Desapropriação amorosa

De Machado de Assis a Carolina de Jesus: a voz que emerge quando não se diz o literário

Acauam Oliveira
Revista Bravo!

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PAUSA DE MIL COMPASSOS | coluna semanal

por Acauam Oliveira

No ano de 1882, em plena efervescência abolicionista, Machado de Assis publica O Espelho: esboço de uma nova teoria da alma humana, verdadeiro clássico da literatura brasileira. Acredito que o conto, que já foi interpretado das mais diversas formas, possa ser lido também como uma espécie de "teoria da representação" à brasileira.

Nele, Jacobina, personagem principal da história, rememora eventos extraordinários ocorridos tempos atrás, quando de sua nomeação como alferes da Guarda Nacional. Na ocasião, a personagem havia decidido passar um tempo na fazenda de sua tia Marcolina, proprietária de escravos, onde receberia os mais diversos mimos, elogios e regalias, por conta de sua nova situação profissional. Até o ponto em que, tomado pela crença vaidosa na própria excepcionalidade, "o alferes eliminou o homem" — uma descrição precisa da superficialidade de seu narcisismo.

Um belo dia, aproveitando-se de uma viagem da tia e da veleidade deslumbrada do rapaz, os escravos da fazendo fogem e conquistam sua liberdade, deixando Jacobina crivado de angústia, desespero e solidão.

Pois será precisamente nesse momento de angústia que irá emergir o elemento propriamente fantástico da narrativa. Jacobina, após certa relutância, decide encarar o portentoso espelho do título — ao que consta herdado diretamente da Corte Portuguesa no sintomático ano de 1808 — quando percebe, apavorado, que seu reflexo havia desaparecido por completo, substituído por uma imagem ‘vaga e difusa’. Após um breve período de desespero e terror, ele tem a brilhante ideia de vestir sua farda de alferes, o que faz com que sua imagem seja imediatamente recomposta em toda sua integridade.

É esse curioso efeito "metafísico" (ou mágico) que servirá de base para que a personagem elabore sua "teoria" das duas almas. Coloco "teoria" entre aspas porque uma das coisas que o conto faz brilhantemente — como, aliás, é de praxe no projeto machadiano de terrorismo literário — é desmontar de ponta a ponta seu subtítulo pomposo e pretensioso (esboço de uma nova teoria da alma humana): seu assunto principal não é "novidade" alguma, mas a defesa e manutenção de antigos privilégios; o que se define como "teoria" é antes um apanhado de frases de efeito, crendices obscurantistas e dispositivos gerais de silenciamento; e as discussões metafísicas a respeito da "alma humana" são quando muito o elogio amesquinhado de estruturas de poder baseadas na preservação das aparências. O que resta após essa implosão é tão somente o Espelho, ou a Literatura, como expressão narcísica rebaixada da própria imagem caricata daqueles que detém o poder de narrar. Em suma, uma belíssima metáfora para a cultura bacharelesca oficial, um conjunto ornamental que se define por meio de um sistema de autoelogio e manutenção de fardões tanto mais brilhantes quanto mais vazios de significado. Um pacto narcisista de silenciamento elaborado por uma elite sádica, violenta, mesquinha e inútil, tão bem representada por figuras como Brás Cubas e Bento Santiago, e que rebaixa a dimensão artística da literatura a um sistema puramente ideológico de manutenção de poder.

Machado desmascara todo o sistema literário do século XIX ao demonstrar que aquilo que nele se define enquanto grande arte é, boa parte das vezes, pura ideologia de autolegitimação de classe. Um bem elaborado sistema de exclusão que deliberadamente confunde a mesquinharia dos artifícios narcisistas de adoração de si — que conferem a esses discursos uma dimensão puramente decorativa — com assuntos de profundidade metafísica, rebaixando a vida cultural em nome da manutenção dos próprios privilégios.

Cortemos para a década de 1950.

Carolina Maria de Jesus vem sendo reconhecida a cada dia como uma das mais importantes escritoras do país. Entretanto, aqueles que assumem essa percepção em sua integralidade têm diante de si a necessidade de se contrapor diretamente aos dispositivos de autolegitimação do campo literário, tão bem identificados por Machado de Assis. Isso porque Carolina é mulher & negra & favelada & catadora de papel, e o sistema literário se organiza a partir da negação sistemática de cada um desses modos de existir.

Artista de múltiplos talentos, Carolina tentou inicialmente publicar romances, crônicas e poemas, mas só foi aceita no circuito literário com seu espetacular diário Quarto de Despejo, em grande parte por uma leitura movida pela curiosidade frente a um objeto cultural tido como "exótico". Contudo, mesmo a partir desse lugar marginalizado, conseguiu o feito absolutamente extraordinário de forçar seu reconhecimento enquanto escritora, tornando-se um dos maiores fenômenos literários da história do país, de amplo reconhecimento internacional — Quarto de Despejo traduzido para mais de treze idiomas, e publicado em mais de 40 países.

