Fotografia contra a barbárie

Em colagens e exposição, Mauricio Pokemon registra a vida e a luta dos moradores da Boa Esperança, comunidade ribeirinha de Teresina, no Piauí, ameaçada pela gentrificação urbana

Andrei Reina
Revista Bravo!
9 min readJul 2, 2019

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Retrato de João Raimundo de Sousa Filho (Foto: Mauricio Pokemon)

Não é preciso mais que alguns passos na Avenida Boa Esperança, na zona norte de Teresina, para notar que aquela é uma região em disputa. “Lagoas do Norte pra quem?” “Posse de nossas terras já!” “Minha terra, minha história.” Distribuídas em pichações e faixas pelos muros, as frases dominam a via de acesso ao encontro dos rios Parnaíba e Poty, um dos principais pontos turísticos da capital piauiense.

“Tem algo muito sério rolando por aqui e a cidade não está por dentro”, pensou Mauricio Pokemon ao passar pela avenida em 2015, gesto que se desdobraria em uma série de colagens e em uma exposição sobre a vida e a luta da comunidade. Já as primeiras visitas informaram Pokemon de que as inscrições na rua eram críticas ao programa Lagoas do Norte, iniciado em 2008 pela Prefeitura de Teresina em parceria com o Banco Mundial. Um vídeo publicitário do governo, comandado por Firmino Filho (PSDB), anuncia o desejo de promover “o encontro da cidade com suas origens” ao instalar ali “uma nova paisagem” e “um novo jeito de viver”.

A contradição no discurso tem par nas ações previstas, que combinam, de um lado, melhorias na infraestrutura urbana de 13 bairros da região norte — entre eles São Joaquim e Olaria, atravessados pela Avenida Boa Esperança, que será duplicada — e, de outro, o “reassentamento involuntário” de 2.180 famílias estabelecidas ali, algumas há mais de 40 anos, como o casal Valdir e Maria Marreiras.

Eles se lembram da época em que era possível viver da pesca e da agricultura realizada na comunidade, margeada pelo Rio Parnaíba. Hoje, a atividade se encontra prejudicada pela ausência do poder público e pela ação de empresas que instalaram “dragas” que extraem areia do fundo do rio para comércio ilegal. A agricultura está restrita às chamadas coroas do rio, pequenas ilhas formadas entre as águas, onde seu Valdir e outros companheiros plantam cajá, milho, macaxeira, caju e quiabo, entre outros alimentos.

“A ameaça é a um modo de vida”, diz Raimundo Silva, historiador conhecido como Novinho na região, onde cresceu e atua como um intelectual orgânico. “Não o físico, a casa — dependendo do dinheiro você constrói igualzinha a que está ali. A questão são os laços de vizinhança, o apego ao lugar, às árvores. É o lugar junto com as pessoas que formam um modo de vida único aqui na cidade.”

Seu Valdir (Foto: Mauricio Pokemon)

Novinho se debruçou sobre a história da comunidade na sua tese de conclusão de curso e em seguida se especializou em história e cultura afro-brasileira pela Universidade Estadual do Piauí. Esses estudos o permitiram enxergar a centralidade da Boa Esperança, hoje considerada periférica, para a formação da cidade, além de entrever um histórico de conflitos na região. “A história da comunidade Boa Esperança tem raízes com os ancestrais do grupo indígena Poty que habitavam a região do encontro das águas dos rios Parnaíba e Poty. Essa comunidade foi suprimida pelos embates dos conquistadores portugueses, que dominaram a região para desenvolverem a pecuária extensiva e dessa forma deram origem a diversas povoações”, diz ele.

“No século 18, umas dessas comunidades que surgiram foi a Vila do Poti, posteriormente elevada a categoria de cidade e que se tornou a capital da província com o nome de Teresina. Em meados do século 19 começaram a chegar à região as primeiras levas de migrantes, que se estabeleceram na região norte de Teresina, e desse fluxo migratório surgiram diversos bairros e comunidades, entre essas a Comunidade da Avenida Boa Esperança, em 1965, formada por vazanteiros, pescadores, oleiros, vaqueiros”, conclui Novinho.

Seu Valdir e Dona Maria contam que a casa deles e de vizinhos foram marcadas pela prefeitura com selos em cores diferentes, sem serem avisados sobre o que cada uma significava. Duas opções foram oferecidas para as famílias: um valor em dinheiro ou um apartamento, pequeno e afastado dali. Elas no entanto optaram por uma terceira, a de se organizar em torno de um comitê permanente de mobilização.

