Falso dilema

Documentário “O Dilema das Redes” mostra como o gerenciamento de informações em redes sociais atualiza os conceitos de fetichismo da mercadoria, mais-valia e alienação, mas contorna o problema com cinismo e desfaçatez

Cacá Machado
Revista Bravo!
5 min readNov 26, 2020

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PAUSA DE MIL COMPASSOS | coluna semanal

por Cacá Machado

Há uma sequência que começa mais ou menos aos 14 minutos do documentário O Dilema das Redes (Netflix) que, para mim, justifica este filme cujos os problemas, aliás, são talvez tão grandes quanto os acertos. Justin Rosenstein, ex-engenheiro do Facebook e Google, fala sob a falsa percepção da gratuidade da internet, cuja conta, na realidade, é paga pelos anunciantes: “Nós somos o produto. Nossa atenção é vendida aos anunciantes.” Jaron Lanier, cientista da computação e um dos fundadores da realidade virtual, complexifica: “O produto é a gradativa, leve e imperceptível mudança em nosso comportamento e nossa percepção.” E, por fim, Shoshana Zuboff, professora emérita da Harvard Business School, arremata: “Esse é o negócio dessas empresas. Elas vendem a certeza. Para ser bem sucedido nesse negócio, é preciso fazer previsões assertivas. Para isso, existe um fator fundamental. Você precisa de muitos dados.”

Consumidor vira produto. Produto se desmaterializa em comportamento. E gerenciamento de informações (Big Data) torna-se expectativa de lucro. Este é um bom resumo das questões estratégicas que estão no cerne do chamado “capitalismo tardio”, também conhecido no campo da cultura como “pós-modernidade”, lugar que teóricos como Fredric Jameson associam às práticas do neoliberalismo.

Diante deste quadro, o clássico conceito de fetichismo da mercadoria de Karl Marx ganha outra camada. Mas antes dessa nova mediação, vale relembrar que o autor d’O Capital define o capitalismo como o processo de universalização da forma mercadoria e do valor de troca. Mercadoria que, mesmo sendo uma abstração, é produzida pelo trabalho humano, cuja apropriação pelos donos dos meios de produção gera o lucro, configurando a mais-valia. A análise de Marx, portanto, vai do valor abstrato ao objeto real, e daí ao trabalho nas fábricas, denunciando tanto a alienação do processo produtivo quanto o fetiche da mercadoria — a adoração de valores abstratos que apagam e recalcam a coisa concreta, assim como o trabalho implicado na sua fabricação. O valor-de-uso é, na teoria marxista, substituído pelo valor-de-troca. O materialismo dialético, enquanto método de teoria crítica, significa, por fim, exatamente a reposição dessa materialidade ocultada pela abstração da mercadoria, estabelecendo o campo da história como lugar de disputa e conflito.

Nesta perspectiva, o controle do Big Data no mundo digital do capitalismo tardio (também chamado de sistema de “acumulação flexível” pelo geógrafo David Harvey) parece ser um desdobramento da exploração da mais-valia do capitalismo fordista. E a dissolução do sujeito em objeto — isto é, o consumidor tornar-se produto — sugere o aprofundamento fetichista do próprio fetichismo da mercadoria. A constatação dessa operação de aprofundamento do fetichismo na prática das redes sociais é o que o documentário traz de mais relevante e original. No entanto, existe um problema estrutural em sua construção narrativa: as personagens-protagonistas deste mundo das redes sociais se apresentam de modo cínico, cuja desfaçatez gira em torno de um falso dilema.

Trailer de “O Dilema das Redes“

O escritor John Menick dá a pista em tom irônico e ácido: “Um novo subgênero de documentário está surgindo, no qual jovens trabalhadores de tecnologia, brancos e ‘semi-aposentados’ expressam seu pesar por terem construído as plataformas digitais que governam nossas vidas. (…) Por um curto período, eles acreditaram que seu trabalho era importante, talvez até virtuoso. Levou anos — e, presume-se, interesses acionários adquiridos — antes que a epifania chegasse: eles estavam desperdiçando suas vidas e talvez destruindo o mundo. Os aplicativos que esses jovens brilhantes estavam construindo eram viciantes, manipuladores, induzindo ao suicídio, polarizando a política e destruindo a democracia. Às vezes, isso era intencional. Mais frequentemente, era a consequência não planejada de boas pessoas com intenções ainda melhores. Então, nossos heróis pediram demissão, escreveram livros, contrataram agentes literários e fizeram turnês de palestras — das quais o documentário [O Dilema das Redes] faz parte — para dar um sermão para nós, usuários idiotas, sobre o quanto estamos ferrados.”

O falso dilema criado pelo filme é que nem seus protagonistas nem seus realizadores estão realmente interessados em superá-lo. Na realidade, o que temos é um problema. Um problema real criado pelas redes sociais que colocam sim em risco as instituições democráticas, acirram polarizações e viciam nossas crianças. Isto não é um dilema, insisto, é problema intrínseco e paradoxal do próprio sistema flexível de acumulação do capitalismo tardio que, em sua agenda neoliberal, é avesso a qualquer tipo de regulamentação em nome de uma suposta liberdade de expressão.

Cena de “O Dilema das Redes”

Recentemente em artigo na Folha de S. Paulo, o cientista político João Brant diagnosticou esse problema em torno da discussão das fake news viralizadas pelo Whatsapp: “As mensagens virais se multiplicam nos aplicativos em um ambiente opaco. Não há um painel público em que sejam postadas — elas só são visíveis pelos destinatários. Você pode ser vítima de uma campanha de difamação que alcança metade da população e não saber disso. Ou pode até saber, mas não terá como se defender. Perspectivas circulam sem o contraditório. Notícias falsas se disseminam sem oportunidade de questionamento.”

O modelo que Brant chama de “comunicação de massa opaca”, particularmente do Whatsapp, implica no fim do debate público. A principal saída para a questão seria a regulamentação por lei dessas mídias, pois as empresas não farão qualquer tipo de alteração voluntária em suas mercadorias sob o risco de perder clientes e produtos, que, como vimos, se confundem neste ambiente das redes sociais. Em suma, o direito à liberdade de expressão, pilar da democracia, não pode ser posto em xeque pelo direito de acesso à informação diversa e confiável. Se para os jovens empreendedores do Vale do Silício isto é um dilema, para nós, cidadãos, isto é um baita problema.

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