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Em Belo Horizonte, a exposição "São Francisco na Arte de Mestres Italianos" apresenta obras-primas da pintura renascentista e barroca inéditas no Brasil

Beatriz Goulart
Revista Bravo!
4 min readAug 20, 2018

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São Francisco em Oração, de Annibale Carracci

Poeta, isto é, fundador da palavra essencial;/ pobre da coisa perecível./ Exorcisma o capital-demônio./ As sandálias aladas aligeiram-no. Descobre o alfabeto da formiga./ […] Fazem dele um homem da ordem. / Mas é um inconformista, um rebelado, um fuorilegge; tal seu mestre”. [São Francisco de Assis — Murilo Mendes — Prosa/ Retratos-Relâmpago]

Com uma tremenda empatia entre os seus devotos e simpatizantes, Francisco é o santo católico mais retratado na história da arte. De acordo com o curador Stefano Papetti, ele é o mais representado na arte italiana, uma vez que os franciscanos se anteciparam ao compreender que a pintura representava um fabuloso veículo para a promoção do ideário. Uma imagem que passou por transformações significativas ao longo dos séculos, através de obras primas, retrata a evolução da representação iconográfica. Obras de mestres como Tiziano Vecellio, Perugino, Orazio Gentileschi, Guido Reni, Guercino, Carracci e Cigoli, partes de importantes coleções italianas, compõem a Mostra que reúne 20 pinturas feitas entre os séculos 15 e 18.

A mostra inclui um passeio virtual à Basílica Superior de Assis (1228), proporcionando uma experiência imersiva para conhecer obras-primas do pintor italiano Giotto (1267–1337), artista símbolo dos períodos medieval e pré-renascentista. Assim, os visitantes são remetidos a uma realidade artística e devocional que enriquece a exposição com novas experiências.

Realizada pela Casa Fiat de Cultura, em Belo Horizonte, a exposição aborda a apresentação da vida de São Francisco conectada a valores contemporâneos como ecologia, sustentabilidade e coletividade; sublinha o tema apontando a evolução da iconografia franciscana, a simbologia e reflexão sobre a cultura contemporânea da imagem; e também aborda a técnica discutindo sobre pintura como linguagem; composição, perspectiva e luz.

Com acervo de 15 museus de 7 cidades italianas, as pinturas de destaque são San Francesco Sorretto da un Angelo (primeira metade do séc. 17), de Orazio Gentileschi; San Francesco Confortato da un Angelo Musicante (1607–1608), de Guido Reni; San Francesco Predica ai Confratelli (verso) (séc. 17), San Francesco d’Assisisi e Quattro Disciplinati (1499), de Perugino; e San Francesco Riceve le Stimmate (1633), de Guercino. E ainda San Francesco Riceve le Stimmate (1570), a maior obra da exposição, com quase 3 metros de altura, com cores fortes e ardentes, de Tiziano Vecellio. O artista primeiro pintava a tela de vermelho para dar calor ao quadro e depois o fundo e as figuras em matizes vívidos, acentuando as tonalidades com cerca de 40 camadas de tinta. Um dos primeiros artistas a abandonar os painéis de madeira, Tiziano adotou o óleo sobre tela como suporte característico.

A curadoria é de Giovanni Morello, especialista em História da Arte que idealizou e curou diversas exposições de arte antiga na Itália, no Vaticano e outros países e integra a comissão permanente de tutela dos monumentos históricos e artísticos da Santa Sé.; e do professor de museologia, historiador e conservador Stefano Papetti, diretor da Pinacoteca Civica, da Galleria Civica di Arte Contemporanea Osvaldo Licini e do Museo dell’Arte Ceramica de Ascoli Piceno. Participando da inauguração da exposição, Papetti respondeu a algumas questões da Bravo!

São Francisco recebe os Estigmas, Tiziano

A produção artística contemporânea está cada vez mais imaterial, mas existe também uma retomada potente do figurativo. Como vê a relação dessas obras clássicas com as questões artísticas da contemporaneidade?

Começando com o pontificado de Paulo 6º, a igreja romana procurou restabelecer com artistas relações que haviam sido interrompidas no século 19 por causa da predominância de uma cultura positivista. Hoje, a Santa Sé participa de importantes exposições internacionais, como a Bienal de Veneza, e dá muita atenção às obras figurativas, porque essas são as mais adequadas para transmitir seus preceitos.

A mostra cobre um período que vai do Renascimento ao Barroco. Quais foram os critérios para selecionar obras de cada estilo apresentado?

As escolhas foram motivadas por razões de conservação, mas acima de tudo pela vontade de demonstrar como a figura de Francisco atingiu a imaginação de alguns dos principais artistas, a partir de Giotto, para alcançar alguns mestres contemporâneos. São Francisco sempre foi interpretado à luz das exigências devocionais da época, especialmente depois do Concílio de Trento. Os elementos históricos são muito interessantes, por exemplo, os modelos de representação de São Francisco mudaram de acordo com as necessidades de promoção das várias famílias franciscanas. É possível notar a mudança no modo de representar os estigmas, por exemplo, que em determinado momento deixam de ser pequenos cortes e se transformam em ferimentos sangrentos, precisamente porque era de interesse dos franciscanos evidenciar, através da pintura, a proximidade da dor de Francisco àquela vivida por Jesus.

Qual o sentido de propor uma reflexão sobre arte e religião nos tempos atuais? Faria paralelos na atuação política do papa argentino com a história de São Francisco de Assis?

Certamente as afinidades dizem respeito a temas como a fraternidade, a atenção dispensada aos pobres e marginalizados, à busca da paz, sensíveis às questões ambientais, que prescindem dos temas puramente religiosos.

Na sua opinião, qual o artista mais se aproxima do caráter identitário do santo com o humano?

O artista que melhor compreendia a mensagem de Francisco era Caravaggio e, na mostra, as obras de seus seguidores Getitleschi e Bigot testemunham esse realismo que é bem (afinado) adequado à pregação de Francisco.

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São Francisco na Arte de Mestres Italianos. Casa Fiat de Cultura, Belo Horizonte, até 21/10. 3ª a 6ª das 10h às 21h, sáb., dom. e feriados das 10h às 18h. Grátis. Depois, a exposição segue para o Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro

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