960 (onde conheceu o jovem Bituca), revisou as partituras dos songbooks de Almir Chediak, deu aulas para músicos como Toninho Horta, Joel Nascimento, Mário Adnet. "No Método de Harmonia de Schoenberg, ele dizia na introdução: 'Este livro eu aprendi com os meus alunos'. É assim que ensino música, com mais foco na caminhada do que no resultado", explica Guest.
Trem de doido
Localizada no chamado Caminho Novo da rota do ouro de Minas até o Rio de Janeiro, Barbacena era lugar de passagem. Foi um dos pontos de paragem para que o ouro fosse pesado, os impostos recolhidos, e seguisse até o porto, como conta Pablo Bertola, filho de Regina e diretor musical do Ponto de Partida. A ideia de criar o Ponto de Partida nos anos 1980 — movimento cultural que começa como grupo de teatro, e se expande com o projeto em Araçuaí e a escola de música — era justamente a de inverter esse sentido de passagem que a cidade tem. "O que o Ponto de Partida faz é resgatar as memórias da cidade", afirma a fundadora.
E haja história para contar sobre Barbacena. É a "cidade dos loucos" — onde funcionou o Hospital Colônia de Barbacena, responsável pela morte trágica de mais de 60 mil pessoas entre 1903 e 1980, com números que se agravaram no período da ditadura militar. O Holocausto Brasileiro, como chama a jornalista Daniela Arbex no livro em que investiga o caso, também foi retratado na psicodélica Trem de Doido, de Lô Borges, no disco Clube da Esquina, que lembra o trem em que eram trazidas as pessoas para serem internadas.
É também uma das cidades mineiras com a mais longeva disputa de oligarquias — sendo uma delas de sobrenome Andrada e Silva, história pra lá de colonial. Mas nem só de causos nefastos vive Barbacena Querida — como é chamada pelos seus moradores. A Bituca, por exemplo, está sediada numa fábrica de seda reformada — a primeira do país, que chegou a exportar para Nova York — e vive colecionando memórias da cidade. Praticamente todo o mobiliário da escola, do grupo de teatro e do café que integram as instalações foi doado pelos moradores da cidade, que têm o grupo como única unanimidade. "A gente vive bem porque temos nossa posição muito demarcada. Fazemos projetos em escolas públicas, aqui tem um monte de atividades gratuitas. E a cidade reconhece muito isso", afirma Regina. No ano passado, o grupo apresentou em São Paulo Vou Voltar, peça que reflete sobre a ditadura uruguaia e o grupo El Galpón.
Nas comemorações do retorno da escola, o convidado para um show foi Lenine, que apresentou o seu recém-lançado disco Em Trânsito, experimento ao vivo em que toca com o filho, Bruno Giorgi, além da banda que o acompanha há décadas, com Jr. Tostoi na guitarra, Pantico Rocha na bateria e Guila no baixo. No meio da apresentação, uma chuva sem fim tornou o show impraticável. Músicos, público e equipe foram se abrigar nas instalações da escola, e rapidamente montaram uma saída: um show na própria sala, improvisando uma montagem em menos de 30 minutos. "Só acontece em Barbacena", dizia a equipe, em meio à correria.
A Bituca oferece vários workshops com músicos — já passaram por lá Wagner Tiso, Toninho Ferragutti, Grupo Pau Brasil, Dori Caymmi. Costuma fazer um intercâmbio que vai além dos shows: fora irem à cidade tocar, oferecem cursos. Conta com patrocínio da Cemig e do estado de Minas. No próximo semestre, estão previstos um curso de construção de texto poético com Eucanaã Ferraz, Noemi Jaffe e João Bandeira; um workshop sobre produção e gestão de carreira com Marcos Portinari, empresário de Hamilton de Holanda, e um curso de música avançada com Marco Pereira, Nelson Ayres e Ricardo Mosca, todos abertos a ex-alunos e visitantes. Acompanhe o site da Bituca para as inscrições.
*Viagem a convite do Grupo Ponto de Partida.