A nossa era na Terra

Festival de documentários Forumdoc.bh começa hoje com mais de 70 filmes em torno do tema do Antropoceno

Beatriz Goulart
Revista Bravo!
6 min readNov 23, 2017

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PIRIPKURA — Dois índios nômades do povo Piripkura so­brevivem cerca­­dos por fazendas e madeirei­ros numa área ainda protegida no meio da Floresta Amazônica

Começa hoje e vai até 3 de dezembro o festival de cinema forumdoc.bh, que desde 1997 tem como objetivo apresentar um panorama das produções documentais recentes em mostras contemporâneas brasileira e internacional, além de promover fóruns de debates e textos críticos sobre os filmes. Nesta 21 edição, o festival se dedica a uma temática especial, o Antropoceno, como destaca o curador e pesquisador Frederico Sabino. “Antropoceno designa o período geológico mais recente na história da Terra. Ao contrário do Holoceno ou do Pleistoceno, esse novo período não resulta da natureza, mas da própria atividade humana, cujo impacto global alterou todo o ecossistema planetário”.

Esta edição proporcionará ao público a exibição de mais de 70 filmes organizados em três mostras: Os Fins Neste Mundo: Imagens do Antropoceno, com 35 filmes; Mostra Contemporânea Brasileira, 21 filmes, e Mostra Contemporânea Internacional, 10 filmes, além de Sessões Especiais e Mostra de Fotografias. Entre os destaques estão Arábia, de Affonso Uchoa e João Dumans, eleito o melhor filme no Festival de Cinema de Brasília em 2017.

Em todos, diz Sabino, o foco é nas “dramas e conquistas da nossa espécie para filmar o mundo ao redor, suas paisagens, atmosferas, temperaturas, partículas de poeira. Alguns desses filmes apresentam simples estudos paisagísticos ou realizam interações poético-visuais com paisagens devastadas pela atividade humana. Neles, há uma clara intenção de contrapor o tempo apressado da sociedade tecnológica ao tempo estendido do mundo mineral e vegetal.” Trata-se, ele complementa, “de um chamado para diminuir o ritmo, afim de olhar o mundo ao redor com a calma de quem se põe a sonhar com outros mundos.”

ATL 2017 curta Xacriabá filmado por Edgar Correa kanayko

“Grande parcela dos filmes” ele prossegue, “parte do olhar indígena para ver montanhas, rios, florestas e ventos como parentes antigos, que poderão deixar de nos acolher limite. Com efeito, é preciso olhar mais longamente esse entorno que ameaça desabar de maneira iminente. Boa parte dos filmes por nós selecionados indica que o audiovisual pode contribuir com o desenvolvimento desse olhar também por meio da forma e, sobretudo, por meio da forma lenta.”

Fins dos mundos

Contra o Antropoceno e sua noção de um sujeito universal, ergue-se “uma diversidade de alinhamentos políticos dos diversos povos ou ‘culturas’ mundiais” que também inclui os “povos não-humanos”, como nos lembram a filósofa Déborah Danowski e o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que participarão da conferência Os Fins dos Mundos, incluída no seminário que integra a mostra. Ao provocar deslocamentos importantes na auto-percepção dos modernos, a noção de Antropoceno deve agenciar uma abertura para as realidades não modernas, para percepção de outros modos de existência. Para tanto, o festival trará as seguintes produções dividida em quatro conjuntos:

O primeiro grupo reúne filmes “lírico-apocalípticos” nos quais a paisagem é alçada à protagonista. É o que pretende os filmes Behemoth e Erosões, nas montanhas arrasadas da Mongólia e de Minas Gerais, ou Metamorphosen, com os rios e lagos mais radioativos do mundo. Ou ainda Three Studies in Geography (Neil Henderson) e Time and Tide (Peter Hutton), que levam a cabo o descentramento do humano na concepção da imagem.

O segundo agrupamento apresenta fabulações nada otimistas acerca de nosso destino como espécie: e se a vida como a conhecemos deixasse de existir? Homo Sapiens concebe um mundo pós-humano em que nossas construções de ferro, concreto e aço foram dominadas por plantas e outros animais. Em Cavalo de Turim acompanhamos a chegada gradual da morte para um velho homem do campo, uma filha e um cavalo, sinalizando a inevitabilidade de uma desaparição coletiva. Era uma Vez Brasília, novo longa de Adirley Queirós, é o único a efetivamente projetar um “futuro”, ao mesmo tempo intergalático e de um ponto de vista periférico, não muito diferente da exploração social que conhecemos no presente.

