Filme mostra reinvenções do axé (a despeito dos críticos) ao longo de mais de 30 anos

Paula Carvalho
Revista Bravo!
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6 min readJan 18, 2017
Daniela Mercury, Margareth Menezes, Ninha (ex-Timbalada) e Beto Jamaica e Compadre Washington. Fotos: Divulgação

Não existe hora mais propícia para a estreia de Axé: Canto de Um Povo de Um Lugar, documentário de Chico Kertész que chega aos cinemas nesta quinta-feira, 19. Desde dezembro a capital baiana ferve com o sol, o clima de férias, a vinda de turistas, o aumento do número de festas na expectativa do carnaval e, claro, com o hit do verão. O deste ano é Me Libera, Nega, música que ficou conhecida depois que Ítalo Gonçalves, de 19 anos, foi detido por tentativa de roubo de celulares num ônibus. Num programa de TV local, a repórter o entrevista no porta-malas de um camburão, e ele não para de cantar: “Me libera nega, deixa eu te amar / Me libera nega, novinha vou te sentir / Me libera nega, vem pro Olodum / Eu vou te dar um beijo e depois vou te dar mais um”. A música chamou a atenção de produtores locais e MC Beijinho, solto no dia seguinte à detenção, virou a estrela do momento: lançou clipe de “Me Libera Nega” e já é entoado até por Caetano Veloso.

Todo ano é assim há pelo menos 30 anos. O ápice da explosão da canção é o carnaval, no fim do verão, quando ela emplaca de vez ou é engolida por alguma concorrente. Passaram por este crivo hinos que contam a história da música baiana nos anos 1980 e 1990: Fricote, de Luiz Caldas; Faraó Divindade do Egito, do Olodum; Swing da Cor, de Daniela Mercury; Beija-Flor, da Timbalada, e tantas outras.

Trailer do filme

Com 1h40 de duração e assunto pra outros dois filmes pelo menos, o longa de Kertész monta um histórico de como a axé music — termo criado pejorativamente pelo jornalista Hagamenon Brito, mas que pegou na indústria fonográfica — saiu dos batuques nos terreiros de candomblé, se misturou a ritmos latinos, à guitarra baiana (antes frevística) e ao trio elétrico e conquistou o seu espaço como um gênero de música popular tipicamente baiano. Acompanhando o boom dos CDs a partir dos anos 1990, o ritmo ultrapassou o carnaval e conquistou o país, mesmo que para isso muitos jabás tenham rolado.

Fato é que não dá para dissociar axé de carnaval. E, na Bahia (talvez, no Brasil), este tem uma característica muito peculiar, como afirma Antonio Risério no livro Carnaval Ijexá: sendo uma festa de origem branca e europeia, praticada em salões e festas privadas, ele praticamente se “africanizou” com raízes nos geledé. Estas festas, de origem afro, aconteciam na Bahia até o início do século XX com intuito religioso, mas culminavam na apresentação de poemas e canções que denunciavam as más condições em que se vivia nas praças públicas. Daí vieram, a partir de meados dos anos 1970, blocos afro com o discurso político tão forte como o Ilê Ayê e, a partir dos anos 1980, a volta dos Filhos de Gandhi.

Amado e odiado, saturado e em constante renovação, faz parte do axé o intercâmbio de instrumentos e células rítmicas com os blocos afro; a conquista de reconhecimento mundial com a vinda de artistas como Michael Jackson e Paul Simon para gravar sambas-reggae com o Olodum; a chuva de dinheiro vertida às gravadoras e a alguns poucos artistas; a exploração da imagem de peitos e bundas das dançarinas; o racismo explícito com o surgimento das cordas nos blocos. Todos estes temas estão presentes, com maior ou menor força, em Axé, mas há no geral um clima de celebração dos artistas.

Quando o filme chega aos anos 1990 e 2000, começa a tratar, cada uma a sua vez, de bandas como Asa de Águia, Banda Eva, É o Tchan, Ivete Sangalo, Harmonia do Samba, Psirico. Cada um desses “capítulos” é fechado com imagens bonitas de multidões arrastadas por seus trios, como uma celebração de fato. Menos importante no filme é a divisão brusca que ocorre a partir do surgimento dos blocos de classe média, criados por estudantes de cursinhos pré-vestibulares de Salvador na mesma época.

