Estratégias didáticas de um corpo travesti

Peça "Manifesto Transpofágico", de Renata Carvalho, é um ensaio sobre vivências travestis no Brasil

Renato Gonçalves
Revista Bravo!
5 min readOct 29, 2019

--

Foto: Nereu Jr.

Um corpo semi nu no centro do palco. Uma iluminação que recorta e destaca a região entre os seios e as coxas. Uma voz que narra. O restrito e limitado campo de visão, instância de onde, muitas vezes, parte o preconceito com o corpo travesti, é o ponto de partida para Renata Carvalho, atriz que assina o texto e incorpora o monólogo de Manifesto Transpofágico. Do que é visível, esse corpo começa a desnudar as camadas do que não é dito — não porque não se queira dizer, mas porque muitas vezes não se pode dizer.

Na linha do teatro documental, gênero que, nos últimos anos, tem ganhado destaque nos palcos brasileiros através dos trabalhos desenvolvidos pelo Grupo Carmim (RN) e Teatro Documentário (SP), o monólogo de Renata Carvalho explora a cartografia e a arqueologia do corpo e da vida da atriz. Através de um texto construído em primeira pessoa dirigido por Luiz Fernando Marques Lubi, fundem-se a figura pública e a pessoa física, a artista que diversas vezes foi censurada por representar Jesus nos palcos (em O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu) e a filha que foi rejeitada pela família desde os primeiros questionamentos de sua identidade de gênero.

É a partir do seu corpo, elemento central na peça, que são narradas as suas transformações. O corpo — matéria que, erroneamente, em leituras pós-modernas, tem sido deixada de lado em prol da linguagem — , é reconstruído a partir dos hormônios, das próteses, dos recursos visuais e performáticos de uma feminilidade almejada por um eu que se vê além do binarismo homem/mulher. Um corpo eternamente a vir, a emergir. Os complexos cruzamentos entre corpo e representação, matéria e linguagem são metaforizados pelo corpo da atriz em cena sob um letreiro com a palavra travesti em letras garrafais que se acende e se apaga toda vez que a palavra “corpo” é dita.

Suas falas, em parte, são fruto de uma extensa pesquisa desenvolvida por Renata que vem, desde 2007, formando uma biblioteca de Transpologia, termo por ela criado para delimitar o campo de estudos transvertigenere. Da sabedoria popular das “bombadeiras” – travestis que são pagas para moldar os corpos de colegas com silicone industrial aplicado de forma precária e dolorosa – aos recortes de gênero e raça propostos pelo feminismo negro de Angela Davis, várias são as referências mobilizadas e compartilhadas com o espectador.

Entre as aparentes permissividade e festividade em torno da travesti vistas no show business desde a década de 1970, que teve o seu ápice em Roberta Close, e a realidade social que confina 90% das mulheres trans e travesti à prostituição, muitas vezes o único meio de sobrevivência para corpos excluídos de outros postos de trabalho, a existência travesti denuncia um abismo no qual (re)cai como um corpo abjeto, conceito emprestado de Judith Butler. Em uma linha histórica, o fio da trajetória travesti brasileira narrada por Renata mostra como a construção da cidadania passou pela “tia”, metáfora para o HIV e a Aids na década de 1980, que aumentou exponencialmente o preconceito e o extermínio da população trans e travesti.

O ponto de quebra da narrativa em primeira pessoa no palco é o relato de uma travesti entrevistada nos anos 80 projetado no telão (os recursos audiovisuais imprimem um tom documental imprescindível ao monólogo): à câmera, ela conta como esconde a gilete em sua gengiva para se proteger da repressão policial e dos cortes em seu próprio corpo que costuma fazer para que os sangramentos a protegessem (acreditava-se que as travestis fossem o foco do HIV). O corpo travesti, para sobreviver, arma-se como um corpo bélico — o que reforça a equivocada leitura de que a população travesti é perigosa e criminosa.

É nessa hora em que Renata sai do palco e vai para a plateia. Com as luzes acesas, olha para o rosto de cada um dos espectadores e começa a questionar a presença e a ausência de travestis em seus cotidianos. De peito aberto, pede a participação ativa do público, coloca-se disposta para responder qualquer pergunta. “Alguém aqui não sabe o que é cisgênero? Se você não sabe o que é, provavelmente você seja um”. A exposição didática de fatos de sua vida e da trajetória travesti na história brasileira transforma-se em uma espécie de pedagogia do afeto a partir da experiência do contato imediato. “Quem aqui nunca tocou em uma travesti e gostaria de fazê-lo agora?” O toque, como estratégia didática, atravessa o muro da alteridade.

Na mesma medida em que educa, a interação com a plateia, por vezes, também reproduz, não curiosamente, as relações entre corpo travesti e sociedade. É emblemático o momento em que a atriz, após compartilhar suas questões sobre não se sentir à vontade em expor sua genitália em cena, pergunta à plateia se ela achava ser necessária a nudez completa e realiza uma votação. Mesmo com a clara barreira pessoal da atriz, metade da plateia levanta a mão a favor da retirada. Afinal, o que os olhares do outro querem deste corpo, se o seu desejo pouco importa ou não é levado em consideração? Haverá outra reposta que não seja o sadismo da exposição e do constrangimento provocado no outro? Existiria essa mesma curiosidade, justificativa rotineiramente dada, em se ver a genitália de pessoas cis em cena mesmo que elas digam que não se sentiriam confortáveis nuas?

Renata Carvalho, em Manifesto Transpofágico, dá um importante passo na própria Transpologia que inaugurou. Ao falar em primeira pessoa, acaba de fazer uma das mais importantes contribuições ao campo de estudos e vivências travesti. Se, até pouco tempo atrás, grande parte dos poucos estudos produzidos sobre o corpo transvestigenere foi escrito por pessoas cis a partir do olhar do outro (como o exemplar trabalho do antropólogo Don Kulick que conviveu com travestis na Bahia), hoje, com o trabalho de Renata, amplia-se a produção de conhecimento e de registro histórico a partir de um olhar autônomo da vivência travesti. A partir do conhecimento, da informação e do afeto, constroem-se estratégias didáticas de um corpo travesti em meio ao país que mais mata pessoas transexuais no mundo.

Foto: Nereu Jr.

--

--

Renato Gonçalves
Revista Bravo!

Pós-doutorando no IEB-USP. Doutor em Ciências da Comunicação (ECA-USP), mestre em Filosofia (IEB-USP) e pesquisador multidisciplinar. Docente ESPM-SP.