Entrada franca e furiosa

Lia Rodrigues e Bienal Internacional de Dança do Ceará se alinham em propósitos artísticos e políticos para garantir continuidade

Rafael Ventuna
Revista Bravo!
10 min readNov 4, 2019

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Cena de Fúria da Lia Rodrigues Companhia de Danças © Sammi Landweer

Este artigo foi produzido em duas fases. A primeira foi uma entrevista realizada em São Paulo no dia 12 de outubro. A coreógrafa Lia Rodrigues falou à Bravo! logo após iniciar a temporada da peça Fúria no Sesc Consolação. Conversamos às vésperas dela embarcar para Fortaleza e abrir a 12ª Bienal Internacional de Dança do Ceará, onde estive para realizar a segunda fase.

Lia Rodrigues é, dentre as coreógrafas brasileiras, uma das mais renomadas. Seu nome tem destaque dentro e fora do país. Principalmente, a partir das obras criadas junto à Lia Rodrigues Companhia de Danças.

Para que o céu não caia, da Lia Rodrigues Companhia de Danças, recebeu o Prêmio Bravo! Bradesco de Cultura 2016 na categoria Dança.

A paulistana, há três décadas radicada no Rio de Janeiro, contou que, neste Brasil de 2019, sua companhia se mantém devido às verbas estrangeiras. E que tem três fortes parceiros aqui: Sesc São Paulo, Redes da Maré e a Bienal do Ceará.

Fúria na abertura da Bienal Internacional de Dança © Luiz Alves

Quando eu cheguei em Fortaleza, foi rápido para compreender a relação estreita entre Lia e a Bienal. O diretor geral e artístico David Linhares, ao me receber, foi franco e muito conciso em apresentar um panorama geral da grandiosidade do evento. E disse. “Neste ano, 30% do orçamento vem de verbas internacionais”.

Em 12 dias, além da programação principal com artistas nacionais e internacionais, a Bienal realizou mostras com artistas locais, cursos, shows, lançamentos de livros e outras atividades simultaneamente nas cidades de Fortaleza, Itapipoca, Pacatuba, Paracuru, Trairi e Quixadá. Ufa!

Lia e Linhares atuam como lideranças em polos distantes cerca de 2,6 mil km. Ambos vibram na mesma frequência de franqueza e fúria com as verdades que sustentam. Para ele, o Ceará tornou-se uma plataforma para a arte cearense dialogar com sua região e se projetar nacional e internacionalmente. Não somente no âmbito artístico, mas no técnico, no teórico, no reflexivo e na universalidade do acesso.

Para ela, de dentro da favela, produz arte aclamada internacionalmente e contribui, numa escala possível, para tornar a realidade da Maré mais justa. Dos nove artistas que trabalham em sua companhia, seis moram lá e quatro são egressos da Escola Livre de Dança da Maré. A fundação desta escola e a instalação da sede da companhia, no Centro de Artes da Maré, são resultados evidentes da atuação da coreógrafa desde 2004 naquela área da cidade carioca que é zona de conflitos permanentes. A população estimada em mais de 140 mil habitantes tinha a vereadora Marielle Franco (1979–2018), assassinada no ano passado, como interlocutora entre a comunidade e o poder público.

Público no icônico Theatro José de Alencar © Luiz Alves

Na entrevista com Lia, que você poderá ler a seguir, a coreógrafa explicou que a fúria que dá título a sua obra tanto pode ser um sentimento raivoso ou enfurecido como também uma euforia. Em Fortaleza, tudo isto fez muito sentido.

Eu me espantei com o fato de tudo ser entrada franca. E não estou falando apenas da gratuidade nos ingressos. As pessoas — que chegam furiosas para ver dança — entram deliberadas e de peito aberto. Ninguém paga ingresso. Mas compram o risco do impacto. Seja para a catarse ou desconforto estimulados pelos densos temas levados aos palcos.

Talvez, eu fosse o mais furioso ali na plateia. Afinal, estava na Bienal para ver dança cearense. A curadoria das obras locais — que ficou a encargo de William Pereira Monte — me deixou satisfatoriamente abastecido. Porém, com gostinho de quero mais!

Minha maratona começou muito bem. Fortaleza, da Cia. Dita, é uma coreografia intensa, com dramaturgia emergida da fisicalidade e que, com sucesso, dá conta de problematizar questões sócio-políticas da capital cearense. Dialogou diretamente com Fúria.

Rosa Primo foi incomparavelmente a maior surpresa. No solo Tudo passa sobre a terra, o calcar sobre duas placas com som amplificado entoava, por exemplo, a sonoridade percussiva típica de rituais indígenas. Vestia apenas uma faixa que cobria os seios. À medida que suas pisadas mudavam a cadência do ritmo, ela se transformava em diferentes seres humanos em seus diferentes papéis sociais. É uma obra vertiginosa, bela e sangrenta.

