Entre mulheres lusófonas

Entrevista: Virgínia Rodrigues lança "Cada Voz É Uma Mulher", álbum em que regrava jovens compositoras

Paula Carvalho
Revista Bravo!
8 min readJul 30, 2019

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Virgínia Rodrigues está lançando o seu 6º disco, Cada Voz É Uma Mulher. Com direção de arte de Tiganá Santana e produção musical também dele e de Leonardo Mendes, o trabalho retoma a temática afro-atlântica (que também norteou o disco de 2015, Mama Kalunga), mas dessa vez a partir da perspectiva das mulheres. Virgínia e Tiganá selecionaram, dentre compositoras lusófonas, músicas de Mayra Andrade, Aline Frazão, Luedji Luna, Alzira E, Lenna Bahule e Iara Rennó para regravar, em arranjos com baixo acústico de João Taubkin, clarinete e clarone de Joana Queiroz, violão de Leonardo Mendes e percussões de Cauê Silva, com a sua voz de mezzo-soprano que dá outro alcance às canções.

Com uma carreira de mais de 20 anos que é mais reconhecida fora do que aqui, no Brasil — e, menos ainda, no seu estado natal, a Bahia — a cantora lançada por Caetano Veloso em 1997 diz não gostar de remoer ou guardar rancores. “Você faz arte para o mundo, não para o lugar em que você nasceu”, afirma, lembrando do caráter “provinciano” que é o de ter a chancela de um grande artista para ser reconhecida. Conversamos com Virgínia sobre a carga feminista do novo disco, o mercado de música em Salvador e a interseção de erudito e popular no seu trabalho.

Como foi essa ideia de gravar compositoras do mundo lusófono?
Eu estava já buscando um projeto para um disco novo, mas eu não sabia o que fazer ainda. Tem muita gente que eu quero cantar. Eu não sou dada a gravar coisas que já fizeram muito sucesso em outras vozes. Se eu for gravar Paulinho da Viola, vou querer gravar dele o que todo mundo menos cantou. Nunca o que foi imortalizado na voz dele ou de outras pessoas. Então eu estava sem um projeto definido, e conversando com o meu amigo e parceiro Tiganá [Santana], ele me perguntou: “Vi, por que você não faz um disco só de compositoras mulheres?”. Eu disse para ele que nunca tinha visto essa área como algo amplo, eu nunca me preocupei muito em pesquisar. Eu sempre fui para o mais cômodo, que é o de compositores homens. Já gravei Suely Costa no meu disco Recomeço, sou muito fã de Dona Ivone Lara, tem a Rosa Passos… Mas eu não tinha visto essa possibilidade, na verdade. Então essa ideia foi do Tiganá, era um projeto dele, e ele me deu esse presente. E foi quando a gente inscreveu esse projeto no edital da Natura, só com mulheres lusófonas, a maioria das compositoras é negra, tem brasileiras também, a Alzira E, Iara Rennó e Luedji Luna. E aí, partimos para a pesquisa.

E dentre as músicas dessas compositoras não é uma escolha tão óbvia, como no caso da Alzira E, por exemplo.
Pois é. Asas, de Luedji [Luna], quando vi num show dela eu pensei: “Ah, essa eu quero gravar”. Mas a de Dona Ivone que eu canto no show [Axé de Ianga] não é tão conhecida. E a da Carolina Maria de Jesus, Vedete da Favela.

A gravação da Vedete da Favela ficou muito legal, a ideia do samba de roda com o clarone.
É! É um deboche, essa música, na verdade. Como todo mundo fala que meu disco é sempre muito sério, que eu sou muito séria, sempre eu coloco uma coisinha assim para dar uma debochada (risos). No Mama Kalunga eu fiz isso com Vá Cuidar da Sua Vida [composta por Geraldo Filme, também foi gravada por Itamar Assumpção].

