Ecos paternos

Em livro de memórias, João Silvério Trevisan faz um acerto de contas com o pai tirano e expõe cicatrizes emocionais que marcam sua obra

Igor Zahir
Revista Bravo!
4 min readDec 11, 2017

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Cena de “Orgia ou O Homem Que Deu Cria”

“Tudo que meu pai me deu foi um espermatozoide”. É essa a primeira frase da nova obra de João Silvério Trevisan. O título desta resenha é, inclusive, o mesmo de um dos capítulos do livro de memórias que o escritor, jornalista e dramaturgo acaba de lançar. Em relatos curtos reunidos em Pai, Pai, podemos acompanhar o quão massacrante é a presença de um patriarca violento, ausente e alcoólatra numa família que, independente da situação financeira, poderia ter vivido feliz e em paz. E, de quebra, compreendemos o quanto esses rastros de um pai carrasco influenciaram em toda a produção literária e cinematográfica do autor.

Quase como uma autobiografia, Trevisan fala sobre seu início de carreira, do exílio fora do Brasil durante a ditadura militar — como no período no Marrocos, onde escreveu os primeiros esboços do filme Orgia ou o Homem Que Deu Cria (1970), que a princípio se chamaria Foi Assim que Matei Meu Pai — ,das primeiras experiências homossexuais, e dos fatos dolorosamente inesquecíveis que deixaram hematomas (físicos e, sobretudo, emocionais) em toda a sua família:

“Olhando de longe, seria fácil imaginar uma cena folclórica de família italiana, com algo de operístico: gritaria e choradeira para todo lado, num clima que poderia soar melodramático. Mas, pelo terror que nos despertava, não havia trilha sonora mais legítima do que nosso choro. Chorar era o único escape possível ao medo e pânico infantis. Para ir à escola, minha irmã conta que saía pelo portão dos fundos da casa, com vergonha de aparecer chorando na frente dos vizinhos — e exibir sinais da desgraça familiar em que estávamos metidos”.

Ao mesmo tempo em que retrata uma geração dominada por chefes de família agressivos, autoritários e extremamente preconceituosos, o autor nos leva a questionar se esse pesadelo particular ficou mesmo no passado. A cada 25 horas, uma pessoa LGBT é assassinada no Brasil. Somente este ano, o número já chega a 300 vítimas. Dentro desse número, muitas vezes estão parentes envolvidos. Em outubro passado, foi a júri popular o caso da mulher que esfaqueou, matou e carbonizou o corpo do próprio filho de 17 anos, em Cravinhos, pelo simples fato dele ser gay. Entre meus amigos ou conhecidos, alguns carregam marcas terríveis de uma infância infernizada por pais homofóbicos que, mesmo depois de mortos, continuam aterrorizando a cabeça daqueles jovens traumatizados. Trevisan foi (e continua sendo) um exemplo dessas vítimas. E quando falamos do novo livro dele, um dos maiores ativistas LGBT do país, é impossível não refletir sobre estes fatos.

Pai, Pai me faz perguntar se, caso pudéssemos escolher, não seria melhor viver como órfãos, do que ter homens tão cruéis como pais de família, visto que a presença deles é mais torturante do que a ausência, como Trevisan fala em outra passagem:

“Durante a vida, sempre chorei muito, nas mais diversas ocasiões, idades e posições, com os mais diferentes sentidos. Não receio confessar essa insistência emotiva, que para muita gente parecerá fraqueza ou propensão ao sentimentalismo. Não é. O choro mais crucial que conheço é o de solidão. Chorei muito de solidão, escondido. Já atravessei noites e noites chorando por sentir na cama o espaço vazio ao meu lado. O choro de solidão é o mais parecido ao de uma criança, pois revela uma consciência brutal do desamparo ante o exílio do próprio viver — órfão, sem eira nem beira. Talvez fosse mais adequado dizer que é um chorar de exílio”.

Contudo, dizem que “aqui se faz, aqui se paga”. Para entender ao pé da letra esse ditado, sugiro que você conheça a obra (livro e filme) A Casa dos Espíritos, da chilena Isabel Allende, sobre a saga da família Trueba e a decadência de um homem que se mostra cruel e violento. Lembro-me dele ao ler sobre o pai de João Silvério Trevisan, descrito pelo próprio autor como alguém solitário, sem saída na vida, que não soube lidar com o próprio desespero. Alguém que precisou do filho renegado quando estava no fim dos seus dias e que, ainda assim, ouviu antes de morrer a frase que todo filho injustiçado pelos pais sempre sonha em dizer: “Pode parecer que não, mas eu sempre amei o senhor”.

Pai, Pai não é um livro leve nem sereno. É muito pesado! É um resgate das memórias mais dilacerantes de Trevisan. É um desabafo sobre as diversas dores que todo garoto gay enfrenta quando não recebe compreensão de quem devia lhe ofertar amor. É a descrição do quanto basta um homem tirano e desumano para destruir a paz a que toda família tem direito. O autor descreve o livro como o primeiro de uma Trilogia da Dor. E todos que já enfrentaram algo parecido, compartilham da sua dor.

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Pai, Pai, de João Silvério Trevisan. Alfaguara, 252 págs. R$ 44,90.

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Igor Zahir
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Art advisor. Comentarista da rádio CBN. Crítico cultural. Colunista da Bravo!.