Inflamável, com direção cênica de Jorge Garcia e direção musical Rian Batista, foi um musical apoteótico muito afetivo e profundamente politizado. Obras do cearense Leonilson (1957–1993) inspiraram a escolha das canções e as coreografias. O rapper Don L e as cantoras Laya, Luiza Nobel e Verónica Valenttino levaram o público — que encheu o histórico Cineteatro São Luiz — a um estado de euforia e cumplicidade.

A Paracuru Cia. de Dança iniciou sua participação na Bienal com Para que eu não me esqueça. A dança “made in Paracuru” tem se mostrado cada vez mais potente e, esta peça especificamente exigiu do elenco uma coragem extra para criar imagens que denunciam homofobia e feminicídio e questionam o fanatismo religioso.

Joubert Arrais foi o mais provocativo. Em Eu danço Sambarroxé, colocou em conflito a dança e não-dança e também lançou a pergunta “o que afinal é dança contemporânea?”. Decidiu também correr um alto risco. Há tempos fala-se do termo preconceito linguístico. E Arrais parece nos confrontar com nossos próprios preconceitos coreográficos.

Minha despedida foi com a Companhia Barlavento. Em Corpos Embarcados, o grupo mostra sua rede de referências das artes, incluindo teatro e dança. Ainda abre espaço para a comédia, a poesia e a oscilação entre arte contemporânea e arte naïf. O grande mérito da peça — que dialoga com uma larga faixa etária de público — é realizar com competência a reflexão sobre a especulação imobiliária que assola o bairro do Mucuripe, onde o grupo está instalado.

Fortaleza da Cia. Dita © Luiz Alves

Fúria estreou em 2018 em Paris. E já percorreu sete países. No Brasil, foi apresentada em março no Festival de Curitiba e, em outubro, em São Paulo e Fortaleza. Lia conta que geralmente as estreias são feitas na Maré, mas, devido a um problema de saúde de um integrante da companhia, a apresentação na favela foi adiada.

A trajetória internacional da obra se deve às parcerias com o Théâtre Chaillot, CENTQUATRE-Paris, Fondation Hermès, Festival d’Automne de Paris, MA scène-nationale, Künstlerhaus Mousonturm, Festival Frankfurter Position, Theater Freiburg, Muffatwerk, Kunstenfestivaldesarts, Teatro Municipal do Porto e Festival DDD.

Vigésimo trabalho da companhia e nono realizado dentro do Centro de Artes da Maré, Fúria antecipa as celebrações dos 30 anos da companhia que ganhará uma mostra de repertório em 2020.

Furiosa, na ampla extensão do significado, Lia não usou meias palavras durante a entrevista.

Como sua carreira foi impactada pela França e pela favela?
Não me sinto impactada pela França. Mas pela [coreógrafa francesa] Maguy Marin sim. Mantemos uma amizade desde o final dos anos 1970, quando trabalhamos na montagem de May B, que remontei com a permissão dela em 2018 com os alunos da Escola Livre de Dança da Maré. Entre este encontro com ela e minha chegada à favela tem uma enormidade de coisas. Desembarquei no Brasil em 1982. No Rio, fundei a companhia em 1990. Tornei-me mãe. Trabalhei com a ONG Amigas do Peito. Além de criar e dirigir por 14 anos o festival Panorama. Tem o encontro com a Silvia Soter. Que se tornou dramaturga da companhia e que me apresentou em 2003 à Eliana Sousa Silva, uma das diretoras da Redes. Só fui para a Maré em 2004. Sinto que a Maré está dentro do meu trabalho assim como o meu trabalho está dentro da Maré. Fui transformada profundamente.

Que ideia inicial havia para o projeto na Maré?
Não havia exatamente um projeto. Tínhamos uma pergunta: como um projeto de arte contemporânea dialoga com um projeto social? Precisávamos chegar, conhecer e aprender. Organizamos inicialmente um espaço que ainda não era a sede atual. Estar lá e permanecer por 15 anos só é possível por causa da parceria com a Redes.

Desde a chegada até agora, que fases vocês viveram?
Prefiro olhar para os frutos que este encontro produziu, como o Centro de Artes da Maré, aberto em 2009. E a Escola Livre de Dança da Maré, fundada em 2011 e dirigida pela Silvia. Não existia um centro para as artes nesta grande favela.

O momento político do início do projeto era bem diferente. Que influência tem isto no desenvolvimento das atividades?
É diferente e não é. A favela — assim como todas as periferias — sempre sofreu com a ausência do Estado. Acontece fortemente desde que o Brasil é Brasil. Vivemos em um país desigual, racista e homofóbico. Isso não começou no ano passado. O que temos agora é um governo que incentiva a violência e o racismo. Tem um projeto consciente de destruição da educação, da cultura e do meio ambiente. A favela também sempre sofreu com o desrespeito aos direitos humanos.

O que faz você sentir medo na favela?
Sinto medo da polícia. Ela age como se na favela não vivessem pessoas que merecem respeito. Invadem casas. Atiram de helicópteros. São bem truculentos. Pensar isto acontecendo em bairros como Leblon e Copacabana é impossível! Por quê?!? Eu moro no Jardim Botânico e diariamente vou para a Maré. Observo a diferença das realidades do meu lugar de privilégio como mulher branca e de classe média. A partir do entendimento deste lugar de privilégio, é que precisamos exercitar a escuta.

