Delírios urbanos

“Na Outra Margem, o Leviatã” mostra as relações humanas com uma mistura entre realidade e alucinações em meio a um cenário político crítico

Igor Zahir
Revista Bravo!
3 min readMay 21, 2018

--

Cristhiano Aguiar (foto: Malu Vanz)

Vivemos tempos bicudos, ao ponto de estar cada vez mais corriqueira a difícil escolha entre enfrentar a assustadora realidade diária que nos escraviza e nos transforma em seres robotizados, ou chutar o pau da barraca, se recusar a continuar encarando tanta tragédia de frente, e levar a vida entre lucidez e delírio. Quem vive nas metrópoles sabe o que quero dizer. Quem enfrenta os choques culturais após se mudar de uma cidade grande à outra, como Recife e São Paulo, também entende perfeitamente a sensação. É sobre essa relação entre a realidade e o devaneio de que fala o novo livro de contos de Cristhiano Aguiar, Na Outra Margem, o Leviatã.

Nas 109 páginas da obra, os problemas do cotidiano se fundem ao caos da urbanidade, com temas comuns a quem vive na capital paulista. Ali, estão representadas as jornadas de várias pessoas, tanto nativas, quanto (e principalmente) de fora. Vê-se a Consolação, os bairros do Centro, as ruas boêmias e historicamente encantadoras que atraem os moradores naturais de outros estados — que, como acontece na maioria das vezes, sabem apreciar muito mais aqueles detalhes do que os nascidos por lá. Gente como este crítico, ou como o escritor, paraibano nascido em Campina Grande, com passagem considerável por Pernambuco, e hoje professor da Universidade Mackenzie, em São Paulo.

Daria facilmente para associar os enredos à Sampa de Caetano Veloso, “da força da grana que ergue e destrói coisas belas (…) porque és o avesso do avesso do avesso do avesso”. A mesma Sampa do personagem homônimo Caetano, do conto Desaparecidos, um exemplo claro do que acontece quando você resiste ao sistema político da cidade e cede à alienação para sobreviver na selva de pedra.

O que não falta ao livro de Cristhiano é crise existencial e crítica política. Os dilemas das relações entre jovens, eu arrisco dizer, são meros coadjuvantes, diante do que o autor nos provoca em suas entrelinhas. Grande trunfo de quem foi considerado pela Granta como um dos melhores escritores jovens do Brasil, e o segredo do sucesso dessa leitura que, sem o toque de literatura fantástica, de surrealismo, talvez se tornasse apenas mais uma obra bacana sobre os problemas da classe média numa cidade poluída e mal governada.

Originalmente organizado para ser um livro de contos, Na Outra Margem, o Leviatã passa tranquilamente por um romance, visto o modo como suas tramas e personagens são interligadas. Um romance prazeroso de ler, cujos contos e capítulos curtos deixam com vontade de querer saber mais, porém, acabam na hora certa, sem sobrecarregar a mente nem subestimar a paciência de quem os está apreciando.

Outro ponto que chama atenção é a forma como alguns detalhes fantásticos deixam margem para serem associados com o contexto político. O próprio leviatã do título, por exemplo, remete ao monstro marinho da mitologia fenícia. Mas poderia facilmente se enquadrar no significado filosófico descrito por Thomas Hobbes em 1651, que diz respeito ao Estado dominador, soberano, opressor, que jura proteger a sociedade, mas a transforma em palco de revoltas e injustiças sociais. Um retrato do atual momento da nossa política e, mais especificamente, dos recentes acontecimentos da cidade de São Paulo.

Inteligente e sutil, o novo livro de Cristhiano Aguiar não é puro entretenimento. Ele nos faz refletir como enfrentamos tanto os tabus do nosso habitat, quanto nossa própria vida. Ao associá-lo com a Sampa de Caetano, constatamos que o maior problema não está naquele verso sobre “quem vem de outro sonho feliz de cidade, aprende depressa a chamar-te de realidade”. Quem dera fosse tão fácil. Quem dera, na outra margem, o leviatã fosse apenas o monstro marinho.

______

Na Outra Margem, o Leviatã, de Cristhiano Aguiar. Lote 42, 112 págs., R$ 40.

--

--

Igor Zahir
Revista Bravo!

Art advisor. Comentarista da rádio CBN. Crítico cultural. Colunista da Bravo!.