Forever Young

Depois da Fernanda, nunca mais fomos normais. E foi isso que a tornou transgressora e imortal

Igor Zahir
Revista Bravo!
5 min readAug 26, 2019

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(Foto: Bob Wolfenson)

Fernanda Young não era especialista em nada. Aliás, não era especialista em coisa pronta, como disse no prefácio do seu último livro, Pós-F. “Procuro me aprimorar em mim, entendendo sobre mim — usando, é claro, tudo que observo nos outros”.

No mesmo texto, a atriz, escritora e roteirista se mostrava obstinada em conhecer a si mesma e o mundo em que habitava:

“Não me importam os que insistem em me acusar de egocêntrica. Na verdade, até me divirto, visto que é uma observação tão óbvia e, nem só por isso, de uma burrice infinita. Há anos venho dizendo que a burrice é uma deficiência de caráter. A ignorância, sua irmã univitelina, é ainda mais sonsa, já que ignorar é uma espécie de egoísmo que justifica a brutalidade do ato. ‘Eu não sabia, então não fiz nada’. ”

Entre os que amavam e exaltam sua genialidade, e os que odiavam e faziam de tudo para lhe tirar do sério com comentários estúpidos nas redes sociais, há um pensamento em comum a respeito da Fernanda: ela não levava desaforo para casa. Falava o que sentia e não tinha o menor medo de errar. Como numa de suas últimas postagens, na qual ela deixou tudo bem claro:

“Sou uma mulher de [quase] 50 anos que sonhou alto e realizou muito. E estou longe de encerrar a minha jornada nessa orbe! Aos que se interessam: bom proveito. Para os outros: estou pouco me lixando!”

Hei de concordar: ela pode ter falecido no último domingo (25), mas sua jornada por aqui está longe, muito longe, de ser esquecida. Assim como sua obra-prima na televisão, a série Os Normais, que rompeu barreiras, foi transgressora e colocou na telinha um casal em meio a suas crises conjugais e individuais, que deixou bem evidente para o mundo o quanto, de perto, ninguém é normal. E nunca mais ninguém tentou ser normal.

Junto ao Alexandre Machado, marido e maior parceiro de trabalho, a Fernanda se tornava ali uma imortal. Não que tenha escrito pouco: além dos seus mais de 15 livros, foi autora de sucessos como Os Aspones, Macho Man, Minha Nada Mole Vida, Separação?!, Como Aproveitar o Fim do Mundo, Vade Retro e mais recentemente, Shippados. Como apresentadora e atriz, protagonizou outra remessa de projetos bem-sucedidos no canal GNT, como Saia Justa, Irritando Fernanda Young e Surtadas na Yoga. E, como mulher, construiu um sólido casamento, capaz de resistir ao emprego juntos, e realizou suas mais belas criações: as gêmeas Cecília Maddona e Estela May, de 19 anos; Catarina Lakshimi, de 10 anos; e John Gopala, também de 10 anos.

Um tempo atrás, quando fiz a resenha do livro Pós-F aqui nesta mesma coluna, mencionei como a Fernanda estava mais afrontosa, desbocada, bem-humorada, mais livre do que nunca, e que era nossa Virginia Woolf contemporânea, que apenas fala o que pensa e nem sempre é compreendida, mas que não desiste. Em resposta, trocamos algumas mensagens, cujos trechos do que ela falou e me marcou, eu reproduzo aqui:

“Não desistir é mesmo para os fortes. Além do mercado complexo, a ignorância alimentada há muito, ainda temos que lidar com críticos tendenciosos e, salvo raras exceções — creio que você seja raro -, com uma burrice deliberadamente invejosa. Ando bastante descrente em todos os sentidos. Mas sigamos. Aliás, creio que “sigamos” é o verbo. Em nome da enorme minoria que precisa de ajuda e quer mudar, mas não tem o menor recurso. Mas o brasileiro tem me decepcionado, no geral, como tecnologia humana. E ainda há a inveja dos ditos ‘coronéis da cultura’. Eles não querem saber dos que não os exaltam. Tudo panelinha. E eu jamais farei parte de panelinha. Se um escritor consegue se sair bem em outras profissões, afinal não dá para viver de literatura, ele será perseguido; depois, caso resista, será desprezado. Ninguém sabe da minha vida, no entanto, creem que vivo de ser ‘linda e loira’. Não adianta a congruência da minha obra. Não adianta a honestidade e respeito que tenho pela literatura e leitores. Eles homenageiam a pessoa depois de morta, mas colocam foto da pessoa jovem. Como fizeram com Hilda Hilst. Diariamente eu penso em desistir. Mas como escreveu William Blake, ‘oh, como sonhei coisas impossíveis’. E eu tenho muito respeito por sonhos. Então, sigamos, e coragem para seguir viagem quando a noite vem”.

Ao final das mensagens, ela disse que ia copiar e reler nossa conversa todas as vezes que arrastasse as correntes da desistência, e completou com seu humor maravilhoso: “se precisar de algo, é só gritar Niterói” [cidade natal da escritora].

(Foto: Bob Wolfenson)

E eu gritei, algumas outras vezes, e ela sempre atendeu, fosse para falar da nossa revolta com a política nacional, ou de filmes, livros, da nossa asma em comum — que também quase me matou nos últimos tempos, o que me comove ainda mais na partida dela — ou da chatice, cafonice e mediocridade que teimam em dominar o mundo.

A propósito, escrevo esse obituário como escrevi outros textos sobre a Fernanda: pensando se estaria ao nível dela (sabendo que jamais chegarei à tamanha genialidade), se ela ia achar medíocre, mas lembrando, no final, que uma de suas maiores características era a generosidade e gratidão que tinha pelos que respeitavam sua carreira.

Essa mulher cheia de nuances e camadas, e ao mesmo tempo tão transparente, cuja nudez artística nos permitia enxergar sua alma, não merecia ir agora, aos 49 anos. Como disse o Fabrício Carpinejar, a morte parece ter errado de endereço dessa vez. Fico imaginando ela, lá em cima, puta da vida com isso, deixando todo mundo enlouquecido e soltando um “caguei que era minha hora, caguei”. Imagino a cena, como descreveu o fotógrafo (e seu grande amigo) Bob Wolfenson, dela lá em cima desafinando o coro dos contentes, como sempre fez aqui embaixo.

No final do seu livro Pós-F, ela, tão bruxa e profeta, como uma entidade de outro mundo — porque esse mundo, definitivamente, não a merecia e vai sentir muito a sua ausência — , cravou com algo que poderia estar na sua lápide. Ou, ao menos, que nunca vai sair do meu pensamento e que dá um gostinho do que era a mente desse gênio chamado Fernanda Young:

“As pessoas não podem ouvir falar de morte no Ocidente. Eu, no episódio que vivi recentemente da doença de Alexandre Machado, considero que morri e nasci de novo. Assim como me senti quando tive filhos. Morri e nasci de novo. Nesse momento agora me sinto num pós-parto que, mais uma vez, estou achando estranhíssimo. Apesar de não estar numa crise depressiva, como antes, volto a uma mesma questão: quem é essa pessoa aqui? Aquela não existe mais. Ao mesmo tempo, as mortes pelas quais passamos em vida, são espetaculares (…) Mas como eu não tenho medo da morte, vejo como incrível poder renascer de novo. Com toda a certeza, me sinto melhor, me sinto mais sábia. (…) Que, numa próxima vida, eu me encontre de novo com Alexandre Machado. Mas dessa vez, eu quero que ele seja mulher (…) Que, num último dia nesse mundo, eu me abrace muito e me jogue muito para o alto, porque eu consegui fazer coisas incríveis nessa vida”.

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Igor Zahir
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Art advisor. Comentarista da rádio CBN. Crítico cultural. Colunista da Bravo!.