Deboche antifascista

Lançado agora no Brasil, “A Literatura Nazista na América”, de Roberto Bolaño, arranca a máscara da elite intelectual e escancara o lado mais podre da relação entre cultura e poder

Igor Zahir
Revista Bravo!
4 min readMar 20, 2019

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Se existe uma coisa mais divertida do que aquelas caricaturas toscas, de humor pastelão, feitas como produto de puro entretenimento, é a sátira bem construída, sarcástica, genial, que exige o mínimo de raciocínio do público. Daquelas que você não sabe onde termina a ficção e começa o fundo de realidade, e que não corre o menor risco de soar como paródia chula ou de cair na mediocridade. Poucas obras atualmente conseguem alcançar tal patamar. Por sorte, chega agora ao Brasil A Literatura Nazista na América (1996), do escritor chileno Roberto Bolaño, com tradução de Rosa Freire d’Aguiar, pela Companhia das Letras.

O livro é basicamente uma enciclopédia de escritores de extrema-direita fictícios nas Américas durante o século 20, e uma polêmica relação com o poder político de seus respectivos países. Nomes imaginários, que se dividem entre as glórias no meio literário e o fracasso em diversos projetos — tanto profissionais, quanto pessoais ­–, combo que fica ainda mais arisco quando descobrimos o ninho de cobras (engolindo cobras) que pode ser a elite intelectual. Conhecido pela relação com as causas de esquerda, Bolaño nos lembra o quanto entendeu e enxergou além da divisão ideológica de valores, aspecto visto antes em obras como Detetives Selvagens, 2666, A Pista de Gelo e Antuérpia.

Há, por exemplo, o clã Mendiluce: a mãe, a poeta argentina Edelmira Thompson, é admiradora de Adolf Hitler (a quem apresentou os filhos, tirou fotos e presenteou com livros), e mandou construir no jardim um quarto igual ao descrito no ensaio A Filosofia do Mobiliário, de Edgar Allan Poe. O filho, Juan, já nasceu predestinado ao sucesso, e trocou a literatura pela política várias vezes, servindo “com igual lealdade o governo peronista e o dos militares”. A filha, Luz, poetisa precoce e a mais talentosa da família, “foi uma menina encantadora e vistosa, uma adolescente gorda e pensativa e uma mulher alcoólatra e infeliz”.

Há também o poeta haitiano Max Mirebalais, embora nunca se saberá com absoluta certeza seu nome verdadeiro, visto que era um plagiador compulsivo que usou a escrita como uma de suas ferramentas de alpinismo social em Porto Príncipe. Já o venezuelano José Heredia, cuja obra-prima exagera em cenas de estupro, sadismo sexual, incestos e violência, foi um autoproclamado gênio intelectual (com apelido de Sócrates), que morreu sem ninguém dar importância à sua trajetória ou legado. E não podemos esquecer de Pedro González Carrera, cuja vida “foi uma sucessão de mudanças de destino, sempre em escolas de pequenos povoados ou de aldeias da Cordilheira, e de apertos financeiros condimentados por desgraças familiares ou humilhações pessoais”.

Infrarrealismo

Nessa enciclopédia debochada de personagens ficcionais, o caminho de muitos deles se cruza ao de nomes reais, que tiveram prestígio e relevância na literatura das três Américas. Há passagens que remetem a Octavio Paz, por quem Bolaño, com sua poesia boêmia e marginal, nutria uma conhecida rivalidade. Aliás, muito do que se lê nesse livro faz sentido quando se conhece uma das maiores rixas da sociedade intelectual latino-americana: de um lado, o cânone composto por membros sofisticados, viajados, com carreiras de diplomata e alguma sorte na vida, e os infrarrealistas (retratados em Detetives Selvagens) que tinham como lema combater e estourar os miolos do establishment cultural.

No jogo de poder e inteligência que guia o enredo de A Literatura Nazista na América, sobrou até para brasileiros, quando o fictício Amado Couto, contista fracassado e torturador do Esquadrões da Morte, pensa em sequestrar Rubem Fonseca. Apesar de achar o pernambucano Osman Lins francamente ilegível, é na figura do lendário escrito mineiro que ele projeta um dos seus delírios. Ao sugerir para seus superiores a ideia, entretanto, outra frustração lhe bate de frente: “Os chefes tinham chefes e em algum elo da corrente o nome de Fonseca se evaporava, deixava de existir, mas em sua corrente particular o nome de Fonseca era cada vez maior, mais prestigioso, mais aberto e receptivo à sua entrada, como se a palavra ‘Fonseca’ fosse uma ferida e a palavra ‘Couto’, uma arma”.

Quando Bolaño menciona Rubem Fonseca e demonstra algum conhecimento sobre a obscura ligação entre o escritor e o golpe militar de 1964, reafirma o tom bibliográfico da sua obra. Entre os personagens de todo o livro, há relações com os nazistas alemães, com os governos de Pinochet e Juan Perón. Uma das figuras satiriza os escritores de esquerda que continuaram no Chile durante a ditadura — nessa parte, percebemos que não estamos diante de uma crítica afiada unicamente à extrema-direita, mas às instituições literárias e culturais dos dois lados, que apoiaram ou foram cúmplices da opressão política que tomou conta dos continentes.

Que Roberto Bolaño sempre teve ousadia e atrevimento em excesso, não é novidade. Falar sobre isso seria chover no molhado. O maior trunfo desse livro, na verdade, é que o chileno ultrapassou os limites da sua imaginação. Não se trata apenas de uma coletânea de vidas que poderiam ter sido reais. É, no fim das contas, a legítima história do meio cultural no século 20, com as excentricidades de uma sociedade intelectual que, quando têm sua máscara arrancada pelo autor, só sobra o lado mais podre, cafona e decadente de quem só tem um destino: ser devorado pelas traças.

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A Literatura Nazista na América, de Roberto Bolaño. Tradução: Rosa Freire d’Aguiar. Companhia das Letras, 240 págs., R$ 54,90.

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Igor Zahir
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Art advisor. Comentarista da rádio CBN. Crítico cultural. Colunista da Bravo!.