O disco todo tem essa ideia da ancestralidade, não só por sua voz, mas pela escolha da gravação de mulheres, e essa mescla de gerações, juntando a Maria Carolina de Jesus, mãe e filha como Alzira E e Iara Rennó.
A ideia era de ser só jovens compositoras, mas na hora, eu não resisti. Aí veio Beijo de Beira, da Alzira E, Oração do Anjo, da Ceumar. No mais, fui ouvindo Mayra Andrade, Sara Tavares, Iara Rennó… E por aí vai. Eu sempre ouço a gravação original, nunca uma outra interpretação.

E ouvindo as composições originais das compositoras de outros países, o arranjo ficou bem diferente, mais brasileiro. Como é essa adaptação? Passa pela Bahia?
A ideia é essa, o que eu faço é música brasileira. Mas passa mesmo pelo meu sentimento. Eu sou baiana, graças a Deus, não tenho vergonha nenhuma disso, mas quando eu canto eu canto o que eu sinto, o que eu penso, interpreto a poesia. O que me leva à música e a escolher algo para cantar é a poesia. Eu sou uma cantora ligada à poesia.

Você já comentou em outras entrevistas que fez mais sucesso fora do que aqui no Brasil, e no Brasil, mais sucesso no Sudeste do que na própria Bahia. Isso continua assim?
A arte não é para ser algo regional. Minha carreira, minhas turnês, eu sempre fiz Estados Unidos, Europa, Austrália, Malásia, Nova Zelândia. Brasil onde eu faço show é São Paulo, Curitiba, Brasília, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Natal. Bahia eu canto, mas muito pouco. Belo Horizonte, fui muito pouco. Mas Bahia é o lugar onde eu menos canto. Faço participações em alguns shows, mas o meu último disco por exemplo, Mama Kalunga, não fiz na Bahia. Vou fazer agora, dia 2 de agosto.

Você sente que tem algo a ver com fazer música de festa? É difícil não fazer esse tipo de música, lá?
Não, lá tem festivais, não tem só festa. Tem festival de inverno na Chapada [Diamantina]. Mas, para ser sincera, eu não me preocupo com isso não. O artista é do mundo. Você faz arte para o mundo, não para o lugar que você nasceu.

De repente, também, tem a ver com a vinda de muitos artistas baianos para cá. A própria Luedji mora aqui, Tiganá, o pessoal que está na sua rede.
Pois é. As pessoas querem fazer uma carreira, e vão para o lugar que vai lançá-las para o mundo. Até os cariocas estão vindo para cá, imagine. Eu morei aqui dois anos, mas voltei para a Bahia por causa de minha mãe, para ficar mais perto e tal. Percussionistas, músicos de modo geral, tem muita gente que mora aqui. Os próprios Caetano, Gil, Bethânia, Gal, foram para o Rio de Janeiro. Isso já é bem antigo, até de antes da axé music.

O axé, na verdade, foi uma coisa que curiosamente ficou lá, né? A maioria dos artistas ainda mora lá.
Sim, essa é uma música de Carnaval. As pessoas na Bahia que trabalham com esse tipo de música não estão ligadas à música que eu, ou que Tiganá fazemos. Não são as mesmas pessoas que contratam Bethânia, Chico, Gal, Gil, que lotam o TCA. São outros contratantes, na verdade é outro universo. Quem contrata Fabiana Cozza não é o mesmo grupo que contrata as pessoas do axé. É outra área. Eu entendo como se fossem água e vinho, coisas que não se misturam. É outra maneira de pensar, outra vibe, outro tudo. É uma música mais quente, de verão, também. E a música que a gente faz é pro ano todo. Para a vida. Existe também uma questão do mercado empresarial, a falta de informação, a necessidade dessas pessoas de manterem as pessoas desinformadas, sem conhecimento. Eu sou da época que eu ligava para a rádio, gastava muita ficha com o programa “A Cultura dá o Bis”, na rádio Cultura, na rádio Sociedade, Excelsior, pedindo as músicas. Hoje, não. Hoje, com o jabá, você paga para tocarem você e não tocarem a minha música. Você paga para não tocar tal artista. Onde eu sei que sou tocada e nunca paguei jabá é a rádio Educadora, na Bahia. O resto, lá, nunca.

