Festival Radioca, em Salvador, consolida cenário pós-axé

Em sua 5ª edição, shows têm tom político e destaque para o veterano do reggae baiano, Lazzo Matumbi

Paula Carvalho
Revista Bravo!
4 min readNov 13, 2019

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Foto: Rafael Passos/Divulgação

Fala-se muito sobre a força da produção musical atual da Bahia, encabeçada por nomes como BaianaSystem e Baco Exu do Blues. Mas para trabalhos como esses ganharem a proeminência e a relevância que conquistaram nos últimos anos no país, uma série de outras engrenagens da produção musical normalmente estão envolvidas na equação. É assim que se pode entender o Festival Radioca, que teve a sua 5ª edição realizada no último final de semana em Salvador.

Em cinco dias — com duas noites mais intimistas, uma roda de conversa e dois dias de festival no formato tradicional— o Radioca acerta no modelo enxuto, de no máximo 6 shows por dia, com apenas uma banda por vez, e na escolha de belos cenários — por anos, foi realizado à beira da Baía de Todos os Santos, no Trapiche, e neste ano, pela primeira vez, no bairro histórico de Santo Antônio do Carmo, com vista para a Baía. A prioridade da programação é de música brasileira autoral — com nomes como Tulipa Ruiz e João Donato, Céu, Mestre Anderson Miguel, Dônica e Tuyo.

Extensão de um programa de rádio que o jornalista Luciano Matos e os músicos Roberto Barreto (também guitarrista do BaianaSystem) e Ronei Jorge apresentam na rádio local Educadora FM há mais de 10 anos, o festival, que surgiu em 2014, pode ser entendido como um link entre "exportação" e "importação" em Salvador. Ele preza, de um lado, por shows inéditos na cidade — como, neste ano, o solo de Tim Bernardes, o do disco novo de Céu e o de Mestre Anderson Miguel — e, de outro, valoriza joias locais: Tiganá Santana, Illy, Livia Nery, os estreantes Tangolo Mangos e o mestre Lazzo Matumbi foram os escalados.

Além do programa de rádio, Matos também é o agitador — junto a outros DJs locais, como Camilo Fróes, Zeca Forehead, Lola Bê, Carol Morena (que também é curadora e produtora do festival) — de festas que acontecem na cidade desde o começo dos anos 2000: começou com a Nave, depois vieram A Bolha e o Baile Esquema Novo, e é responsável por um site, o El Cabong, em que atualiza diariamente uma lista de shows. Nos últimos anos, ele até criou um grupo de WhatsApp em que manda, todo dia, o que fazer dentre shows e festas na cidade.

No rastro do declínio do axé, esse movimento que é, na cidade, visto como de música "alternativa", se viu mais importante quando reconhecido nacionalmente. Diversos desses antigos frequentadores das festas são hoje produtores e produtoras, assessoras de imprensa, fotógrafos e fotógrafas, designers — ligados, de alguma forma, à indústria da música. Em outro sentido, o trabalho de formiga na formação do público e na ampliação do circuito inicial das festas (que reuniam, se muito, 200 pessoas) faz com que o festival hoje receba cerca de 6 mil pessoas, parte delas, não frequentadoras da "bolha" inicial. "Formação", aqui, tem sentido de educação, e de despertar curiosidade. Logo que encontrei Matos no primeiro dia do festival, ele me disse: "O maior desafio neste ano era o da noite intimista no Teatro Castro Alves, com Tim Bernardes, Tiganá Santana e Amaro Freitas. O público foi alternando durante a noite, mas no fim muitas pessoas vieram me dizer que não conheciam um ou outro, e que adoraram. Isso é o que eu mais gosto".

Mestre Anderson Miguel. Foto: Rafael Passos/Divulgação
Lazzo Matumbi. Foto: Rafael Passos/Divulgação

O tom político — favorável à soltura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que havia acontecido na sexta-feira, foi unanimidade nos shows. Mas não só o lulismo define o posicionamento dos artistas, que se ligam também a questões como a ambiental (Natureza Maltratada, do Mestre Anderson Miguel, pareceu feita para 2019), de gênero (ao puxar a famosa “rodinha”, Macedo, do Afrocidade, pede que só as mulheres entrem no bolo), de raça (basta ouvir a potente parceria de Lazzo Matumbi com Jorge Portugal, 14 de Maio), e da diversidade (Proporcional, de Tulipa Ruiz).

A atenção à produção local deixa também alguns pontos cegos, como a crescente cena do rap na cidade — que tem nomes como Vandal, Marcola, Pivete Nobre, além dos veteranos do Nova Era — , representada neste ano apenas pelo Afrocidade, ou a ausência do pagode e do arrocha, gêneros que poderiam ser vistos de outra maneira se incluídos neste cenário. Mas coloca em outro lugar peças fundamentais de Salvador como Lazzo Matumbi, dono da voz que é trilha da cidade desde o começo dos anos 80 e nunca teve a projeção nacional que merece. Lazzo é frontman de reggae e soul e interpreta as músicas com muita força, mas ao mesmo tempo faz um show muito dançante — apresentação que, aliás, pode ser assistida praticamente toda semana numa temporada de verão na cidade.

Foto: Rafael Passos/Divulgação

Da bolha a um espaço de projeção na intensa programação de festas da capital baiana, o Radioca se consolida como o principal festival de música brasileira da cidade e tem tudo para ganhar ainda mais adeptos.

*A jornalista viajou a convite da organização do festival.

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Paula Carvalho
Revista Bravo!

jornalista, doutoranda em sociologia na usp. quase tudo em torno de som 🎛 pra mandar mensagem: paula.cncarvalho@gmail.com