A sede da luta é a casa dos Oliveira, onde se pode ouvir o discurso político articulado de Maria Lucia e Francisco, o Chico Boa Esperança. Eles comentam que o Estado, quase sempre ausente na vida da comunidade — a luz só chegou na região em 1983 — só aparece para “limpar” as famílias dali e para reprimir os movimentos culturais de juventude, como as festas de reggae e hip hop.

Maria Lucia Oliveira (Foto: Jairo Moura/Itaú Cultural)

“Aqui a gente tem nossos afetos, nossa memória. A cabeças deles é colonizadora”, define Maria Lucia. Ela também chama a atenção para o fato de os moradores serem excluídos do processo de modernização da região, que ganha sentido higienista. “Se não for para nos ajudar, que vá para lá o seu progresso”, diz ela, enquanto a cordialidade anfitriã de sua figura dá lugar à oradora política, em linha com a tradição popular de mulheres marcadas para viver, como a sem-terra Elizabeth Altino Teixeira e a mãe de maio Débora Maria da Silva.

Portal para a experiência

Quando eu e um grupo de repórteres visitamos a Avenida, uma nova intervenção era realizada no muro da família Marreiras. Dessa vez, eram as próprias mãos de Valdir, impressas numa fotografia colorida de Mauricio Pokemon, que ocupavam o espaço. A ação integra o projeto VerdeVEZ, iniciado por ele a partir do contato com a comunidade. As visitas se prolongaram, resultado de um aprofundamento na relação com os moradores.

“Quando chegava no quintal, tinha toda aquela conversa íntima da família. Abria-se esse portal para várias coisas, desde problemas financeiros básicos a sonhos”, diz ele, que se impressionou com o estilo de vida ribeirinho, marcado pela agricultura familiar, o uso de plantas medicinais e a relação íntima com o Rio Parnaíba, acessível pelos fundos do quintal de muitas das casas.

Ele passou então a fazer retratos das pessoas, “enraizadas naquele lugar”, e em seguida exibi-los em colagens em regiões abastadas da cidade, como o centro e a zona leste. “Esse trabalho era muito efêmero, porque essas imagens incomodavam bastante os moradores. Muitas delas não duravam 24 horas, porque iam lá, riscavam, pichavam, tiravam. Comecei a pensar o quão violento isso era subjetivamente, com relação ao que já estava acontecendo na avenida”, diz Pokemon.

Nas fotografias seguintes, clicadas em 2018, interessou ao fotógrafo destacar o verde, cor que predominava tanto na paisagem natural quanto na estampa das roupas e na decoração das casas. À medida que a relação do fotógrafo se estreitava com a comunidade, que ganhou confiança e lhe franqueou livre acesso às casas, o projeto ganhou corpo, fato para o qual foi decisiva a seleção no edital Rumos, do Itaú Cultural.

Mauricio Pokemon realiza colagem na Boa Esperança, observado por seu Valdir (Foto: Jairo Moura)

“Comecei a perceber que não era sobre essa literalidade da cor, com o verde presente em todas as coisas”, diz Pokemon. “Era sobre esse modo de viver das pessoas onde o verde estava presente, desde o que cerca a casa deles, com essa natureza de beira de rio, até a subjetividade das escolhas, no tapete da casa, na pintura da cor da parede, na roupa que vai vestir. Era muito sobre esse dia a dia, sobre como é ser esse morador ribeirinho numa cidade super urbana.”

Além das colagens, o projeto se materializou também em uma exposição individual no Campo Arte Contemporânea. Instalado num galpão de supermercado desativado, o espaço artístico é fruto da parceria entre o coreógrafo Marcelo Evelin, que ali realiza ensaios e performances, e a produtora Regina Veloso. Ela define o lugar como uma “obra em constante construção”, desdobrada em três missões: ser ao mesmo tempo incubadora de projetos, centro de residência artística e articulação comunitária.

O concreto, derivado do uso original do espaço, convive com um exuberante jardim, que culmina em um escritório sem paredes ou janelas. É no estacionamento do Campo, localizado no subsolo, que Mauricio Pokemon instalou o seu Inventário Verde da Boa Esperança. Avesso ao cubo branco, imprimiu as suas fotos analógicas, clicadas com lentes de 35mm e 120mm, em placas de compensado de 12mm. Elas foram expostas sem molduras, muitas nem sequer afixadas na parede.