Mas quando você começou a cantar, nos anos 90, foi muito interessante você ter surgido ali. Era uma época de boom total do axé.
Eu fui mostrada e lançada por Caetano. Quando você tem um nome como esse lançando… O Brasil é assim. Tem essa coisa provinciana. Você só é boa se alguém de nome te lançar e disser que você é boa. Então as pessoas me olharam e me viram porque o Caetano me apresentou à imprensa baiana, brasileira e mundial. Mas as pessoas não vão lá verificar, assistir a um show para ver se é bom. Eu conheci uma banda na Bahia, Confraria da Bazófia, boa para caramba e que simplesmente se acabou. E era muito boa, os meninos eram muito talentosos. Quase ninguém ouviu falar. É dos anos 90, também. Temos na Bahia o Lazzo Matumbi, compositor e puta cantor, e que quase ninguém ouve falar. Tem feito shows aqui em São Paulo, recentemente. Mas eu não gosto de vitimismo, dessa coisa da lamentação. Prefiro mudar de assunto. Eu não gosto de ficar remoendo. Eu vou para onde me chamam. Quem tem problema é quem não me contrata, não sou eu.

Música do Ilê Ayê regravada por Virgínia em seu primeiro disco, de 1997

A sua música tem uma coisa que é legal de perceber — um contraponto da tradição europeia do canto lírico, com uma tradição afro-brasileira do ritmo, dos tambores, do samba.
Não sou cantora erudita, nem tenho formação, mas eu tento misturar erudito e música popular brasileira, que para mim é de grande qualidade. A música, para mim, é senhora, ela não tem fronteira. Tento juntar as duas coisas, o erudito e o popular. E é claro que tem batuque, tem que ter, não teria graça sem. Poder juntar uma música da Lenna Bahule com clarinete, percussão, violão e baixo acústico é maravilhoso. Eu gosto disso.

Dá para falar do Cada Voz É Uma Mulher como um disco feminista?
Pode ser. É um disco em homenagem às mulheres, afinal, nós merecemos. Eu dedico ele às senhoras da minha vida: minha mãe, minha tia, minhas amigas senhoras que eu considero como se fossem mãe, matriarcas, mulheres que lutaram muito para criar seus filhos, para cuidar de sua família. Todas as mulheres merecem homenagens.

Ainda mais agora, nesse momento.
Como dizia minha vó: “tudo demais é sobra, e a sobra não presta”. Eu não sei até onde isso [a situação política] vai, mas vai chegar uma hora em que essa bolha vai explodir. E aí, salve-se quem puder. Espero que a justiça de Deus, porque sou uma pessoa de fé, acredito em Deus e nos meus orixás, espero que os causadores dessas maldades paguem. Que os inocentes sejam poupados. A maior maldade que vejo nesse país é a alimentação da ignorância e da falta de informação. Porque a única coisa que te liberta é o conhecimento. Os patrocinadores da ignorância e da desinformação ganham por isso. Estou falando de gente, também, que não é da política. Os políticos sozinhos não têm toda a culpa, porque eles foram eleitos. Existem os alimentadores da ignorância e da desinformação, que vivem disso, e sempre viveram.

Show em Salvador — 2/8, sexta-feira
Virgínia Rodrigues — lançamento de Cada Voz É Uma Mulher.
Teatro Sesc Casa do Comércio, 21h. Ingressos à venda de R$ 40 a R$ 80.

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Paula Carvalho
Revista Bravo!

jornalista, doutoranda em sociologia na usp. quase tudo em torno de som 🎛 pra mandar mensagem: paula.cncarvalho@gmail.com