Até então, nas belas imagens antigas que o filme resgata dos carnavais dos anos 1960, 70 e 80, não havia abadá (fantasias ou camisas que identificam quem é do bloco), cordas separando quem está dentro de quem não pagou para estar no bloco (a chamada pipoca). No entanto, como diz Risério, o carnaval baiano sempre esteve dividido: primeiro entre os salões e o geledé, depois entre os blocos frequentados mais pelos negros (Badauê, Araketu, etc) e os mais “classe-A” (Traz-Os-Montes, Internacionais, etc). A partir dos anos 1990, essa chave é virada no filme com o discurso dos entrevistados de que a comercialização foi responsável pelo crescimento dos artistas. Ricardo Chaves diz que “ninguém chegaria aonde chegou” sem a formação dos blocos, que se tornaram o verdadeiro negócio do carnaval e do axé. No entanto, é violenta a imagem que mostra, a partir do uso de cordas, mamães-sacode e abadás, o apartheid entre o público branco, dentro dos blocos, e o negro, na pipoca.

Parte da equipe de “Axé” durante a exibição do documentário na Mostra de Cinema de São Paulo. Kertész é segundo à esquerda, de preto. Foto: Divulgação

Alguns comentários en passant de Márcia Short (ex-vocalista da Banda Mel), Margareth Menezes e Letieres Leite também questionam a conquista dos títulos de “rainhas” e “reis” do axé por pessoas brancas (numa cidade majoritariamente negra) e o consequente favorecimento financeiro dessas pessoas, em detrimento dos movimentos que são a raiz da música baiana: terreiros, blocos afro, compositores praticamente anônimos, novos talentos. Artistas como Netinho também mencionam a falta de união ou apoio entre os músicos, o que resultou num movimento totalmente individualizado, com estrelas de porte mundial (Ivetes, Danielas) e pouco reinvestimento na cena musical local. Se hoje podemos ver novos artistas vindos da Bahia, fazendo sons inovadores como o BaianaSystem ou o ÀTTØØXXÁ, o mérito vem menos do mundo do axé do que da nova ordem dos independentes — penso aqui especialmente no grupo de base em São Paulo surgido desde meados dos anos 2000, que tem uma lógica de agrupamento praticamente oposta a essa do axé.

Os temas espinhosos, presentes de forma homeopática, são intercalados com os depoimentos vibrantes dos artistas que mostram no que contribuíram para a música baiana: Daniela Mercury foi a primeira vocalista-dançarina, o Chiclete com Banana foi o primeiro a usar caixas de som no trio, em vez do sistema valvulado que dava muitas distorções, o Tchan foi o primeiro a criar coreografias em sambas de partido-alto.

O filme também mostra o entusiasmo dos produtores locais, os verdadeiros “pais” da música baiana, como Wesley Rangel, morto no ano passado, que possuía um estúdio pelo qual passaram quase todos os artistas de Salvador. Muito crítico do sistema do axé, o maestro Letieres Leite resume em uma breve fala a força da música baiana: há uma espécie de democracia no fato de que qualquer um — ele está claramente pensando em alguém com menos condições — pode se tornar famoso e ser reconhecido por fazer música pelo seu vizinho. É o caso de músicos do pagode baiano, dos blocos afro e das bandas de apoio dos grandes artistas. Não se pode dizer que em muitos lugares do mundo a cultura local seja tão valorizada e reconhecida, ainda que de forma desigual. As grandes estrelas do axé também continuam morando em Salvador e conseguiram projeção internacional desde lá.

Em entrevista ao G1, o MC Beijinho disse que cantou a música no camburão pensando nas pessoas do seu bairro. “Queria que elas vissem que eu estava cantando. Não imaginei que teria essa repercussão”. Com o sucesso no verão baiano, será certamente uma das músicas mais entoadas do carnaval — o que, diz Caetano Veloso na mesma matéria, “será um desses fatos do carnaval baiano que fazem a gente chorar de emoção”. Quem já viu, sabe.

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Paula Carvalho
Revista Bravo!

jornalista, doutoranda em sociologia na usp. quase tudo em torno de som 🎛 pra mandar mensagem: paula.cncarvalho@gmail.com