O espaço expositivo de “Inventário Verde da Boa Esperança” (Foto: Mauricio Pokemon)

O diálogo da expografia com o brutalismo do local, pensada por Pokemon com o curador Raphael Fonseca, não impede que se registre o sofisticado trabalho com a linguagem. Caso exemplar é o retrato de João Raimundo de Sousa Filho. O morador da Boa Esperança encara a câmera enquanto fuma um cigarro, no que parece ser um intervalo dos trabalhos na coroa do rio Parnaíba. A plantação oferece um vistoso fundo verde ao senhor negro de cabelo e bigode grisalhos, que veste um boné esportivo vermelho e uma camisa da seleção brasileira coberta por um agasalho de algodão azul turquesa. A paleta de cores se completa com o branco das nuvens e remete ao Bananal ou ao Menino com lagartixas de Lasar Segall, embora a fotografia de Pokemon procure se desviar das contradições do modernismo, marcado pela distância entre retratados e artistas.

“Suas imagens são generosas — interessam ao artista os rostos, corpos e objetos perpassados pela experiência humana. A maneira como elas são produzidas denotam que a fotografia é uma forma de diálogo aberto entre diferentes pares. Seus trabalhos são afetivos e abrem narrativas que convidam o público a se relacionar com pessoas que fitam a câmera com seus olhos nos nossos olhos. Suas posturas tendem a ser eretas e empoderadas — fotografar pode significar transformar em imagem pessoas que não irão se curvar perante as adversidades”, analisa Raphael Fonseca no programa da exposição.

Abrir os olhos

Mauricio Soares Gomes de Oliveira ganhou o apelido de Pokemon ainda nos anos de escola, onde era “o esquisito” por ser magro e cabeludo, características que conserva até hoje, aos 29 anos. O convívio no círculo do skate e do hip hop, que exigia um nome “das ruas”, sedimentaria a alcunha, mantida nos primeiros trabalhos profissionais, realizados para o jornal Meio Norte, principal diário de Teresina.

Em 2011, passa a trabalhar com a revista Revestrés, publicação de elevado padrão editorial onde é editor de imagem. A frequência subsequente em festivais de fotografia, como o Valongo, em Santos, e o Solar, em Fortaleza, ajudaram Pokemon a se libertar das amarras do fotojornalismo. “Chegava um momento que eu estava tão no automático que ia fotografar um acidente, com um cara morto e era só mais uma coisa do dia a dia. Mais tarde estava fotografando o lançamento de um carro”, diz.

Se o cuidado com a linguagem exige desligar o olhar do automático, isso também se reflete na relação com os fotografados. “Era realmente sobre o momento, não sobre a imagem. Porque não era marcar data, ‘dia tal eu vou lá e quero você pronto pra gente fazer algumas fotos’. Era sobre todo dia estar pela Boa Esperança à deriva, caminhando, conversando”, diz Pokemon. Esse aprofundamento permite que se veja os personagens da comunidade em registros insuspeitados.

Em uma das mais delicadas fotografias da mostra, uma dupla coberta por toalhas de chita estampada de flores mantém os pés firmes sobre tocos de árvore enquanto equilibram enormes cabeças sorridentes sobre si. Eles projetam uma longa sombra em direção ao espectador, que os observa entre árvores, contra o rio e um barco ao fundo. A luz do sol permite que se veja, entre o tecido, o corpo daqueles que carregam a fantasia, produzida por Raimundo Novinho. Prestes a sair no bloco de carnaval da Boa Esperança, ali estão Maria Lucia e Francisco Oliveira, registrados em um raro momento de respiro lúdico.

Após uma breve fala na abertura da exposição, em 24 de maio, Mauricio Pokemon chamou a política de volta ao espaço, ao convidar alguém da comunidade a dizer algumas palavras. Não foram só os meus olhos que se voltaram para Maria Lucia, que encerrou o evento com um discurso segundo o qual os esforços não deveriam parar na realização da mostra, que deveria possibilitar o diálogo com outros setores da sociedade. Entre o calor e o espanto, registrei apenas uma de suas frases: “Que as pessoas abram os olhos.”

*O repórter viajou a convite do Itaú Cultural.

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