Embora vários trabalhos da companhia reflitam o Brasil, por que em Fúria a realidade da Maré está mais evidente?
Eu não sinto isso. A companhia é do diálogo e de liberdade para experimentar estéticas diferentes. Não somos obrigados a falar da Maré só porque estamos lá. Fúria é fruto deste lugar que nos atravessa. Mas que também foi criado com imagens de beleza, de drama e de movimento do mundo inteiro. Talvez pelo momento terrível que estamos vivendo no Brasil saltam estas imagens de luta e existência. Prefiro existir do que resistir. Tem a alegria que afirma essa existência. Aprendi que as pessoas da favela sempre ouvem muito “não” da vida. Então, é preciso aprender a dizer “sim” a cada dia que se acorda.

Sobre a trilha sonora de Fúria, que música é aquela que se repete durante toda a apresentação?
Há muitos anos eu costumava ouvir uma coleção de CDs de músicas de várias partes do mundo. Já tinha usado um trechinho da música dos povos indígenas Kanak, da Nova Caledônia, para me inspirar a fazer Aquilo de que Somos Feitos e para outros trabalhos. Para Fúria, precisava de algo bastante ritmado para uma cena em que há uma dança mais intensa. Todo mundo adorou e se sentia inspirado. Então, fomos usando para tudo. Foi preciso repetir porque são gravações curtas. A original deve ter 1 minuto e 15 segundos que colocamos para tocar em looping. E causa uma espécie de transe.

Como você vendeu a ideia aos parceiros internacionais?
Na verdade, não vendi nada [risos]. É importante dizer que há mais de três anos eu não tenho nenhum apoio do Brasil. Exceto, dos parceiros de longa data como o Sesc São Paulo, a Redes da Maré, alguns festivais e a Bienal do Ceará onde sempre estivemos. Temos zero verba do município, do Estado e do Governo Federal. Ao longo destes 30 anos, teci relações com instituições europeias. Estas parcerias são fruto destas três décadas de trabalho. Algumas instituições são mais fiéis, como o Théâtre Chaillot e o CENTQUATRE-Paris — onde sou artista associada — e o Festival d’Automne de Paris. Não submeti projeto. Enviei uma carta de intenção a partir das ideias que tive durante quatro meses em Berlim, onde estava para dar aulas em uma universidade e o inverno me permitia ler, estudar e me concentrar bastante na nova criação. Incluí também a justificativa de retorno ao palco italiano. Além do reconhecimento lá fora, temos apoio financeiro para nossas ações. A Escola Livre também só sobrevive pelo apoio da fundação francesa Hermès e do fundo holandês Prince Claus.

O insight de Fúria se deu em um momento de fúria?
Não necessariamente. O nome chegou antes da peça. Eu conecto fúria com essa energia que faz a gente se lançar e produzir. Também com as Fúrias da mitologia grega que vêm para vingar. Fúria é a energia do fazer.

Por que Fúria circulou tanto fora e pouco no Brasil?
O único projeto de circulação no Brasil que conheço é o Palco Giratório. A minha frustração é a dificuldade de circular. Meu maior desejo é poder levar nossos trabalhos ao país todo. Lá fora existe um mercado que investe em circulação. Fúria tem agenda para 2020 e até para 2021.

Conte sobre as comemorações dos 30 anos da companhia.
Estamos organizando uma mostra de repertório com Pindorama, Para que o céu não caia, Formas Breves, Aquilo de que Somos Feitos, Fúria e Contra Aqueles Difíceis de Agradar. Este último é sobre fábulas de La Fontaine (1621–1695) e direcionado a crianças. Fazemos uma pausa nas novas criações e estreamos um trabalho em 2021, para o qual já estou juntando forças e dinheiro.

A caminho do Aeroporto de Fortaleza, acompanhado do diretor de produção João Paulo Pinho, o assunto ainda era o prestígio e os esforços feitos para ter a Lia Rodrigues Companhia de Danças na abertura da Bienal, que é realizada todos os anos. Explico: ano ímpar é uma; ano par é a De Par em Par, programada para 23 de outubro a 1º de novembro de 2020.

Senti que neste ano simbólico de desmanche, sucateamento e abandono estes parceiros de longa data precisavam mesmo estar de mãos dadas outra vez. Em especial, no Ceará, que se orgulha de ser uma “periferia deste poder atual”. Lá tudo vibra. Há carinho e criatividade de sobra. Uma verdadeira fortaleza com F maiúsculo.

Os encontros e reencontros com Lia Rodrigues e a Bienal do Ceará reafirmam, tanto na dança como na favela, que em lugares tão cheios de pulsão não é permitido adentrá-los pelas metades. Há de ser feita uma entrada franca e furiosa.

Bienal Internacional de Dança do Ceará — www.bienaldedanca.com
Lia Rodrigues Companhia de Danças —www.liarodrigues.com
Redes da Maré — redesdamare.org.br

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