O terceiro se caracteriza por ensaios que apostam em camadas de significação a partir de motes temáticos. Os motes variam: a relação entre cinema e Antropoceno para A Film, Reclaimed, dirigido por Ana Vaz; a monocultura da soja no Brasil em Aprender a Viver com o Inimigo; o aterrorizante sistema de produção de alimentos em escala industrial desvelado por Our Daily Bread. O mote pode ser infinitesimal como uma partícula de poeira, como no longa Staub, de Bitomsky, ou o modo com que lidamos com seres não-humanos na proposição de James Benning em Natural History.

Chegamos, enfim, aos filmes realizados por cineastas cujas comunidades/culturas desenvolvem há gerações formas de relação com os mundos e os seres a sua volta contrárias à lógica exploratória de recursos naturais. Uma dessas frentes se debruça sobre embates entre modos de existência opostos no que concerne os desastres ambientais em curso. Quando Dois Mundos colidem é exemplar dessa oposição: acompanha o conflito entre multinacionais na exploração de petróleo e comunidades indígenas da Amazônia peruana. A mineração ameaça a floresta de Jaidukamá, enquanto o desmatamento em Be’jam Be torna acuados os índios Penan. Já a nefasta intervenção humana no curso dos rios fica evidente em Narmada, no registro da construção de um complexo de barragens no quinto maior rio da Índia e a mobilização de seus habitantes. Processo semelhante ocorre no curta senegalês La Breche, ou no rompimento da barragem da Samarco/Vale em Bento. O contraponto a esta lógica desenvolvimentista está em comunidades para as quais mitologias e tradições concernentes à água são cruciais: Les Eaux nos apresenta a divindade Mami Wata, enquanto Águas Sagradas e Felicidade ressaltam as histórias de nascentes urbanas na Bacia do Ribeirão Onça.

Ainda outras formas de resistência ao modo de vida associado às tragédias de nossa era estão presentes na Mostra, em filmes que tratam da relação com a terra e os alimentos, como os realizados por jovens cineastas indígenas nos contextos das roças rionegrinas do Amazonas (Roça da Sogra e Wasé Dharasé), ou que nos trazem a surpreendente relação entre o açaí e o povo Wayana, no Pará. Alimentos plantados, colhidos, vendidos e elaborados por mulheres na África, nos são apresentados pela visão de uma cineasta congolesa/martinicana, em Hexagrama 27.

Contemporâneos e itinerantes

A Mostra Contemporânea Brasileira conta com 21 produções que procuram descortinar toda a complexidade de um país marcado por lutas históricas e por um cotidiano que se revela para a câmera como possibilidade de restabelecer laços afetivos que parecem apagados por índices tão elevados de perdas de vidas e de territórios. É possível, com os filmes, encarar as urgências, os conflitos, as derrotas, a persistência e os amores. Para compor a Mostra Contemporânea, a comissão se orientou por esse entendimento, de que era preciso colocar os filmes em diálogo, friccionar as formas de ver e de sentir, para perceber como tais produções nos convocam para o debate ao dar a ver regimes de opressão, as formas de resistência e a ternura.

A Mostra Contemporânea Internacional apresenta um conjunto de filmes de países como Alemanha, Argentina, China, Bélgica que irão tratar de questões relativas ao exílio, à violência e à morte. A Mostra Sessões Especiais apresenta um conjunto destacado de filmes de produção estrangeira e também contemplando a produção local, como em Homem Peixe de Clarisse Alvarenga e Territórios de Invenção de Pedro Aspahan.

Equipe da Associação Filmes de Quintal, criadores do Forumdoc

As mostras de extensão do forumdoc.bh acontecem em regiões periféricas ou descentralizadas na cidade e a itinerância de parte da programação é levada a diversos municípios do interior do estado. Realizado pela Associação Filmes de Quintal, coletivo de realizadores e pesquisadores que há 21 anos atua em Belo Horizonte, tendo como alguns de seus integrantes a antropóloga e documentarista — Junia Torres, a professora, escritora e realizadora, responsável pelas publicações do festival Glaura Cardoso Vale, o antropólogo Ruben Caixeta, a comunicóloga e documentarista Cláudia Mesquita, além de Frederico Sabino.

Mais informações sobre o Fórum de Debates, Cursos, a Mostra Fotográfica, sinopses, horários e locais dos filmes no site www.forumdoc.org.br

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