Entretanto, esse foi apenas um de seus muitos embates. Vencidos os desafios iniciais de romper com as barreiras impostas pelo contexto de privação social e pelo racismo estrutural que a impedia de publicar sua obra, nossos homens de letras buscaram elaborar novas estratégias de deslegitimação, dessa vez questionando o estatuto de literariedade de seu livro. Seria Quarto de Despejo, de fato, literatura? Note o caráter irônico dessa discussão quando levada a cabo pela mesma intelectualidade que decidiu por vontade própria que a certidão de nascimento de nossa literatura seria um relatório comercial de quinta categoria enviado para o rei de Portugal… De todo modo, se a grande Literatura é, como nos mostra Machado, o processo de rebaixamento da vida e do pensamento como forma de legitimação dos crimes da classe proprietária tornada narradora, é óbvio que a dimensão viva da escrita de Carolina jamais seria suficientemente "literária".

Negada em seu desejo inicial de publicar poemas e outras formas narrativas tradicionalmente legitimadas enquanto "Literatura", Carolina vê uma vez mais sua condição de escritora recusada, o que não é senão o bem conhecido mecanismo de expropriação do direito do negro de se tornar senhor de sua própria identidade — o bom e velho racismo à brasileira. Afinal, uma mulher negra e pobre não pode vir a ser para além de determinações que lhe são alheias: daí que sua voz só possa emergir enquanto avesso da literatura criada pelos bons cidadãos que produzem o papel-lixo que Carolina recolhe para ressignificar a si própria enquanto sujeito. O literário em negativo. O verdadeiro literário.

Mas esse não seria ainda o último movimento do processo de destituição da identidade de Carolina enquanto escritora. O passo seguinte seria o descrédito, que consiste em tirá-la da condição de agência para fazer dela mera personagem. Críticos como Wilson Martins defenderam com vigor a tese de que Quarto de Despejo não seria de autoria de Carolina de Jesus, mas do jornalista Audálio Dantas, que teria "inventado" uma personagem, tal como Macabéa ou Sinhá Vitória. Além disso, tal personagem seria literariamente inverossímil, a começar pelo fato de ser ela a um só tempo negra e escritora. Os sonhos de gente pobre são outros, limitados pelo caráter restritivo de seu horizonte social: Sinhá Vitória, a sonhar com camas macias. Carolina não apenas sonhava em ser escritora como conseguiu efetivamente realizar aquilo que determinou para si mesma. Como, sendo mulher, negra e pobre? Como, do vazio, se produz som?

A prova definitiva da inverossimilhança da personagem estaria no uso de expressões como "abluí-me" e "aleitei-me", muito rebuscadas para representar uma mulher que frequentou os bancos escolares apenas por dois anos. Obviamente tal percepção desconsidera por completo o longo histórico de mobilização original da norma culta por parte da cultura popular, do cordel ao samba. Entretanto, na concepção de literatura em questão — a mesma que permite a Jacobina seguir narrando como forma de contemplação apaixonada de sua própria irrelevância — a norma culta serve de prova de que alguém como Carolina não poderia/deveria existir. Afinal, é função dessa norma — e de todo discurso oficial — produzir essa inexistência.

Nesse sentido sua posição pode ser vista como expressão privilegiada da condição do negro no interior da dinâmica racista da sociedade brasileira. Em um contexto em que esse deve necessariamente desaparecer ou ser desaparecido, a existência dessa voz só pode emergir enquanto algo fantasmático, irreal e inverossímil. Uma voz sem voz gritada em silêncio a partir de um não lugar.

Os esforços empreendidos pela intelectualidade branca letrada para negar a Carolina sua condição de escritora — e poderíamos citar inúmeros outros, como os diversos cortes em seu texto, ou as mudanças de título de suas obras — são um excelente exemplo do aspecto de banalidade ornamental perversa que pode assumir a literatura brasileira, ao reproduzir o mesmo padrão colonial apresentado por Machado de Assis. Por outro lado, ao tomar essa identidade para si, Carolina oferta um gesto de amor profundo ao literário, compreendido enquanto forma de vida e possibilidade de afirmação de uma existência para além das próprias cicatrizes, para além da fome. Uma desapropriação amorosa, que conduz a literatura a um lugar de dignidade, ao fazer dela, um outro, a salvo de si mesma.

*Agradeço a Erika Araújo pela conversa cuidadosa e pela paixão por Carolina

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Acauam Oliveira
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Enquanto existir Deus no céu, urubu não come folha.